sexta-feira, fevereiro 12, 2010

Dr. House on Callimachus



Os Telquínios resmungam frequentemente comigo, esses incultos
na arte da poesia, que nunca foram amigos das Musas,
porque não foi um poema contínuo que escrevi acerca de reis,
em muitos milhares de versos,
nem acerca dos heróis de antanho; em vez disso, desenrolo a poesia
aos bocadinhos, como uma criança, apesar de os meus anos não serem poucos.
Pela minha parte, o que digo aos Telquínios é isto: "Raça espinhosa,
apenas capaz de derreter os seu próprio fígado,
eu sou, na verdade, um poeta de poucos versos.

Calímaco, Prólogo das Origens.
Trad.: Frederico Lourenço, Grécia Revisitada. Cotovia, 2004.

sábado, janeiro 16, 2010

quarta-feira, janeiro 13, 2010

A Propósito de «A Cidade», pela Cornucópia

(ler entrevista com a tradutora aqui)

ARISTÓFANES

Nada é tão divertido como um imbecil no meio de três inteligentes. E nada é tão divertido como um inteligente no meio de três imbecis. O divertimento vem, pois, do isolamento de algo no meio de muita quantidade de algo oposto. O divertimento é, então, consequência de uma violência: a separação. Separar uma árvore das cinco mil árvores do bosque é uma violência. Colocar a árvore arrancada no meio de vinte mil automóveis é a segunda violência. Colocar a árvore com quatro rodas no meio do trânsito, como se fosse apenas mais um automóvel, é um divertimento. Para cada riso duas violências.

Gonçalo M. Tavares, Biblioteca

segunda-feira, janeiro 11, 2010

Para Uma Definição de «Target Marketing»

CAPACONTRACAPA

E de repente a recordação surgiu-me. Aquele gosto era o do pedacinho de madalena que em Combray, ao domingo de manhã (porque nesse dia não saía antes da hora da missa), a minha tia Léonie, quando lhe ia dar os bons-dias ao quarto, me oferecia, depois de o ter ensopado numa infusão de chá ou de tília.

M. Proust, Em Busca do Tempo Perdido I -
Do Lado de Swann
(trad.: Pedro Tamen)

sábado, janeiro 09, 2010

Músicas Para Educar O Bom Gosto §3

Amor Combate,
de Linda Martini
in: Olhos de Mongol (2006)


Os Linda estiveram ontem e hoje em estúdio em gravações para o seu segundo LP, ainda sem data. Amor Combate dificilmente seria a minha primeira escolha para esta rubrica do blogue, mas não existem clips decentes de outras músicas da banda. Desde Ornatos que não ouvia algo tão bom: era por isto que esperávamos, algo que corrigisse a mera suficiência do rock português, órfão, complacente com os seus próprios epifenómenos, contente da sua pequenez vezes demais. Linda é uma coisa maior, um post-rock seco, ácido, todo entregue, lotófago, a tempos, de letras minimalistas, e, simultaneamente, tão precisas (Dá-me a Tua Melhor Faca, nos seus dois versos, é o epigrama final para acabar todos os namoros). As paisagens sónicas de Linda são, verdadeiramente, esconderijos para que, mais só, como refrigério, me retiro, como antes fugia para Reis e sem a exaustão do metal da adolescência. Linda tem a cor da luz, na minha cabeça, um branco solidificado pelo calor, agreste, rude, pouco polido (não passou por nenhum prisma), mas também por isso original, simples, verdadeiro (confesso que também há um pouco de verde, baço, semi-glauco). Só suporto este sol quente, não de praia (que odeio), mas de deserto: porque grandes são os desertos (há espaço para respirar) — e os Linda.

quarta-feira, janeiro 06, 2010

Leitores Atentos §1

Iliacosque iterum demens audire labores
exposcit pendetque iterum narrantis ab ore.
Eneida, IV.78-79

Da boca do facundo Capitão
pendendo estavam todos, embebidos.
Os Lusíadas, V.90.1-2.

Lembro-me ainda de traduzir esta passagem da Eneida numa aula e da dificuldade de verter «pendet ab ore» de forma adequada. Tida por demasiado rude, a tradução literal era preterida em favor da mais poética «suspensa dos lábios do narrador», a forma adoptada, por exemplo, na edição portuguesa da FLUL (2005, Bertrand). Na minha tendência para concretizar visualmente as metáforas dos textos — devo isto, acredito, aos futuristas italianos:
Daremos cor ao diálogo [...] mostrando cada imagem que passa pelos cérebros dos actores. Por exemplo, ao representar um homem que diz à sua mulher «és tão amorosa como uma gazela», deveremos mostrar a gazela.
Manifesto do Cinema Futurista (1916)
— imaginava Dido agarrada, pequenina, aos lábios de Eneias, suspensa, como Catilina do rochedo (Aen. VIII.667-9) ou Hera castigada. Gostava genuinamente da expressão, por isso não pude deixar de a reconhecer ao ler, ontem, o Canto V dos Lusíadas. Camões não receia decalcar de perto a imagem virgiliana, sem pudor de usar o termo, talvez violento, mas mais fiel, de boca. Os escritores antigos, ou talvez seja mais correcto dizer: os escritores grandes, não guardam estes pruridos líricos que, a tempos, ainda alimentamos: amam a língua inteira, não têm vergonha de mostrar a mulher nua aos convidados, porque a sabem toda bela — e toda deles. Shakespeare, apercebi-me disso recentemente, ao ler Júlio César, recorre abundantemente a stomach e a metáforas de ordem digestiva, e isso não quer nenhum efeito irónico, como em Eça. A Íliada é uma leitura necessária para reaprendermos a simplicidade que aparelha o luto e a comida e permite estas palavras (XXIV.599-602):
O teu filho te foi restituído, ó ancião, como pediste,
e jaz num esquife. Ao nascer da aurora o poderás
contemplar e levar. Mas agora pensemos na refeição.
Trad.: Frederico Lourenço, Cotovia, 2005.
Doravante, Dido está oficialmente «pendurada da boca do poeta» (Camões legitima a tradução), talvez olhando lá para dentro, procurando as palavras não-ditas, escondidas, de asa quebrada, que não furaram ainda, de penas rotas (ícaros que se reparam com nova cera), a barreira dos dentes do anti-herói.

imagens: 1. Eneias Conta a Dido a Queda de Tróia, de Pierre Narcisse Guerin, 1815 (@ Louvre). 2. Vasco da Gama entrega a carta do rei Dom Manuel I de Portugal ao Samorim de Calecute (a imagem não coincide com o canto, mas procurava um momento de narração, fixado aqui).

segunda-feira, janeiro 04, 2010

Diálogo: 'ΙΩΝΙΚΟΝ', de Cavafy

Even though we have broken their statues,
Even though we drove them out of their temples,
In no wise did the gods die for all that.
O land of Ionia, it is you they love still,
It is you their souls still remember.
When upon you dawns an August morn,
Some vigour of their life pervades your atmosphere,
And once in a while, an ethereal, youthful form,
Indistinct, in rapid stride,
Passes above your hills.

imagem: fotogramas de Megalexandros (1980), de Theo Angelopoulos.
(poema e filme oferecidos pelo senhor da Alvenaria)