quinta-feira, janeiro 24, 2008

Bloguística §5: Nip/Tuck na Varanda

Novo cabelo, novo blogue. Não sei se existe alguma correlação entre as duas realidades (hume não acreditaria nisso). Desde que o ano acordou, que, de facto, alimentava este propósito de renovar o Varanda, ainda que temesse que, bruxa de hansel e gretel, o alimentasse só para o devorar, e a coisa morresse sem ter sido: tenho menos confiança em mim do que nos restantes homens. Algures na minha infância (da qual não conservo memórias: por isso a estou a viver agora, aos quase vinte), devo-me ter traído a mim mesmo, bruto. Joguei fora a criança e os seus sonhos e descumpri as promessas de felicidade que tinha feito a mim mesmo. No final, reduzira-me, enfim, a um adulto. Crescer, de facto, não é mais do que isso mesmo: trairmo-nos. Jaz morto, e apodrece, o menino que queria ser escritor e não desarmava daquilo e fazia birra por isso como aqueles garotos impossíveis que berram às sirenes por um gelado. Queria o miúdo ser poeta!: devia ter sabido que esses - aqueles que os deuses amam - morrem cedo. O rapaz, de facto, morreu jovem: morreu de suicídio. Matou-o o eu futuro. O futuro lida muito mal com o passado: está sempre a pedir desculpas por ele (ainda agora, recentemente recentemente, o ministro australiano pediu desculpa aos aborígenes e aos boomerangues). O passado faz uma comichão terrível ao futuro. Não foi sem visão que Gaiman, quando quis honrar a criação, lhe deu o endless de destruction. As coisas novas amam desembaraçar-se das velhas: um ano novo, por exemplo, nunca começa sem que o outro acabe primeiro. Nada de misturas nem de incestos entre os dias.
Eu queria portanto mudar o blogue. A Varanda, de facto, era uma casa abandonada, como a quinta em ruínas da minha bisavó onde tricotam as heras a passar o tempo. A Varanda parecia uma bela adormecida, com um século de dias em cima sem ser escrita (até mais, bem feitas as contas). Isto sempre estivera no meio do deserto americano. A Varanda era um hotel do norman bates: não tínhamos ninguém, e, quando, por sorte, alguém aportava (isto é, batia à porta), assassinavamo-lo no duche, com a incompreensibilidade do nosso idiolecto. A mulher nunca mais voltava (sim, o nosso público era essencialmente feminino - sempre me dei bem entre as mulheres, como um almodóvar). Depois eu tinha esta fixação: todos os meus textos tinham de ser um testamento, porque eu podia morrer no dia a seguir. Por isso eram todos muito longos e escorregavam muitos minutos a escrevê-los, às vezes horas. Por fim, havia um um fantasma que assombrava o sítio: a universidade. Ora eu sou muito supersticioso: bato sempre três vezes na madeira quando tenho um pensamento que não quero. Eu tinha por isso muito medo de visitar a Varanda. Isto com os mortos não se brinca: e há saber mais morto que o das universidades portuguesas?
Mas veio o ano novo. Quando vem o ano novo, as pessoas fazem sempre muitas promessas e resoluções. Quando era criança, eu julgava mesmo que o ano novo era um deus e por isso escrevia ano novo com maiúscula, assim: Ano Novo. As pessoas, quando ele chegava, arrependiam-se do género de vida que tinham levado anteriormente, e decidiam emagrecer, ou deixar de fumar, ou passar a ir ao ginásio, ou - coisas bem mais sérias, que nem jonas em nínive teria conseguido! - fazer as pazes com a mãe com quem já não se fala há anos, ter um filho, mudar de emprego, emigar até. Era um deus muito poderoso, para que as pessoas se convertessem assim, por certo. Eu vendo todos os adultos assim, perguntei à minha mãe se podia fazer a mesma coisa, como quem de olhos de gato das botas pede um gole do copo de champanhe. A minha mãe consentiu e eu alegrei-me. Para aplacar o deus, dei-lhe as minhas doze favas (eu nunca gostei de favas) e para cada uma ia formulando um desejo: e eu desejei, como um aladino para o génio: quero um blogue novo.
Levei então o Varanda ao Nip & Tuck. «tell me what you don't like about yourself», perguntaram-me. Eu respondi a minha vida, mas eles não se voluntariaram para me matar e reenchaminharam-me para a holanda. Porque aquilo ficava longe, mostrei-lhes o blogue. Falei-lhes do que não gostava, do que se podia melhorar e eles concordaram com tudo. Disseram-me que levariam algum tempo, mas que a coisa se curava: só não se curava a solidão. Fizeram então obras na fachada (era parte do programa de recuperação da alta da cidade). Estava, de facto, mais belo, com qualquer coisa de jovial. Até lhe tinha saído o ar macambúzio, o preto carregado de luto por nem sei quem. Voltava à cor primeira, como nascera: branco. Fiquei feliz com o trabalho, e limpei o suor com as mãos, para estas parecerem que choravam de alegria pelo fruto delas. Satisfeito com a Varanda, mudei para lá as coisas todas, até porque há muito que vinha acalentando este desejo de passar as noites ao relento, com as estrelas por tecto.
Como israel, mandei regressar a mim os judeus, os posts da minha diáspora. Alguns preferiram continuar onde viviam (isto de emigrar é bom quando se é jovem), mas muitos, ainda assim, vieram. Vieram os filhos do Em Busca da Beleza Perdida, d' O Rei de Ítaca, do re-bobina, do Ars Scientia e da Primeira Curtada. Ficaram arrumados os laconismos e as crónicas: os móveis eram demasiado pesados para os mexer para a Varanda. Estava tudo porém numa confusão agora: tinha o microondas na Varanda ao lado da trouxa de lençóis. A Varanda, como a carteira de uma marry poppins, tinha-se esticado até tudo caber lá, mas era preciso organizar as coisas. Não devia estar animado para a empresa: sempre gostei de ter tudo muito organizado, mas nunca consegui trazer ordem à minha vida, para começar. Resolvi adão dar às coisas nomes e juntá-las por grupos, para que se aquecessem umas contra as outras (dormir na Varanda é uma coisa gira, continuo a repeti-lo, mas faz muito frio, como no deserto - e a Varanda está ainda num deserto). Casei então os posts em categorias:

QUANDO EU ERA PEQUENINO. O baú onde guardei os primeiros vestígios da minha actividade cibernética, os posts mais dignos do meu primeiro blogue, o Noites de Inverno. Acabei por acrescentar p.s. póstumos, para esclarecer evoluções. O nome, levei-o dos Quinta do Bill.

THE COAST OF UTOPIA. Ruínas d' O Rei de Ítaca. Ruínas, não: fundamentos - novos pilares se hão-de erguer: porque a utopia tem de ser possível. Tenho de Stoppard a autorização para usar o título da trilogia dele.

BLOGUÍSTICA. Entradas sobre a Varanda e o seu aprumo (isto de manter a Varanda limpa custa muito).

MOLESKINES. Pequenas coisas (ou grandes), pensamentos soltos: a encarnação daquilo que um blogue, na sua forma mais pura, deverá ser. Um moleskine versão online.

AND VIDDY FILMS I WOULD. A frase é da fabulosa Laranja Mecânica, quando Alex vai para o seu «condicionamento», metáfora de tanta coisa, mas muito também do cinema. Que nome melhor para um espaço sobre a sétima arte? Há aqui muito do re-bobina.

SPEAKERS' CORNER. Nunca estive. Mas esta é a minha tribuna, donde prego e proclamo. Quem lê, porém, não esqueça: «Bem prega Frei Tomás: faz o que ele diz e não o que ele faz».

QUOTH THE RAVEN. Espaço de citações: o nome, emprestou-mo Poe (quoth lembra quote).

PRIMEIRA CURTADA. Os posts do blogue homónimo. A crescerem num futuro a médio prazo, quando o projecto que os suscitou pular para a frente como canguru.

EM BUSCA DA BELEZA PERDIDA. Os posts do blogue homónimo. Sítio sobre a mitologia & as lendas, que os homens resolveram esquecer, que nós queremos recuperar. Porque, como dizia a insígnia do blogue: "O mito é o nada que é tudo".

Nem sempre as classificações são rígidas (e há outras, já reveladas ou ainda por descobrir). O Ensaio Sobre a Recepção dos Filmes está não no And Viddy Films I Would mas sim no Speakers' Corner. Digamos que são mais indicativas do que dogmáticas. Doravante, quero escrever mais - mas talvez menos. Mais posts, porém mais breves: tentar, dalguma forma, tornar este blogue num espaço ameno, esplanada agradável a que se venha com gosto e regularidade, só para entre dois cigarros esgotar dois dedos de conversa. Desde o início que o Varanda foi construído para ser, entre os meus mil e um blogues (tantos quantas as noites de Xerezade), o blogue, aquele que agisse enquanto tal, e verdadeiramente encarnasse o espírito da rede, da sua informalidade, da sua rapidez. Nunca tal aconteceu - nem vos posso prometer que tal aconteça, mau grado os meus bons desejos. Eu não confio em mim mesmo, comecei por dizer. Continuo a não confiar. A parte mais fácil da reestruturação do blogue está completa: era o simples nip & tuck. A mais difícil só agora começa.