segunda-feira, fevereiro 19, 2007

And Viddy Films I Would §8: "Sunrise: A Song Of Two Humans", de F.W. Murnau (1927)

O mesmo impulso que me levou a M (1931) e a Underground/Era Uma Vez Um País (1995), arrastou-me ou deixei-me arrastar a Sunrise/Aurora (1927). O conselho dos sábios é geralmente atento e atendido: segu(i)ndo o top 10 do outro rosto e outra mão deste blogue, vi a peça de Murnau, desfalecida em domínio público. Como alguém diz de um carro: «foi o meu primeiro mercedes», também eu digo: «foi o meu primeiro murnau» com o mesmo orgulho. De Sunrise/Aurora pouco mais conhecia que a célebre afirmação de Truffaut, segundo o qual este seria "o mais belo filme de sempre" (como um grego, faço a citação de cabeça: perdoem-me a inexactidão possível). Não sei se o é, de facto; certo, porém, é ser um dos mais. Há uma imensa beleza, de ordem cinematográfica e emocional - mais!, espiritual, que preenche este filme. Como uma pedra que cai num poço e ecoa multitempos até se devorar na água, ressoou, no ver do filme, na minha cabeça A Felicidade Conjugal de Tolstoi, por um certo sentimento de associação entre as duas obras que não sei totalmente esclarecer.

Na tecelagem do panegírico de Aurora, é missão sempre discriminadora decidir por onde começar. Colocaria talvez a ênfase no fabuloso casting e performances dos três personagens principais: o Homem (George O'Brien), a Esposa (Janet Gaynor) e a Mulher da Cidade (Margaret Livingston). A presença de O'Brien é a tempos ameaçadora e terna, gigante e humilde, agreste e nova. Livingston foi trabalhada para a interpretação da serpente na reconstituição do Éden primeiro de Aurora. O cigarro, os salt'altos, a roupa preta: tudo se consolida na criação física da personagem. Porém, indubitavelmente, mau grado todo o grande mérito que reconheço a O'Brien, foi Gaynor quem me apaixonou. Gaynor tem o corpo louro de uma criatura mitológica, ariano e nórdico, belo e frágil, donzela rapunzela. Os seus olhos e cabelo concentram uma invulgar força dramática e a sua representação (bem como a de O'Brien) é de sobremaneira natural, tendo em conta tratar-se de um filme mudo (ainda que Aurora se situe na transição entre as duas eras, a silenciosa e a sonora). Gaynor imprime ao papel uma expressividade que só uma mulher pode. Anjo engando, anjo que sofre, anjo que redime. Em grande medida, as emoções do espectador confundem-se com os sentimentos, de alegria ou tristeza, da Esposa: Gaynor tem-nos na mão o coração.

A estória abarca várias temáticas, como um chapéu-de-chuva. Por um lado, há toda uma reflexão sobre a relação conjugal, o adultério, o homem, a mulher e o amor. A Esposa representa o paradigma romântico da mulher-anjo; a Mulher da Cidade o da mulher-demónio. A ambivalência do feminino tem sido e é um dos temas de maior fascínio dos artistas masculinos. O casamento aparece como um gesto diário: daí o segundo casamento metafórico - ninguém se casa, vai-se casando, visto o amor necessitar de constante alimento, ou não fosse ele como aqueles pequenos peixes de aquário que, sem memória, se esquecem que comeram e querem mais e querem mais. A sequência da cidade é a mais importante no âmbito desta meditação lírica sobre as relações humanas, com o passeio da Esposa e do Homem a ilustrar a novidade toda do amor. Por outro lado, um dos temas mais evidentes é o confronto campo/cidade. Este, contudo, é um tanto ao quanto ambíguo. Se é a Mulher da Cidade que vai envenenar o Homem, este e a Esposa redescobrem o amor e passeiam-no na cidade: ela, enquanto sítio, diria, aparece como algo tendencialmente positivo, rico de ofertas ao novo casal. Contudo, no que respeita às pessoas, talvez desse ponto de vista já não fique, no ver de Murnau, tão bem cotada. As pessoas da cidade aparecem invariavelmente conotadas com a sexualidade: a Mulher da Cidade, o homem na barbearia e a manicure ou o cómico e erótico "casal" do salão de baile. O campo aparece como o refúgio da justiça e moralidade, lugar do trabalho e dedicação. Parece-me significativo o episódio do porco: tratava-se de um jogo popular entre os nobres dos séculos mortos. Que a nova classe aristocrata, a burguesa, tema o pequeno animal e tenha de ser o Homem, trabalhador rural, a dominar as forças da natureza, como que o eleva, a ele, à nobreza também, uma nobreza que, cremos, será sobretudo de ordem moral.

Fale-se de Murnau. O filme tem efeitos de montagem, nomeadamente as várias sobreposições de planos, que, sinceramente, me impressionaram, tanto mais tendo em conta o tempo remoto da opus. A cena em que , sentado na sua cama, o Homem evoca a Mulher da Cidade é simplesmente magnífica em termos de construção da imagem. Talvez o que mais sobressaia, contudo, ao espectador seja aquilo que, talvez incorrectamente, chamarei aqui de interpolações. Refiro-me à forma como Murnau intromete entre, direi mesmo, dentro o mesmo title (o ecrã preto usado nos filmes mudos para as falas das personagens) toda uma sequência - analepse ou prolepse, ou tempo psicológico - que esse mesmo title invoca. Algo análogo, mas não igual, sucede quando o casal se beija no meio da estrada, impedindo o trânsito. É fenomenal a forma como Murnau brinca mesmo com os titles, como quando se enuncia o plano do afogamento ou se fala das dívidas contraídas pelo Homem e a tristeza da Esposa, duas informações que aparecem a tempos diferentes no mesmo title. Em retrospectiva à queima-roupa, tenho de reconhecer que, no que toca a aspectos meramente cinematográficos, foi, por certo, a montagem o que mais me impressionou. Permita-se-me evocar aqui a belíssima e profundamente trágica cena em que se intercalam os planos do abraço do Homem e a Mulher da Cidade e o plano do abraço entre a Esposa e o seu filho pequeno: pungente. Também a fotografia merece uma nota especial de louvor. Murnau alcança um obra de um encantador lirismo, algo de que os filmes mudos beneficiam per natura, mas que em Aurora foi puxado ao limite: primeiro filme mudo que vejo na íntegra, Aurora desmentiu-me de todo a assumpção arrogante da inferioridade inocente do cinema do silêncio.

Aurora é a aurora de um homem (como, repito o paralelo dos autores, o é a Ressureição de Tolstoi), recuperado da sua longa noite: não é por acaso que os encontros adúlteros são no escuro e no preto se movem os cabelos da Mulher da Cidade, contrários à luminosidade loira da Esposa. Murnau fez uma obra-prima, rechunchuda de simbolismos, emoções e beleza. Poesia de filme!

sábado, fevereiro 17, 2007

Primeira Curtada §1: Mote

«Nenhum medo é mais estúpido do que aquele que nos faz recear transpor o campo da arte que praticamos. Não há pintura, escultura, música ou poesia, há apenas criação.»

Umberto Boccioni
(fotograma de "O Passo da Cegonha", de Theo Angelopoulos)

sábado, fevereiro 10, 2007

And Viddy Films I Would §7: "Perfume: The Story Of A Murderer", de Tom Tykwer (2006)

Kubrick disse deste filme que era irrealizável: como o disse d'O Senhor Dos Anéis - e todos sabemos as óperas que Jackson esculpiu dos livros de Tolkien. Igual sucede com O Perfume, de Tom Tykwer, conhecido por Lola Rennt (1998), que, infelizmente, ainda não tive oportunidade de ver: este foi, assim, o meu primeiro contacto com o realizador. Não escrevo à queima-roupa: cerca de um mês passou desde que vi o filme nas salas. Deste modo, quanto escrevo é pensado, mas quanto não escrevo foi porque já caiu esquecido.

O Perfume foi uma opus que vi essencialmente pelo buzz que a rodeou - um pouco como vi Marie Antoinette (2006) pela hype que dançava em torno a ela, corte cortejando-a. É curioso que a sorte me tenha levado a, no decurso da review, associar na mesma frase os dois filmes, pois, agora que os tenho lado a lado no pensamento e na memória, vejo como partilham outras duas características importantes: ambos se constituíram como uma surpresa para mim e são, maioritariamente, experiências visuais e, mais genericamente (num genericamente que visa muito particularmente incluir a sua vertente sonora), experiências estéticas. Agora que reconheço o parelelo intentado antes entre as duas fitas entendo porque tão longamente se digladiaram pelo terceiro lugar no meu top pessoal de 2006.

A obra de Tykwer é uma fascinante viagem visual, o que, no filme que é, não deixa de ser paradoxal: Süskind escreveu um livro sobre o sentido olfacto, o filme transforma a experiência olfactiva numa experiência visual, alterando o sentido estimulado. Certamente, como tem sido amplamente referido, durante o visionamento da película praticamente cheiramos, pavlovianamente, os aromas evocados: porém, tal sucede apenas pelo poder total das imagens apresentadas. As cores fortes e a fotografia concordante são um dos trunfos e triunfos do filme: a isso contribui, por exemplo, o violentíssimo ruivo de Rachel Hurd-Wood, a actriz que interpreta Laura, a personagem feminina principal. Não creio que o casting ignorasse já o plano total e compreensivo do filme, contribuindo para o seu impacto estético. A multidão colorida e viva de tons imprime os frames de uma força e beleza que nos faz partilhar, ainda que por meios diferentes, a emoção e admiração de Grenouille pela multiplicidade dos cheiros humanos.

Na construção deste sentimento não é de subestimar, mas sim de relevar e revelar, a importância da banda sonora, a qual me cativou, a mim apreciador delas, profundamente a atenção, pela forma como fez integralmente parte da mise-en-scène, contribuindo decisivamente para o ambiente do filme. Aliás, a este propósito é de escrever dois factos: o realizador Tkywer é também o compositor (lembrando Roberto Rodriguez). Em consequência, num gesto assaz inédito ou, pelo menos, raro, a banda sonora, ou os seus esquissos, foram compostos mesmo antes do filme, o que possibilitou que durante a rodagem de algumas cenas a banda sonora estivesse directamente a passar em fundo. Tal julgo que ilustra bem o papel primordial da música em O Perfume, que, narrando uma experiência olfactiva - incapaz de transmitir pela própria natureza do cinema, metamorfosei-a, contudo, numa experiência, repetimos, visual e, acrescentamos, auditiva.

Em termos de actores, não obstante a boa presença de Dustin Hoffman e Alan Rickman, ambos conhecidos do público cinéfilo, a atenção desvia-se completamente para o relativamente estreante Ben Whishaw (no qual futuramente atentaremos mais com a estreia do bizarro I'm Not There), no papel principal de Jean-Baptiste Grenouille, numa performance suberba, de entrega física a que subjaz, sempre, uma psicológica. O actor captura toda a ambivalência da personagem, dando-lhe corpo e substância: não sem razão muitos leitores do livro têm confessado preferir a personagem na adaptação cinematográfica. Porém, seria incorrecto da minha parte, só porque não aparece na tela, esquecer um dos outros grandes actores do ensemble: John Hurt, o narrador - e quem viu Dogville, saberá a desnecessidade de acrescentar o mais que seja, saberá a obrigação de nos curvarmos - e deliciarmos.

Por fim, no que respeita à estória em si, só posso constatar duas verdades: por um lado, pelo visionamento do filme, compreendi facilmente o porquê de o livro ser dito de culto; por outro, cresceu, como grávido de um alien que depois irrompe pela barriga, o desejo de ler o mesmo livro. De facto, a narrativa, na sua forma quase de um proto-policial, é, na sua essência, uma reflexão sobre um sentido em que pouco pensamos e sobre a forma como ele determina a nossa vida, manipulando-a. Mais filosoficamente, podemos deslindir meditações sobre a efemeridade das coisas, a eternidade, o amor.

O Perfume, em síntese, é um excelente filme, dos melhoríssimos que cruzaram as nossas salas no ano corrido, fiel e dignificante do livro. Uma obra esplendidamente visual e luxuriante mesmo, como alguém o ousou classificar. Sensual, no sentido dos sentidos. Cheira-me a obra-de-arte.

sexta-feira, fevereiro 09, 2007

Speakers' Corner §6: Resposta A Rita [Enquanto A Noite É Cinderela E Não Bate A Meia']

O seguinte post é um comentário-resposta a um outro de uma amiga minha, a Rita - senhora de prática e ciência teatral, co-responsável pelo (con)vivências, que, aqui, na Varanda, da Varanda, inscrito na paisagem algorítmica, contemplamos, como a um rio que nos agrada profundamente. (As palavras a negrito contêm hiperligações).

Desenho de um Feto, Leonardo da Vinci
(ao contrário das outras, esta imagem não representa um embrião com dez semanas)

Há uma semana que aqui estou para te escrever, Rita, mas todo um conjunto de circunstâncias, maçudo para ser enumerado, me impediu. Estou a comentar tendo o teu texto ao lado, por isso vou seguir a tua ordem de argumentação.

Parece-me que Frei Bento Domingues, na frase que citas, cai numa falácia. Não se trata, e nisso concordo, como ele bem diz, de saber quem é ou quem não é pelo aborto. (Abro aqui um parêntesis: parece-me que há dois tipos de "sim": um humanista, outro ideológico. O humanista - no qual tu nitidamente te inseres - coloca a tónica no problema do aborto clandestino e do problema que ele representa; o ideológico defende que o aborto é, efectivamente, um direito da mulher, e estes, não sendo pelo aborto, não são contra o aborto, no sentido em que não reconhecem nele necessariamente um mal, algo, a priori, nefasto. Eu sei que parece incrível como pode haver pessoas que não vejam no aborto um mal em si - e partilho parte da tua ingenuidade, como lhe chamaste. Porém, parece indesmentível que as há, ainda que sejam uma minoria e se filiem, normalmente, mais à esquerda - apesar de, obviamente, o aborto não ser uma questão política. Se faço uma falsa leitura da realidade, peço desculpa: às vezes tenho os óculos embaciados).

Volto a Frei Bento Domingues, mas, desta feita, à segunda parte da sua afirmação, com a qual já discordo, em que ele diz: "mas quem é ou não pela penalização da mulher que aborta neste prazo e nestas condições". Aqui entramos numa questão, parece-me, importante. O que vou afirmar é já um clichê e peço desculpa por o repetir: para além da despenalização, está também em causa neste referendo a liberalização do aborto. Passo agora a explicar isto da melhor forma que me é possível, de modo a poder contribuir para te elucidar relativamente a como é possível que haja partidários do "não" que, ainda assim, defendam a despenalização - dúvida esta que expressaste no teu último comentário.

O que neste referendo se vota não é só "quem é ou não pela penalização da mulher que aborta" mas "quem é ou não pela penalização da mulher que aborta neste prazo e nestas condições", que, acrescento, lhe são oferecidas pelo Estado.

Antes que continue, sou forçado a declarar-me ignorante do calão jurídico exacto e preciso, pelo que, juridicamente, posso não rotular tudo correctamente: porém, penso que conseguirei transmitir a minha ideia. Tomemos o caso da droga, que penso que é muito claro para ilustrar esta ideia. Consumir droga, tanto quanto saiba, e peço desculpa se estou mal informado e por isso estou a apresentar argumentos inúteis e falsos; consumir droga, dizia, não é crime, mas somente ilegal, em Portugal. Eu não vou para a prisão por consumir droga, nem sequer vou a tribunal: simplesmente a droga é-me apreendida, porque é ilegal o seu consumo. Contudo, o tráfego de droga, esse sim, é não só ilegal como punível com prisão. Porquê esta diferença? Eu, que não sou jurista e disso pouco ou nada entendo, arrisco-me a dizer que tal se deve ao facto de o traficante arrecadar dinheiro do tráfego (ou seja, tem proveito próprio) enquanto o consumidor acaba por sofrer, já que a droga leva à sua auto-destruição. Assim, porque, a priori, o consumidor já é punido por si próprio e pela vida, a sociedade escusa-se a puni-lo, tendo em conta o seu sofrimento auto-inflingido. Agora, o traficante, esse, que lucrou com a miséria dos outros, justamente deve ser punido. Algo, contudo, é inequívoco: a droga é vista como algo inerentemente mau, daí o Estado considerá-la ilegal.

Transferindo agora este exemplo para o caso do aborto e para a proposta de despenalização, mas não liberalização, do aborto, temos que o aborto seria despenalizado, visto a mulher que aborta sofrer bastante em todo o processo e, portanto, não necessitar de um sofrimento adicional inflingido pela sociedade. Porém, o aborto poderia, coerentemente, como no caso da droga, continuar a ser ilegal, uma vez que o Estado o reconheceria como algo intrinsecamente negativo. Mais, as abortadeiras, tal como os traficantes, seriam, essas sim, punidas, por lucrarem com o desespero e sofrimento dos outros.

Portanto, apesar da genialidade cómica do sketch do Gato Fedorento em que, na pessoa do professor Marcelo, gozavam com esta posição de alguns defensores do "não", ela está longe de ser inconsistente ou incoerente ou paradoxal, parece-me, tendo mesmo paralelos com outras situações na lei, como a da droga.

Poder-se-ia agora argumentar que tudo isto é muito interessante, mas mais interessante ainda é só agora, em campanha, com a ameaça de perderem, os movimentos do "não" começarem a apoiar estas alternativas mais liberais, apesar de tudo. Ora o erro neste pensamento (eu sei que tu não disseste isto, Rita, estou simplesmente a fazer o contraditório a mim mesmo) é julgar que os movimentos do "não" já não o propuseram antes mesmo do referendo. De facto, no Verão passado, uma inciativa legislativa de cidadãos - Proteger a Vida sem Julgar a Mulher - procurou exactamente isso.

Eu sou contra a penalização da mulher que aborta. Por isso, consequentemente, deveria votar "sim". Porém, a pergunta, para além de questionar o cidadão sobre a penalização ou despenalização, adicionalmente, interroga-o sobre a o direito ou não da mulher a abortar em estabelecimento legalmente autorizado nas primeiras dez semanas. Se nos limitássemos a despenalizar o aborto, este continuaria a ser praticado clandestinamente, porque ilegal, mas não seria punido. Não é isso que vai acontecer no referendo se o "sim" ganhar: o aborto passa a ser um direito (ainda que não consagrado juridicamente enquanto tal, como indicas) da mulher - trata-se não da despenalização, mas sim da legalização (termo quiçá mais elucidativo que "liberalização", que usei até agora) do aborto.

Adenda: tenho estado sempre a utilizar o termo "despenalização" como sinónimo de algo deixar de ser punível, mas, ainda assim, permanecer ilegal.

Falas, citando Vital Moreira, de "desclandestinização". Podia recorrer agora aqui a alguns argumentos, como dizer que o aborto clandestino vai continuar depois das dez semanas (que se revelaram insuficientes, por exemplo, no caso francês, que sentiu depois a necessidade de alongar o prazo para as doze). Porém, isso seria desviar o problema para números e estatísticas que, pela sua própria natureza, são, tendencialmente, perigosos.

Aqui chegamos a um ponto de base, penso eu. Tu, perdoa-me se te estou a interpretar mal, pareces-me essencialmente realista, enquanto eu me posiciono como idealista. Isto é, temos um facto: o aborto clandestino existe e prejudica, muitas vezes, a saúde das mulheres de uma maneira que não se pode subvalorizar. Tu, enquanto realista, face a este facto, na tua postura humanista, procurando aliviar o sofrimento dessas mulheres, e sabendo que o aborto continuará, legal ou não, preferes legalizá-lo. Eu, sabendo que o aborto continuará, teimo, ainda assim, em acreditar que poderemos inverter essa tendência por toda uma série de acções e instituições, olhando para a legalização do aborto como uma concessão no sentido errado.

Quero que se saiba: não estou a censurar a tua posição. Sei que a tua intenção é boa e é bom o espírito que te anima, um olhar humanista sobre o sofrimento alheio. Simplesmente, parece-me, divergimos na forma como olhamos para o futuro - o que não é necessariamente mau ou bom, mas tão simplesmente diferente.

É verdade que a Educação Sexual está no papel há mais de vinte anos; que os contraceptivos, apesar de serem cada vez mais vendidos, continuam a não ser utilizados por alguns casais; que as instituições sociais que surgiram depois do referndo de 1998 têm vindo a fazer um trabalho imenso a ajudar as mulheres, mas, que, contudo, esse trabalho se tem revelado insuficiente (certamente, em parte, por falta de apoios), ou o aborto clandestino ter-se-ia reduzido para números (ainda que todos os números, nesta matéria, sejam incertos) virtualmente insignificantes. Porém, eu acredito que é este o caminho. Legalizar o aborto - ainda que só como passo provisório para uma crescente redução dos abortos em resultado das medidas já hoje praticadas e anteriormente anunciadas - parece-me ser desnecessário, visto que legalizar o aborto, penso eu, não reduzirá o aborto: qualquer redução do número de abortos, julgo, resultará de outros factores. Legalizar o aborto não é combater o aborto, mas sim, na melhor das hipóteses, minimizar o sofrimento físico (o psicológico, esse, a haver, é irredutível) das mulheres.

Aqui, faria, a pena de me tornar repetitivo, mais um paralelo com a droga: obviamente que o consumo de droga causa sequelas (e, como todos sobejamente sabemos, mortes) - é tarefa da sociedade, ainda que censure esse comportamento, ajudar os que se drogam, "limpando-os" e reabilitando-os, prestando-lhes o serviço médico necessário para, de alguma forma, minorar as consequências do seu mau gesto. O mesmo penso que podia ser dito para o aborto - e peço desculpa se, enquanto escrevo, não estou a medir o alcance da comparação e, de alguma forma, me estou a arriscar a parecer desumano ou se estou mesmo a sê-lo. Se esta comparação que tenho vindo aqui a usar enferma de um erro de base grave, por favor, apontem-mo para eu me corrigir e não usar mais esta metáfora noutras conversas.

Avanças em seguida para a questão do começo da vida humana. Dizes: "O problema é que, para despenalizar o aborto, para acrescentar uma alínea ao artigo do Código Penal, será sempre preciso estabelecer um prazo, sob pena de se cair na arbitrariedade total." Sei que o projecto do PCP prevê, coerentemente, que nunca se penalize a mulher, independentemente da semana em que praticar o aborto. O problema emerge quando falamos da tal "legalização" do aborto, porque, penso que parece claro à maioria das pessoas, independentemente da sua posição, o aborto, mesmo que legal, não o pode ser até aos trabalhos de parto.

Contudo, interrogo-me, não será também arbitrariedade total o prazo estabelecido? Citaste o Pe. Anselmo Borges: "a gestação é um processo contínuo até ao nascimento. Há, no entanto, alguns “marcos” que não devem ser ignorados." Parece-me que se pode considerar justamente um desses marcos o momento em que o coração passa a bater, algo que sucede antes das 10 semanas (21 dias depois da concepção: vide Wikipedia). Parecer-me-ia mais razoável - ainda que continuasse a discordar - legalizar o aborto antes das cinco semanas (altura em que o coração passa a bater) do que antes das dez. Se o cérebro é importante, não menos relevante me parece o coração, e não sinto dificuldade em dá-lo como um dos «marcos» de que falava o Pe. Anselmo Borges, repito. O cérebro aparece-me apenas como o estágio de desenvolvimento mais importante - e não o decisivo - do embrião depois do coração ter começado a bater.

Quanto à questão do morte cerebral como data e marca da morte, as duas situações não se me apresentam comparáveis: é que, no doente "terminal", o coração, já com o cérebro morto, é mantido a bater mas por intermédio único de uma máquina, não por meios naturais; em contrapartida, no caso do embrião, o coração bate por si, representando assim a clara existência de uma vida autónoma. E, independentemente dessa vida ser uma «pessoa» ou não (não entrarei aqui nesse debate), é, julgo, inequivocamente, uma vida. Chamo, para concluir este ponto, a atenção para a definição de "ser vivo" (a respeito da definição apresentada, resalvo que o embrião, obviamente, é incapaz de se reproduzir, mas tem essa potência, como as crianças). E este ser vivo, sabêmo-lo, pertence inevitavelmente à espécie homo sapiens sapiens, pelo que é, dito mais simplesmente, um ser humano (se é pessoa ou não é uma questão bem mais complexa, pela qual, se me desculpas, não enveredarei agora).

Escreves mais à frente: "O que vai a referendo é, como disse no início, saber se uma mulher que faça um aborto no prazo e nas condições previstas deve ou não ser penalizada." Como já procurei - com sucesso ou sem ele - responder a este argumento anteriormente, mostrando como, para além da despenalização votamos também a legalização do aborto, não o abordarei de novo aqui.

"A única fragilidade deste argumento é que, votando não e mantendo o aborto clandestino tal como está, o direito à vida do embrião continuará a ser violado descaradamente – e o da mulher também." Concluis assim. Sobre isto também já disse anteriormente a razão do nosso diferendo: tu seres realista, eu idealista. E, repito, esta constatação da nossa diferença não implica nenhum juízo de valor negativo, porque te sei como um "sim" humanista e não ideológico, o que, porém, também não implica que siga a tua opinião.

Gostei de ler o que escreveste e gostei de escrever esta resposta, pois obrigou-me também a pensar muito na minha própria posição. Dia 11, logo saberemos, de noite, os resultados. Aconteça o que acontecer, depois teremos sempre uma luta comum: a de reduzir o número de abortos. Estou convencido que o "sim" triunfará. Depois veremos o rumo que as coisas tomarão: não defendo de modo nenhum cenários apocalípticos como certos defensores do "não", nem me arrisco a dizer que o número de abortos vai necessariamente aumentar: duvido é que baixe, mau grado o recentíssimo aconselhamento que agora o PS quer introduzir no projecto-lei.

Mais uma vez, obrigado pelo teu texto e pela oportunidade de reflexão mútua que abriu; texto calmo, no meio de tanta trapalhada (como se calhar é a minha resposta) que circunda out there.