Kubrick disse deste filme que era irrealizável: como o disse d'O Senhor Dos Anéis - e todos sabemos as óperas que Jackson esculpiu dos livros de Tolkien. Igual sucede com O Perfume, de Tom Tykwer, conhecido por Lola Rennt (1998), que, infelizmente, ainda não tive oportunidade de ver: este foi, assim, o meu primeiro contacto com o realizador. Não escrevo à queima-roupa: cerca de um mês passou desde que vi o filme nas salas. Deste modo, quanto escrevo é pensado, mas quanto não escrevo foi porque já caiu esquecido.
O Perfume foi uma opus que vi essencialmente pelo buzz que a rodeou - um pouco como vi Marie Antoinette (2006) pela hype que dançava em torno a ela, corte cortejando-a. É curioso que a sorte me tenha levado a, no decurso da review, associar na mesma frase os dois filmes, pois, agora que os tenho lado a lado no pensamento e na memória, vejo como partilham outras duas características importantes: ambos se constituíram como uma surpresa para mim e são, maioritariamente, experiências visuais e, mais genericamente (num genericamente que visa muito particularmente incluir a sua vertente sonora), experiências estéticas. Agora que reconheço o parelelo intentado antes entre as duas fitas entendo porque tão longamente se digladiaram pelo terceiro lugar no meu top pessoal de 2006.
A obra de Tykwer é uma fascinante viagem visual, o que, no filme que é, não deixa de ser paradoxal: Süskind escreveu um livro sobre o sentido olfacto, o filme transforma a experiência olfactiva numa experiência visual, alterando o sentido estimulado. Certamente, como tem sido amplamente referido, durante o visionamento da película praticamente cheiramos, pavlovianamente, os aromas evocados: porém, tal sucede apenas pelo poder total das imagens apresentadas. As cores fortes e a fotografia concordante são um dos trunfos e triunfos do filme: a isso contribui, por exemplo, o violentíssimo ruivo de Rachel Hurd-Wood, a actriz que interpreta Laura, a personagem feminina principal. Não creio que o casting ignorasse já o plano total e compreensivo do filme, contribuindo para o seu impacto estético. A multidão colorida e viva de tons imprime os frames de uma força e beleza que nos faz partilhar, ainda que por meios diferentes, a emoção e admiração de Grenouille pela multiplicidade dos cheiros humanos.
Na construção deste sentimento não é de subestimar, mas sim de relevar e revelar, a importância da banda sonora, a qual me cativou, a mim apreciador delas, profundamente a atenção, pela forma como fez integralmente parte da mise-en-scène, contribuindo decisivamente para o ambiente do filme. Aliás, a este propósito é de escrever dois factos: o realizador Tkywer é também o compositor (lembrando Roberto Rodriguez). Em consequência, num gesto assaz inédito ou, pelo menos, raro, a banda sonora, ou os seus esquissos, foram compostos mesmo antes do filme, o que possibilitou que durante a rodagem de algumas cenas a banda sonora estivesse directamente a passar em fundo. Tal julgo que ilustra bem o papel primordial da música em O Perfume, que, narrando uma experiência olfactiva - incapaz de transmitir pela própria natureza do cinema, metamorfosei-a, contudo, numa experiência, repetimos, visual e, acrescentamos, auditiva.
Em termos de actores, não obstante a boa presença de Dustin Hoffman e Alan Rickman, ambos conhecidos do público cinéfilo, a atenção desvia-se completamente para o relativamente estreante Ben Whishaw (no qual futuramente atentaremos mais com a estreia do bizarro I'm Not There), no papel principal de Jean-Baptiste Grenouille, numa performance suberba, de entrega física a que subjaz, sempre, uma psicológica. O actor captura toda a ambivalência da personagem, dando-lhe corpo e substância: não sem razão muitos leitores do livro têm confessado preferir a personagem na adaptação cinematográfica. Porém, seria incorrecto da minha parte, só porque não aparece na tela, esquecer um dos outros grandes actores do ensemble: John Hurt, o narrador - e quem viu Dogville, saberá a desnecessidade de acrescentar o mais que seja, saberá a obrigação de nos curvarmos - e deliciarmos.
Por fim, no que respeita à estória em si, só posso constatar duas verdades: por um lado, pelo visionamento do filme, compreendi facilmente o porquê de o livro ser dito de culto; por outro, cresceu, como grávido de um alien que depois irrompe pela barriga, o desejo de ler o mesmo livro. De facto, a narrativa, na sua forma quase de um proto-policial, é, na sua essência, uma reflexão sobre um sentido em que pouco pensamos e sobre a forma como ele determina a nossa vida, manipulando-a. Mais filosoficamente, podemos deslindir meditações sobre a efemeridade das coisas, a eternidade, o amor.
O Perfume, em síntese, é um excelente filme, dos melhoríssimos que cruzaram as nossas salas no ano corrido, fiel e dignificante do livro. Uma obra esplendidamente visual e luxuriante mesmo, como alguém o ousou classificar. Sensual, no sentido dos sentidos. Cheira-me a obra-de-arte.
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