domingo, abril 29, 2007

And Viddy Films I Would §11: Quinta Interrupção da Despedida Para Anúncio

Norman McLaren no TAGV
Dias 14, 15 e 16 de Maio, 2007 (21:30)
Em Baixo: "Neighbours" (1952) (8'10'')

sábado, abril 28, 2007

Moleskines §10: Quarta Interrupção Para Homenagem Breve e Apressada, Prometendo, no Futuro, Uma Melhor

Há, quando leio (ou vejo, como hoje) Corto Maltese, uma belle tristesse que me invade por aquele que justamente chamaram de «o último herói romântico». Pratt, escritor maior, desenhou esse marinheiro maltês a quem, no tempo em que a minha casa ficava num promontório (que era o mais longe que eu conseguia ir ao ventre do mar sem embarcar), eu acolhia sob o meu tecto, se ao menos ele me tivesse conhecido. Tenho a certeza do meu insolúvel anacronismo. Sempre que me abandonas, Corto, porque partes para uma qualquer outra aventura que fica fora das páginas de Pratt, sou uma daquelas mulheres formidáveis que povoam o teu mundo e se despedem sem um beijo e uma lágrima. Há uma certa nobreza nisto tudo irremediavelmente perdida pelo Tempo, o qual, como sabes, na sua pressa de correr, como quem desce uma rua muito rápida para apanhar o navio do cais, perde objectos de valor que lhe vão saltando dos bolsos na forma desorientada da velocidade com quem corre e, porque são pequenos e quando caem não fazem barulho, não nota senão a falta deles quando, no navio, já partido, no seu compartimento, percebe a sua ausência e se põe a pensar onde os perdeu. Quem me dera vaguear pelo mundo, sempre calmo e triste, e ver em cada mulher a sua justa beleza e em cada proposta uma aventura sem heroísmo. Sinto que te podia ter sido, não foras tu uma personagem de banda desenhada e um homem teu criador. Se ao menos pudesse dormir uma noite na tua terra de fábulas, Corto! Ai! Quando eu for grande, quero ser Corto Maltese.

domingo, abril 22, 2007

Speakers' Corner §7: Terceira Interrupção da Despedida Para Grito

DARFUR. Todos lemos uma vez o nome, num jornal, só para vermos a publicidade na página ao lado. E, por vezes (não me recordo bem quando), qualquer coisa, vaga, como a neblina do sebastião, atravessava o telejornal uma vez em cada semestre, se tanto, com a duração máxima estipulada de um minuto, porque, a bem dizer, todos sabemos que as donas de casa e os maridos não gostam de ver pretos a morrerem à fome, para mais há as criancinhas à mesa, estas televisões já não têm sensibilidade nenhuma, não pensam nos mais pequenos, ó filhos, não olheis, mamã, podemos ver os morangos?, sim, filhinhos, isso é que são coisas adequadas para vocês, não isto, já não há respeito pelos momentos de família, à hora do jantar, onde é que isto já se viu. E o pai faz zap. Curiosamente, não tenho qualquer memória da rádio falar da «coisa» (guardemos a designação abstracta para a coisa abjecta, aliás, não conversemos disso, a final do chelsea contra o manchester é que vai ser um grande jogo, não é verdade? [café aos lábios] sim, sim, isso é que vai ser!).

DARFUR. A palavra já nos rebolou pelos ouvidos, como a pedra caída ao poço, e ecoou no seu trapezismo de choque contra as paredes do abismo da memória, só para se sepultar, silenciosa, na água-mãe em que tudo nasce e morre. Hah, os tambores, Pippin, os tambores! A pedra caída e calada regurgita uma horda e um demónio - e não temos um Gandalf e um cachimbo para decidir na minas da (Me)Moria. Acordamos uma coisa mais antiga do que o tempo pelo simples facto que acordamos nós: o mundo é uma perspectiva. A besta ardia já há muito tempo, mas a sonharmos ovelhas, quem diria que o leão, quando acordássemos, o víssemos de mandíbulas abertas a nós? E ele só escancarou as presas porquanto nós escancarámos os olhos.

DARFUR. Vamos, vamos!, arrastemo-nos ao espelho! Transforma o teu espelho numa janela: o material é o mesmo: areia e vidro! Que vês agora? Que olho agora? Há eu não quero ver mais isto, por favor, eu não quero ver mais isto! Não, Alex, tens de continuar o teu tratamento. Por favor, por favor, peço-vos!, imploro-vos, lambo-vos!, eu já não suporto estas imagens de violência, não percebo, mas eu - que as vi e pratiquei mil vezes no meu tempo de juventude - não as suporto mais, não as aguento mais: atlas deixou cair o mundo porque lhe doíam as omoplatas! Não, Alex, tens de continuar o teu tratamento. Isto é para teu bem. Sabes que isto é para teu bem, não sabes? Sim, mas eu não quero mais, por favor, libertem-me, não me podem fazer isto! Deixem-me fechar os olhos! Não, Alex, tens de continuar o teu - o nosso tratamento.

DARFUR.
África começou mal, África está mal. Eu nasci em África, quando era somente uma Lucy num céu de diamantes e arqueólogos me descobriam e brincavam comigo nessa minha infância muito remota. Mas hoje eu cuspi sobre a escada que me levou mais alto e rasguei o álbum da tia dulce. Mundo-pietá em que Cristo morto é África! Um dia, uma semana, olhemos! Isto não pode continuar assim. Quando éramos pequenos, houve um genocídio, num underground chamado Balcãs, mas éramos crianças e os Balcãs devia ser aquele sítio na escola a que os mais velhos nos proíbiam de ir (as outras crianças diziam que eles tinham aquele canto para fumarem ou coisas ainda piores jamais desvendadas porque quando eu mesmo me tornei grande andava já noutra escola). A nossa geografia era do tamanho da nossa casa e vila. Mas hoje, hoje, caramba!, somos ou não homens e mulheres? Não temos cabelos bastos e basta barba e seios maduros e lábios vermelhos? Se calhar, temos tudo isso por fora, e não temos nada por dentro. Quando éramos crianças, não tínhamos pena das rãs que púnhamos dentro de garrafas e apanhávamos dos charcos de lama, mas quando entramos para os escuteiros disseram-nos que isso era feio. Onde está a nossa aprendizagem? E hoje não são mais sapos dentro de garrafas, são corpos dentro de caixões (e isto quando escapam à vala comum e a às moscas). Houve um genocídio num tempo em que ainda nem éramos crianças e educaram-nos para repudiarmos vivamente um homem de bigode à Pessoa (pobre Pessoa, o que te havia de acontecer ao bigode!) e tudo quando ele houvera feito: as suásticas eram cruzes sem rip. Pois bem, cuspo-vos a verdade para cima (e entre o tempo em que a saliva paira no ar no seu trajecto, eu movo-me para me juntar a vós e recuperar os seus salpicos sobre o meu rosto): está a acontecer um genocídio! GENOCÍDIO! E nós permitimo-lo. Permitimo-lo, primeiro, pela nossa ignorância, segundo, pela nossa inacção. Ah, também eu era, verdadeiramente, ignorante até há meia hora atrás. Tinah escutado a palavra, mas sabia tanto de lá como sei o nome do primeiro ministro da birmânia que, ao que tenho conhecimento, tem em comum com o nosso não ser engenheiro. Ah, eu agora não sei tudo, mas sei o que preciso de saber! Deus! Eu andava preocupado em não ser ignorante no domínio da banda desenhada e ia mesmo amanhã ao dr.kartoon para o senhor com o qual nunca falei mas me disseram que sabe muito muito muito me aconselhar que livros eu, que só amo corto maltese como uma reencarnação passada, haveria de ler! Argh, eu andava preocupado com esta ignorância e afinal estava a acontecer um genocídio nas minhas barbas que a minha mãe não me deixa crescer e eu não sabia! Que ninguám diga mais que não sabe! Só quando todos souberem podemos, como num vietname, passar à acção e na nossa incapacidade estender o braço e ajudar o que pudermos. Mas primeiro nós temos que saber! É preciso que todos saibam! É necessário que África não seja mais a sarjeta do mundo, o resort turístico a que o primeiro ministo vai passar férias à custa do contribuinte! Sim, é importante conseguirmos a demissão do elefante-besta que é a ministra da educação! Sim, é importante desmascarar a mentira do sorriso falso de crocodilo do filósofo português e a sua engenharia! Sim, é importante acabar com esta nojice que se tornou Portugal! Mas, sim!, é mais importante que tudo isto, é mais importante que nós, acabar com Darfur, acabar com o genocídio de Darfur, acabar com o silêncio ante o genocídio de Darfur! É preciso que se instalem altifalantes nas avenidas das principais cidades e que ciclicamente oiçamos sobre nós os gritos dos órfãos de Darfur, o choro das mães de Darfur, os passos dos deslocados de Dafrur, o ódio dos soldados de Darfur, os suspiros dos mortos de Darfur! É importante que Darfur se torne símbolo do horror, para que se torne símbolo da salvação que foi aportada ao horror. É importante que cada criança na primária diga Darfur e sinta um arrepio na espinha e sinta que tem de agir e sintamos que somos todos crianças outra vez mas o Darfur não é onde ficam os Balcãs é onde fica o Darfur! É onde morrem as crianças que não vão à primária e nunca tiverem uns Balcãs que fosse onde os mais velhos fumavam cigarros às escondidas! Ai, Darfur tem que ser, verdadeiramente, sempre que pronunciado, acompanhado por uma lágrima na mão direita e dedos abertos na mão esquerda. Darfur não pode ser esquecido. Darfur precisa de nós. Temos de provar que somos humanos. Temos de provar a nós mesmos que somos humanos para não chegar ao fim da vida a sermos, a sermos, a sermos nem eu sei o quê! Quem cala, consente; Quem com-sente, não cala.

DARFUR. Esta é a semana Dias Globais por Darfur. O apelo é simples: divulguemos com cada brônquio dos nossos pulmões o genocídio que está a ocorrer no Darfur. Nos nossos blogues coloquemos a pequena imagem que é o símbolo desta campanha e demos a conhecer a nós mesmos e ao mundo que não é mais do que um espelho de nós mesmos (porquanto o mundo é aquilo que nós fazemos dele) o massacre de África. Gostava de, pela minha blogosfera pessoal, encontrar em todos os blogues esta bandeira de grito de munch. Há que soltar um grito imenso, há que berrar um grito imenso, há que gritar um grito imenso!:
darf ui ui ui ui ui ui ur!



segunda-feira, abril 16, 2007

And Viddy Films I Would §10: "300", de Zack Snyder (2007)

O seguinte texto é uma versão preliminar de um artigo para o Boletim de Estudos Clássicos. Está feito para um público específico (o da revista, ou seja, os classicistas), mas houve uma certa preocupação de, no geral, fazer um texto aberto a qualquer leitor. Peço desculpa por esta contigência e pelo tamanho da review, que aborda vários pontos. Optei por não esperar pela versão final do artigo, corrigida pela minha professora, para reactivar o re-bobina no qual há algum tempo que não posto, para grande pena minha, pois tenho visto filmes que bem mereceriam antes o espaço e a atenção que 300 lhes está a roubar.

300, segunda obra do realizador Zack Snyder, que se estreou com O Renascer dos Mortos (2004) – aclamado remake do filme homónimo de George Romero – revisita a Batalha de Termópilas em jeito de hagiografia de Leónidas e dos seus guerreiros com base na banda desenhada de 1998 de Frank Miller, um dos mais originais artistas da nona arte. O filme, blockbuster fora de época, rapidamente se tornou num dos mais vistos este ano nos EUA. Desde a sua apresentação no Festival de Berlim, 300 tem sido alvo de polémicas leituras políticas. O Irão classificou o filme como propaganda americana, numa altura de reconhecida tensão diplomática entre os dois países. O próprio presidente, Mahmoud Ahmadinejad, criticou a representação dos Persas na película.

Este género de ataques, lamentavelmente, não é novo. Recordamos os casos de Apocalypto (2007), de Mel Gibson, ou Alexandre (2004), de Oliver Stone. Subjacente a todos eles encontramos um anacrónico nacionalismo cego da parte dos queixosos e uma incapacidade de compreender os pressupostos do ofício artístico. Concedemos, eventualmente, que 300 seja pró-ocidental, na forma como, fiel à mentalidade helénica, transpôs para o ecrã a firme oposição entre gregos e bárbaros. Porém, que se procure fazer equivaler Leónidas a Bush e os espartanos aos marines é simplesmente risível. A este propósito, seja-nos permitido citar as palavras de Vasco Baptista Marques, crítico do Expresso: “Que alguém acredite que este paroxismo de boçalidade faça parte de uma guerra psicológica leva-me a crer que os EUA estão perto de conquistar o mundo pela estupidez”.

Outros, contudo, têm visto em 300 uma peça de propaganda fascista. Se Esparta era, a nosso ver, um estado protototalitário – mau grado o anacronismo que o termo possa conter, de forma alguma reconhecemos no filme uma apologia das práticas eugenistas da Lacónia ou da suposta superioridade da inventada raça ariana. Vários críticos têm evocado nos seus textos o díptico Olympia (1938), da amaldiçoada Leni Riefensthal, esquecendo que a inspiração directa da jovem realizadora para a sua sinfonia de corpos em Berlim foi o ideal grego da kalokagathia. Os próprios alemães reconhecem que 300 apenas retrata o modus vivendi espartano, sendo exagerado entendê-lo como propaganda neonazi. O filme é puro entertainment inócuo: 300 não é V de Vingança (2005).

O debate em torno destas questões mediáticas tem, em parte da crítica, substituído a discussão sobre o mérito cinematográfico da obra. Esta, na esteira de experiências como Sky Captain e o Mundo de Amanhã (2004), de Kerry Conran, ou Sin City (2005), de Roberto Rodriguez, impõe-se como acontecimento cinematográfico pela construção a computador da totalidade dos cenários, procurando, por esse meio, capturar o visual tão próprio da banda desenhada mãe no grande ecrã. Tal técnica, não sendo já inédita, não pode, contudo, deixar de gerar uma certa expectativa e curiosidade no cinéfilo. Vinheta por vinheta, o novela gráfica de Miller é decalcada e, graças ao hercúleo trabalho do departamento de efeitos especiais, constrói-se um ambiente que Zack Snyder acertadamente definiu como “surreal”, com um tratamento heterodoxo da cor e da imagem.

É inevitável traçar uma comparação entre 300 e Sin City – igual técnica, mesmo autor. Contudo, o primeiro sai claramente desfavorecido quando comparado com o fresco e violento film noir de Rodriguez, possivelmente o melhor que nos foi concedido ver no seu ano. Especulamos que tal se justificará, por uma lado, pela mais óbvia diferença entre ambas as películas, a saber, a paleta cromática – Sin City é, pela própria exigência do género, a preto e branco; por outro, pela natureza do argumento. De facto, satisfeita a natural curiosidade pela sua inovação plástica, 300 esgota-se. O filme conserva uma certa faceta épica, mas reduz-se, na sua essência, a um mero action flick. Dos personagens, espera-se somente que lutem em coreografias sanguinolentas, herdeiras de Matrix – registe-se o ambundante recurso ao bullet time ao som de faixas de industrial rock. Não obstante os dramas menores que Zack Snyder criou para a versão cinematográfica da opus de Miller, estes limitam-se a abrandar a acção, sem gerarem no espectador verdadeiro interesse pelo destino das personagens. Neste aspecto, a banda desenhada capturava mais o drama interno de Leónidas.

A Gerald Butler, actor quase-revelação, reconheça-se o mérito de conferir uma certa espessura psicológica a Leónidas, encarnando bem a figura de Miller na obra original. Zack Snyder merece menção pela sua ousadia em avançar com um projecto desta natureza, mas o seu mérito enquanto realizador dissolve-se em parte por detrás das vinhetas da novela gráfica das quais se serviu como storyboard, sem que, por isso, juntasse, como fez Rodriguez em Sin City, o nome de Miller ao seu nos créditos. Os verdadeiros elogios devem recair sobre os diversos departamentos responsáveis pela pós-produção do filme. Para além da louvada secção de efeitos especiais, especial destaque para o design de som. Snyder recomenda apropriadamente um alto volume nas projecções.

Certos críticos têm afirmado que 300 redefiniu os peplums, mas trata-se de uma hipérbole dizê-lo. Pelo contrário, a película, por exemplo, pede emprestado a Gladiador (2000), de Ridley Scott – o verdadeiro refundador do género épico-histórico de fundo greco-romano – o conhecido motivo da seara desse filme. Inclusive em certos trechos da banda sonora tem-se reconhecido linhas melódicas de Hans Zimmer para Gladiador. Será, porventura, mais verdadeiro, considerar, modestamente, 300 um filme interessante enquanto objecto estético que, proporcionando aos que isso procuram acção de qualidade, não consegue, contudo, existir para lá de um primeiro visionamento. Exercício de estilo, encontra-se desprovido de substância maior. Num projecto cujo único nome de peso era Frank Miller convém pois que fique explícito: 300 não é Sin City.

O filme, ingratamente, só pode ser, de facto, comentado em comparação, por um lado, com a película de Rodriguez em que se filia, por outro, com a obra de Miller que adapta. Quanto a esta última, confesse-se que 300 é de sobremaneira fiel à BD. O maior desvio a esta consiste ainda em todo um enredo menor envolvendo a esposa de Leónidas, Gorgo, e uma câmara indistinta que é a tempos a Gerusia e a Apella. Gorgo procura obter junto de um dos seus membros uma audiência perante o Conselho – designaremos assim, neutralmente, tal órgão – para convencer os espartanos a enviarem reforços a seu esposo. A Assembleia, porém, é controlada por Theron, político ambicioso. O confronto final entre este e a rainha de Esparta constói-se, em jeito de clímax, paralelamente ao último dia da Batalha de Termópilas. Este enredo com Gorgo visa apenas conferir maior protagonismo à personagem feminina e introduzir, desse modo, uma intriga amorosa, segundo os padrões do politicamente correcto de Hollywood, que, com este estratagema, procura atrair o público feminino. Nisto se confirma o carácter apolítico de 300, obediente ao establishment, o qual é, por definição, avesso à controvérsia e à polémica. A mesma técnica observamos, por exemplo, n'O Senhor dos Anéis, onde também a principal alteração relativamente à obra de Tolkien foi o desenvolvimento da romance entre Aragon e Arwen.

De resto, em 300, refira-se ainda, como alterações a nível do argumento, o drama menor do capitão que vê o filho tombar, decapitado, em batalha, e a introdução de três criaturas fantásticas, a saber, um gigante disforme membro dos Imortais, um rinoceronte excepcionalmente grande e um carrasco mutante semihumano. Mencione-se igualmente o aparecimento de uma espécie de granadas avant-la-lettre e uma curta cena a caminho de Termópilas, em que o exército passa por uma cidade arrasada por um grupo de batedores. São, a bem dizer, acrescentos inócuos, que em nada traem o espírito da BD – de resto, Frank Miller foi consultor executivo do filme. Aliás, as melhores falas e sequências são precisamente as mais fiéis à novela gráfica, como aquela para que remete o título do nosso artigo – uma das nossas preferidas – inteligentemente adaptada para a tela.

Esta semelhança com a obra original significa que 300 herda directamente dela tanto as suas potencialidades para o classicista enquanto objecto didáctico, como também os vários erros históricos, estes, diríamos, mais a nível da representação do mundo antigo e seus personagens do que propriamente no que respeita à sucessão de eventos, em que Miller e Snyer se mantêm, grosso modo, próximos de Heródoto. O realizador, inclusive, exageradamente, chegou a afirmar que noventa por cento do filme era historicamente correcto.

Particularmente feliz é o retrato da agogê, nos seus múltiplos pormenores. Em Esparta, esta culminava num ritual de passagem – a krypteia – em que os melhores jovens, em pequenos grupos, eram enviados para os campos a fim de, pela calada, assassinarem alguns hilotas (Plu. Lyc. 28, 3-7). Necessariamente, numa narrativa dualista que apresenta os espartanos como bastião único da liberdade contra a tirania persa, a krypteia é representada em moldes diferentes – não há, de resto, em todo o filme, qualquer menção à hilotia. Assim, em 300, Leónidas parte solitário para defrontar um temível lobo, regressando, em evocação de Hércules, coberto da pele da besta e sendo aclamado rei. Ora Heródoto (7.204) diz-nos que Leónidas só subiu ao trono após a morte do irmão, Cleómenes I. Todo um conjunto de anedotas e ditos espartanos, naquela sua apaixonante ironia lacónica, encontram o seu espaço no filme, com especial destaque para o inteligente reaproveitamento, aquando do diálogo com o enviado persa, de uma resposta de Gorgo transcrita por Plutarco (Lyc. 14). É igualmente curioso notar como 300, explicitamente, por meio da narração de Dílio, acusa Xerxes de hybris, recuperando a “teologia” esquiliana presente n' Os Persas. O maior valor da fita para o classicista residirá ainda, porém, na materialização perfeita do espírito espartano que 300 tão acutilantemente fixada, com as suas vincadas noções de dever, coragem e sacrifício. A tagline do filme exclamava apropriadamente: “Prepare For Glory!”.

Por outro lado, há, todavia, vários erros, e não apenas históricos. Assim, convém esclarecer o espectador comum que Termópilas não se traduz, como nas legendas portuguesas, por «Portas do Inferno», mas «Portas Quentes» (como no original, «Hot Gates»). Para tristeza de alguns, mais inflamados de espanto com o facto falso, os espartanos não combatiam desprotegidos, mas armados de hoplon. Saliente-se, porém, a excelente representação da técnica da hoplitia e da indumentária. Sendo verdade que os 300 tombaram honradamente sobre as fatais flechas persas, aguentando o desfiladeiro (quase) solitários, foram apoiados por um exército maior que reunia não só arcádios como gregos de outras póleis (H. 7.202), isto antes da traição de Efialtes – o qual, não era, evidentemente, um corcunda disforme, sendo apenas este um artifício narrativo que permite abordar a questão do eugenismo espartano.

Ao contrário da reconstituição digital, Esparta não era uma cidade perfeitamente organizada, mas um sinecismo nunca completado de quatro (mais uma) localidades (Th. 1.10.2). Os éforos, obviamente, não habitavam um remoto templo no topo de uma montanha nem constituíam uma casta sacerdotal de leprosos, de forma alguma explorando sexualmente uma oráculo que Esparta nunca conheceu. Podemos, contudo, rebuscadamente, tentar ler na resposta negativa da oráculo um eco da posição de Delfos. Porém, é rigoroso o retrato dos éforos como encarnações humanas da Lei, superiores mesmo ao rei. Outras instituições políticas espartanas são retratadas incorrectamente. Assim, particularmente confuso é o Conselho («Council», no original) a que Gorgo se dirige. De facto, tal órgão, na forma como nos é mostrado, por certo era desconhecido dos espartanos. Se o restrito número de membros e as calvas e cãs de vários dentre eles fariam adivinhar a Gerusia, a presença de outros relativamente novos desmente esta possibilidade, parecendo apontar para a Assembleia (Apella). Esta, porém, deveria reunir todo o corpo de cidadãos espartano, o que, claramente, não sucede na película. O próprio local de reunião da Câmara também, supomos, não deveria ser num edifício em jeito de Cúria do Senado como nos é apresentado, mas antes ao ar livre, como era próprio dos gregos. É interessante verificar como os dois enredos menores introduzidos pelo realizador não resistem a uma análise histórica, pois também o supramencionado drama do pai capitão seria impossível registar-se visto os trezentos terem todos descendentes, e o seu filho morto ainda não conhecera mulher. Fora estas duas alterações, os demais erros são inerentes à própria BD mas, pessoalmente, não nos chocam, porquanto se trata de uma obra de ficção.

Igualmente do lado dos persas se encontram várias incorrecções históricas. Em Termópilas não foram utilizados elefantes ou rinocerentes e o exército persa não continha nas suas fileiras monstros que foram nitidamente acrescentados para aumentar o lado fantástico da acção. Nas palavras de Zack Snyder, Dílio (corresponde ao Aristodemos de Heródoto: 7.229-31), o narrador da história, “is a guy who knows how not to wreck a good story with truth”. O que se destaca do lado dos persas é, precisamente, por um lado, esta anormalidade física, como o exército fora uma daquelas trupes ambulantes da Idade Média que corriam as aldeias a mostrarem os deficientes, e, por outro, o óbvio luxo, a desmedida opulência, apresentadas em jeito quase caricatural, do qual o andrógino Xerxes será o paradigma. Porquê este exagero? Parece-nos que ele reflecte uma visão do Oriente profundamente inscrita na mentalidade ocidental. O ouro era um elemento essencial na caracterização dos persas pelos gregos (cf. Lycurg. Leocr. 108-109). Toda o celeuma em torno desta caracterização nitidamente exagerada revela-se, de novo, infundado, porque nos encontramos perante mais uma reelaboração – neste caso, fortemente estilizada – do estereótipo do persa na ficção ocidental. Mais problemática será proventura a representação dos Persas como, maioritariamente, de cor. Julgamos tratar-se de um artifício para acentuar, uma vez mais, a alteridade dos persas, opondo-os aos “arianos” espartanos. O exagero que preside à representação dos persas como uma bizarra horda demoníaca é, no fundo, o mesmo que justifica a ausência de hoplon na caracterização dos espartanos – procura-se vincar o carácter épico da narrativa.

300, em resumo, apresenta-se como a mais recente manifestação do filão de Termópilas no imaginário colectivo e a confirmação da perpetuidade do episódio. De facto, foi em criança que Miller viu o filme Os 300 Espartanos (1962), de Rudolph Maté, que o inspiraria mais tarde a desenhar e escrever a novela gráfica que, por sua vez, estimulou a criatividade de Zack Snyder. Quem pode adivinhar a continuação desta corrente?


P.S. (póstumo): Não fora o tempo investido no artigo, possivelmente não o teria carregado do re-bobina para o Varanda. Preguiçoso, podia ter gozado o ensejo para pôr a versão final e corrigida do artigo: em vez disso, resolvi eliminar as notas bibliográficas, que, importadas do Wordpress, não funcionavam no Blogger. Se alguém quiser mesmo muito ter o artigo sem falhas e com rodapés, deixe no comentário o peditório.

domingo, abril 15, 2007

quarta-feira, abril 04, 2007

Moleskines §8: Primeira Interrupção da Despedida Para Recomendação

Margarita e o Mestre, de Mikhail Bulgakov