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segunda-feira, abril 16, 2007

And Viddy Films I Would §10: "300", de Zack Snyder (2007)

O seguinte texto é uma versão preliminar de um artigo para o Boletim de Estudos Clássicos. Está feito para um público específico (o da revista, ou seja, os classicistas), mas houve uma certa preocupação de, no geral, fazer um texto aberto a qualquer leitor. Peço desculpa por esta contigência e pelo tamanho da review, que aborda vários pontos. Optei por não esperar pela versão final do artigo, corrigida pela minha professora, para reactivar o re-bobina no qual há algum tempo que não posto, para grande pena minha, pois tenho visto filmes que bem mereceriam antes o espaço e a atenção que 300 lhes está a roubar.

300, segunda obra do realizador Zack Snyder, que se estreou com O Renascer dos Mortos (2004) – aclamado remake do filme homónimo de George Romero – revisita a Batalha de Termópilas em jeito de hagiografia de Leónidas e dos seus guerreiros com base na banda desenhada de 1998 de Frank Miller, um dos mais originais artistas da nona arte. O filme, blockbuster fora de época, rapidamente se tornou num dos mais vistos este ano nos EUA. Desde a sua apresentação no Festival de Berlim, 300 tem sido alvo de polémicas leituras políticas. O Irão classificou o filme como propaganda americana, numa altura de reconhecida tensão diplomática entre os dois países. O próprio presidente, Mahmoud Ahmadinejad, criticou a representação dos Persas na película.

Este género de ataques, lamentavelmente, não é novo. Recordamos os casos de Apocalypto (2007), de Mel Gibson, ou Alexandre (2004), de Oliver Stone. Subjacente a todos eles encontramos um anacrónico nacionalismo cego da parte dos queixosos e uma incapacidade de compreender os pressupostos do ofício artístico. Concedemos, eventualmente, que 300 seja pró-ocidental, na forma como, fiel à mentalidade helénica, transpôs para o ecrã a firme oposição entre gregos e bárbaros. Porém, que se procure fazer equivaler Leónidas a Bush e os espartanos aos marines é simplesmente risível. A este propósito, seja-nos permitido citar as palavras de Vasco Baptista Marques, crítico do Expresso: “Que alguém acredite que este paroxismo de boçalidade faça parte de uma guerra psicológica leva-me a crer que os EUA estão perto de conquistar o mundo pela estupidez”.

Outros, contudo, têm visto em 300 uma peça de propaganda fascista. Se Esparta era, a nosso ver, um estado protototalitário – mau grado o anacronismo que o termo possa conter, de forma alguma reconhecemos no filme uma apologia das práticas eugenistas da Lacónia ou da suposta superioridade da inventada raça ariana. Vários críticos têm evocado nos seus textos o díptico Olympia (1938), da amaldiçoada Leni Riefensthal, esquecendo que a inspiração directa da jovem realizadora para a sua sinfonia de corpos em Berlim foi o ideal grego da kalokagathia. Os próprios alemães reconhecem que 300 apenas retrata o modus vivendi espartano, sendo exagerado entendê-lo como propaganda neonazi. O filme é puro entertainment inócuo: 300 não é V de Vingança (2005).

O debate em torno destas questões mediáticas tem, em parte da crítica, substituído a discussão sobre o mérito cinematográfico da obra. Esta, na esteira de experiências como Sky Captain e o Mundo de Amanhã (2004), de Kerry Conran, ou Sin City (2005), de Roberto Rodriguez, impõe-se como acontecimento cinematográfico pela construção a computador da totalidade dos cenários, procurando, por esse meio, capturar o visual tão próprio da banda desenhada mãe no grande ecrã. Tal técnica, não sendo já inédita, não pode, contudo, deixar de gerar uma certa expectativa e curiosidade no cinéfilo. Vinheta por vinheta, o novela gráfica de Miller é decalcada e, graças ao hercúleo trabalho do departamento de efeitos especiais, constrói-se um ambiente que Zack Snyder acertadamente definiu como “surreal”, com um tratamento heterodoxo da cor e da imagem.

É inevitável traçar uma comparação entre 300 e Sin City – igual técnica, mesmo autor. Contudo, o primeiro sai claramente desfavorecido quando comparado com o fresco e violento film noir de Rodriguez, possivelmente o melhor que nos foi concedido ver no seu ano. Especulamos que tal se justificará, por uma lado, pela mais óbvia diferença entre ambas as películas, a saber, a paleta cromática – Sin City é, pela própria exigência do género, a preto e branco; por outro, pela natureza do argumento. De facto, satisfeita a natural curiosidade pela sua inovação plástica, 300 esgota-se. O filme conserva uma certa faceta épica, mas reduz-se, na sua essência, a um mero action flick. Dos personagens, espera-se somente que lutem em coreografias sanguinolentas, herdeiras de Matrix – registe-se o ambundante recurso ao bullet time ao som de faixas de industrial rock. Não obstante os dramas menores que Zack Snyder criou para a versão cinematográfica da opus de Miller, estes limitam-se a abrandar a acção, sem gerarem no espectador verdadeiro interesse pelo destino das personagens. Neste aspecto, a banda desenhada capturava mais o drama interno de Leónidas.

A Gerald Butler, actor quase-revelação, reconheça-se o mérito de conferir uma certa espessura psicológica a Leónidas, encarnando bem a figura de Miller na obra original. Zack Snyder merece menção pela sua ousadia em avançar com um projecto desta natureza, mas o seu mérito enquanto realizador dissolve-se em parte por detrás das vinhetas da novela gráfica das quais se serviu como storyboard, sem que, por isso, juntasse, como fez Rodriguez em Sin City, o nome de Miller ao seu nos créditos. Os verdadeiros elogios devem recair sobre os diversos departamentos responsáveis pela pós-produção do filme. Para além da louvada secção de efeitos especiais, especial destaque para o design de som. Snyder recomenda apropriadamente um alto volume nas projecções.

Certos críticos têm afirmado que 300 redefiniu os peplums, mas trata-se de uma hipérbole dizê-lo. Pelo contrário, a película, por exemplo, pede emprestado a Gladiador (2000), de Ridley Scott – o verdadeiro refundador do género épico-histórico de fundo greco-romano – o conhecido motivo da seara desse filme. Inclusive em certos trechos da banda sonora tem-se reconhecido linhas melódicas de Hans Zimmer para Gladiador. Será, porventura, mais verdadeiro, considerar, modestamente, 300 um filme interessante enquanto objecto estético que, proporcionando aos que isso procuram acção de qualidade, não consegue, contudo, existir para lá de um primeiro visionamento. Exercício de estilo, encontra-se desprovido de substância maior. Num projecto cujo único nome de peso era Frank Miller convém pois que fique explícito: 300 não é Sin City.

O filme, ingratamente, só pode ser, de facto, comentado em comparação, por um lado, com a película de Rodriguez em que se filia, por outro, com a obra de Miller que adapta. Quanto a esta última, confesse-se que 300 é de sobremaneira fiel à BD. O maior desvio a esta consiste ainda em todo um enredo menor envolvendo a esposa de Leónidas, Gorgo, e uma câmara indistinta que é a tempos a Gerusia e a Apella. Gorgo procura obter junto de um dos seus membros uma audiência perante o Conselho – designaremos assim, neutralmente, tal órgão – para convencer os espartanos a enviarem reforços a seu esposo. A Assembleia, porém, é controlada por Theron, político ambicioso. O confronto final entre este e a rainha de Esparta constói-se, em jeito de clímax, paralelamente ao último dia da Batalha de Termópilas. Este enredo com Gorgo visa apenas conferir maior protagonismo à personagem feminina e introduzir, desse modo, uma intriga amorosa, segundo os padrões do politicamente correcto de Hollywood, que, com este estratagema, procura atrair o público feminino. Nisto se confirma o carácter apolítico de 300, obediente ao establishment, o qual é, por definição, avesso à controvérsia e à polémica. A mesma técnica observamos, por exemplo, n'O Senhor dos Anéis, onde também a principal alteração relativamente à obra de Tolkien foi o desenvolvimento da romance entre Aragon e Arwen.

De resto, em 300, refira-se ainda, como alterações a nível do argumento, o drama menor do capitão que vê o filho tombar, decapitado, em batalha, e a introdução de três criaturas fantásticas, a saber, um gigante disforme membro dos Imortais, um rinoceronte excepcionalmente grande e um carrasco mutante semihumano. Mencione-se igualmente o aparecimento de uma espécie de granadas avant-la-lettre e uma curta cena a caminho de Termópilas, em que o exército passa por uma cidade arrasada por um grupo de batedores. São, a bem dizer, acrescentos inócuos, que em nada traem o espírito da BD – de resto, Frank Miller foi consultor executivo do filme. Aliás, as melhores falas e sequências são precisamente as mais fiéis à novela gráfica, como aquela para que remete o título do nosso artigo – uma das nossas preferidas – inteligentemente adaptada para a tela.

Esta semelhança com a obra original significa que 300 herda directamente dela tanto as suas potencialidades para o classicista enquanto objecto didáctico, como também os vários erros históricos, estes, diríamos, mais a nível da representação do mundo antigo e seus personagens do que propriamente no que respeita à sucessão de eventos, em que Miller e Snyer se mantêm, grosso modo, próximos de Heródoto. O realizador, inclusive, exageradamente, chegou a afirmar que noventa por cento do filme era historicamente correcto.

Particularmente feliz é o retrato da agogê, nos seus múltiplos pormenores. Em Esparta, esta culminava num ritual de passagem – a krypteia – em que os melhores jovens, em pequenos grupos, eram enviados para os campos a fim de, pela calada, assassinarem alguns hilotas (Plu. Lyc. 28, 3-7). Necessariamente, numa narrativa dualista que apresenta os espartanos como bastião único da liberdade contra a tirania persa, a krypteia é representada em moldes diferentes – não há, de resto, em todo o filme, qualquer menção à hilotia. Assim, em 300, Leónidas parte solitário para defrontar um temível lobo, regressando, em evocação de Hércules, coberto da pele da besta e sendo aclamado rei. Ora Heródoto (7.204) diz-nos que Leónidas só subiu ao trono após a morte do irmão, Cleómenes I. Todo um conjunto de anedotas e ditos espartanos, naquela sua apaixonante ironia lacónica, encontram o seu espaço no filme, com especial destaque para o inteligente reaproveitamento, aquando do diálogo com o enviado persa, de uma resposta de Gorgo transcrita por Plutarco (Lyc. 14). É igualmente curioso notar como 300, explicitamente, por meio da narração de Dílio, acusa Xerxes de hybris, recuperando a “teologia” esquiliana presente n' Os Persas. O maior valor da fita para o classicista residirá ainda, porém, na materialização perfeita do espírito espartano que 300 tão acutilantemente fixada, com as suas vincadas noções de dever, coragem e sacrifício. A tagline do filme exclamava apropriadamente: “Prepare For Glory!”.

Por outro lado, há, todavia, vários erros, e não apenas históricos. Assim, convém esclarecer o espectador comum que Termópilas não se traduz, como nas legendas portuguesas, por «Portas do Inferno», mas «Portas Quentes» (como no original, «Hot Gates»). Para tristeza de alguns, mais inflamados de espanto com o facto falso, os espartanos não combatiam desprotegidos, mas armados de hoplon. Saliente-se, porém, a excelente representação da técnica da hoplitia e da indumentária. Sendo verdade que os 300 tombaram honradamente sobre as fatais flechas persas, aguentando o desfiladeiro (quase) solitários, foram apoiados por um exército maior que reunia não só arcádios como gregos de outras póleis (H. 7.202), isto antes da traição de Efialtes – o qual, não era, evidentemente, um corcunda disforme, sendo apenas este um artifício narrativo que permite abordar a questão do eugenismo espartano.

Ao contrário da reconstituição digital, Esparta não era uma cidade perfeitamente organizada, mas um sinecismo nunca completado de quatro (mais uma) localidades (Th. 1.10.2). Os éforos, obviamente, não habitavam um remoto templo no topo de uma montanha nem constituíam uma casta sacerdotal de leprosos, de forma alguma explorando sexualmente uma oráculo que Esparta nunca conheceu. Podemos, contudo, rebuscadamente, tentar ler na resposta negativa da oráculo um eco da posição de Delfos. Porém, é rigoroso o retrato dos éforos como encarnações humanas da Lei, superiores mesmo ao rei. Outras instituições políticas espartanas são retratadas incorrectamente. Assim, particularmente confuso é o Conselho («Council», no original) a que Gorgo se dirige. De facto, tal órgão, na forma como nos é mostrado, por certo era desconhecido dos espartanos. Se o restrito número de membros e as calvas e cãs de vários dentre eles fariam adivinhar a Gerusia, a presença de outros relativamente novos desmente esta possibilidade, parecendo apontar para a Assembleia (Apella). Esta, porém, deveria reunir todo o corpo de cidadãos espartano, o que, claramente, não sucede na película. O próprio local de reunião da Câmara também, supomos, não deveria ser num edifício em jeito de Cúria do Senado como nos é apresentado, mas antes ao ar livre, como era próprio dos gregos. É interessante verificar como os dois enredos menores introduzidos pelo realizador não resistem a uma análise histórica, pois também o supramencionado drama do pai capitão seria impossível registar-se visto os trezentos terem todos descendentes, e o seu filho morto ainda não conhecera mulher. Fora estas duas alterações, os demais erros são inerentes à própria BD mas, pessoalmente, não nos chocam, porquanto se trata de uma obra de ficção.

Igualmente do lado dos persas se encontram várias incorrecções históricas. Em Termópilas não foram utilizados elefantes ou rinocerentes e o exército persa não continha nas suas fileiras monstros que foram nitidamente acrescentados para aumentar o lado fantástico da acção. Nas palavras de Zack Snyder, Dílio (corresponde ao Aristodemos de Heródoto: 7.229-31), o narrador da história, “is a guy who knows how not to wreck a good story with truth”. O que se destaca do lado dos persas é, precisamente, por um lado, esta anormalidade física, como o exército fora uma daquelas trupes ambulantes da Idade Média que corriam as aldeias a mostrarem os deficientes, e, por outro, o óbvio luxo, a desmedida opulência, apresentadas em jeito quase caricatural, do qual o andrógino Xerxes será o paradigma. Porquê este exagero? Parece-nos que ele reflecte uma visão do Oriente profundamente inscrita na mentalidade ocidental. O ouro era um elemento essencial na caracterização dos persas pelos gregos (cf. Lycurg. Leocr. 108-109). Toda o celeuma em torno desta caracterização nitidamente exagerada revela-se, de novo, infundado, porque nos encontramos perante mais uma reelaboração – neste caso, fortemente estilizada – do estereótipo do persa na ficção ocidental. Mais problemática será proventura a representação dos Persas como, maioritariamente, de cor. Julgamos tratar-se de um artifício para acentuar, uma vez mais, a alteridade dos persas, opondo-os aos “arianos” espartanos. O exagero que preside à representação dos persas como uma bizarra horda demoníaca é, no fundo, o mesmo que justifica a ausência de hoplon na caracterização dos espartanos – procura-se vincar o carácter épico da narrativa.

300, em resumo, apresenta-se como a mais recente manifestação do filão de Termópilas no imaginário colectivo e a confirmação da perpetuidade do episódio. De facto, foi em criança que Miller viu o filme Os 300 Espartanos (1962), de Rudolph Maté, que o inspiraria mais tarde a desenhar e escrever a novela gráfica que, por sua vez, estimulou a criatividade de Zack Snyder. Quem pode adivinhar a continuação desta corrente?


P.S. (póstumo): Não fora o tempo investido no artigo, possivelmente não o teria carregado do re-bobina para o Varanda. Preguiçoso, podia ter gozado o ensejo para pôr a versão final e corrigida do artigo: em vez disso, resolvi eliminar as notas bibliográficas, que, importadas do Wordpress, não funcionavam no Blogger. Se alguém quiser mesmo muito ter o artigo sem falhas e com rodapés, deixe no comentário o peditório.

segunda-feira, março 05, 2007

And Viddy Films I Would §9: "Il Vangelo Secondo Matteo", de Pier Paolo Pasolini (1964)

Não tem sentido fazer mais filmes narrativos sobre Cristo depois de Zeffirelli (1977). Consequentemente, todos os que, desde então, têm procurado essa abordagem, mau grado os artifícios que laborem, caíram. Assim, resta ao realizador duas possibilidades: de um lado, a reelaboração, pela utilização de fontes alternativas, da História (The Last Temptation Of Christ/A Última Tentação de Cristo, de Scorsese (1988) e The Passion Of The Christ/A Paixão de Cristo (2004), de Gibson); do outro, uma abordagem cinematográfica nova e inviolavelmente pessoal. Porque a narratividade da vida de Cristo está esgotada e filmes que a releiam são raros e distam, é tísica a vontade espontânea de ver uma outra variação sobre Cristo. Porém, a película de Pasolini gravita exteriormente a essas falácias banais: e constrói de fundação uma visão nunca vista.

Il Vangelo Secondo Matteo segue fielmente o evangelho homónimo e, todavia, apresenta uma interpretação única e, por isso, distante da insipidez das adaptações murchas narrativas anteriormente criticadas. A película impõe-se como objecto, pela sua plasticidade, o seu carácter visual e estético, diferenciando-a: ela percorre o caminho sagrado e magro - como o caminho dos ricos pelo buraco da agulha que conduz ao reino de deus - que chamámos de terceiro: o da composição material nova da história espiritual velha. Não me interessa, até porque não foi, de modo nenhum, um caracter do filme que se salientasse no meu espírito no decurso do seu visionamento, analisar aqui a representação de Cristo como um proto-marxista. O filme - que, repetimos, copia o evangelho à letra - não pode dizer nada que, em última análise, não estivesse já contido, pelo menos em embrião, no texto-base. As ligações entre o cristianismo primitivo e o comunismo são, além disso, relativamente conhecidas. Centrar a exagese da opus de Pasolini nesse aspecto é, a meu ver, perder o novelo que ariadne deixou a teseu para se guiar no labirinto do minotauro. Por isso, despreocupadamente, como quem arruma um assunto menor e incómodo, como uma dor de cabeça, largo aqui, abandonada numa ilha deserta, essa questão.

Pasolini compôs uma sinfonia de rostos: assim chamarei na escuridão, como quem grita pela mãe, o filme. Uma sinfonia desta natureza assenta, como facilmente se compreende, em dois vértices primeiros: de um lado, uma proliferação abundante, como se fosse uma coelha a dar à luz, de close-ups, grandes planos do rosto e, menos frequentemente, mas não menos significativo ou belo, dos olhos; do outro, uma poderosa expressividade das caras dos actores, que, em elogio das pessoas, confesse-se serem todos amadores: Cristo, e.g., era um estudante de dezanove anos que se encontrara com Pasolini depois de fazer um trabalho sobre os primeiros filmes do realizador. O filme abre com a imagem do rosto de Maria jovem (vide imagem de Margherita Caruso, a actriz, com Pasolini, abaixo).

Maria não diz uma única frase ao longo de todo o filme (só isto, per se, seria o suficiente para tornar Il Vangelo... numa adaptação sui generis do evangelho): Maria diz tudo ao longo do filme. Maria fala pelos olhos tristes, por aquela boca baixa, por aquele rosto grave - e dulce. Caruso é Maria. Todo esse início da metragem é uma orquestração de silêncios, de expressões, de olhares, de subentendidos. Na realidade, não é só Maria a muda (muda porque diz tudo e fica sem nada para dizer), mas também os apóstolos, os quais, se, de cabeça, me recordo, não têm mais que duas a três linhas de diálogo. E, no entanto, os grandes planos dos seus rostos, sempre embasbacados, admiradores - hipnotizados seria o termo certo - ocupam uma parte substancial da película. São homens do povo, longe de qualquer estereótipo de beleza: os actores foram colhidos da gente normal: José era um advogado, Simão Pedro um camionista. Isto confere ao filme, bem como o trabalho de câmara ao jeito do cinema verité, uma impressão de quasi-documentário, como se Pasolini se tivesse passeado pela Palestina (passeou-se, e há até um filme dele disso: Sopralluoghi in Palestina per Il Vangelo Secondo Matteo (1965)) no tempo de Cristo, observador entre os discípulos d'Ele. Simptomático desta perspectiva é a cena da condenação de Cristo por Pilatos, a qual é vista pelos olhos de um dos discípulos, o que reduz Cristo a uma figura menor na tela, obstruído que está pelas cabeças do resto da multidão popular que assiste ao julgamento. A nível de realização, destaque ainda para a diluição espácio-temporal, essencialmente a dois tempos: num primeiro, a sucessão de imagens de Cristo pregando (sempre close-ups do rosto) em que só o cenário, mais ou menos perceptivelmente, se vai alterando (em parte faz lembrar, salvaguardadas as diferenças, aquela cena de Citizen Kane/O Mundo A Seus Pés (1941) em que Kane conversa à mesa do pequeno-almoço com a mulher); num segundo, quando Cristo, em não mais que dois ou três sítios diferentes, em não mais que dois ou três aparentes dias, prega todas as parábolas que Mateus narra no seu texto, confundindo a nossa percepção dos três anos de pregação de Cristo. Estas brincadeiras roçam o filme na anormalidade genial, a bizarria fantástica. Admito-me: quero ver mais Pasolini.

O filme, todavia, enferma, a meu ver, de três tendões de aquiles, um fora do domínio do realizador, contudo. Assim, começando por este último, é nitido a falta de dinheiro de Pasolini: o baixo orçamento é responsável pelas caricaturas grosseiras das armaduras (e os chapéus) romanas ou das roupas (e os chapéus) dos fariseus. Aliás, um observador atento percebe que a cena em que Cristo foi filmado a caminhar sobre a água foi realizada sem recurso a efeitos especiais, ou seja, Pasolini filmou-a - pelo menos assim me pareceu - toda à beira-mar, montando-a, porém, de uma maneira que ilude inteligentemente esse artifício de pé-descalço. Com um budget superior, o filme teria ganhado alguma precisão documental - e já referimos como o filme se aproxima dessa estética. Por outro lado, sou forçado a salientar, pelo lado negativo, dois pormenores: primeiro, o corte abrupto entre muitas das cenas, de que é exemplificativa a sequência final na qual, após Cristo pronunciar a sua última palavra, imediatamente o ecrã se enche com o fine. Estes cortes, quase amadores, não suponho que, eventualmente, não tenham sido propositados - porém, não posso alinhar neles, pela minha sensibilidade pessoal. Perdoem-me os entendidos de cinema: o ignorante não é só ignorante - é agreste de sentidos. Mais consensual parece-me ser a censura da algumas transições (ou a ausência delas) entre as músicas utilizadas: mais uma vez, remeto para uma das cenas finais, a da Ressurreição. A melodia triste e baixa que acompanha o velório de Maria e dos discípulos é interrompida, de forma totalmente abrupta, para dar espaço ao tema festivo que já acompanhara outras cenas antes. Escrito, pouco significará o que escrevo; contudo, um visionador perceberá excessivamente bem o que descrevo. Note-se que não critico as faixas escolhidas, as quais, aliás, são de reconhecida qualidade e acerto, mas antes as transições entre elas, num ou noutro ponto do filme.

Não obstante as imperfeições apontadas neste último parágrafo, Il Vangelo Secondo Matteo constitui-se como uma obra imprescindível, quer pelo milagre que opera na reconversão de um tema tão definhado pelos tempos, quer pela inerente qualidade estética por meio da qual o consegue. Cruza-se a mensagem de Deus e a arte do Homem: a obra-prima, afrodite da espuma, emerge.

segunda-feira, fevereiro 19, 2007

And Viddy Films I Would §8: "Sunrise: A Song Of Two Humans", de F.W. Murnau (1927)

O mesmo impulso que me levou a M (1931) e a Underground/Era Uma Vez Um País (1995), arrastou-me ou deixei-me arrastar a Sunrise/Aurora (1927). O conselho dos sábios é geralmente atento e atendido: segu(i)ndo o top 10 do outro rosto e outra mão deste blogue, vi a peça de Murnau, desfalecida em domínio público. Como alguém diz de um carro: «foi o meu primeiro mercedes», também eu digo: «foi o meu primeiro murnau» com o mesmo orgulho. De Sunrise/Aurora pouco mais conhecia que a célebre afirmação de Truffaut, segundo o qual este seria "o mais belo filme de sempre" (como um grego, faço a citação de cabeça: perdoem-me a inexactidão possível). Não sei se o é, de facto; certo, porém, é ser um dos mais. Há uma imensa beleza, de ordem cinematográfica e emocional - mais!, espiritual, que preenche este filme. Como uma pedra que cai num poço e ecoa multitempos até se devorar na água, ressoou, no ver do filme, na minha cabeça A Felicidade Conjugal de Tolstoi, por um certo sentimento de associação entre as duas obras que não sei totalmente esclarecer.

Na tecelagem do panegírico de Aurora, é missão sempre discriminadora decidir por onde começar. Colocaria talvez a ênfase no fabuloso casting e performances dos três personagens principais: o Homem (George O'Brien), a Esposa (Janet Gaynor) e a Mulher da Cidade (Margaret Livingston). A presença de O'Brien é a tempos ameaçadora e terna, gigante e humilde, agreste e nova. Livingston foi trabalhada para a interpretação da serpente na reconstituição do Éden primeiro de Aurora. O cigarro, os salt'altos, a roupa preta: tudo se consolida na criação física da personagem. Porém, indubitavelmente, mau grado todo o grande mérito que reconheço a O'Brien, foi Gaynor quem me apaixonou. Gaynor tem o corpo louro de uma criatura mitológica, ariano e nórdico, belo e frágil, donzela rapunzela. Os seus olhos e cabelo concentram uma invulgar força dramática e a sua representação (bem como a de O'Brien) é de sobremaneira natural, tendo em conta tratar-se de um filme mudo (ainda que Aurora se situe na transição entre as duas eras, a silenciosa e a sonora). Gaynor imprime ao papel uma expressividade que só uma mulher pode. Anjo engando, anjo que sofre, anjo que redime. Em grande medida, as emoções do espectador confundem-se com os sentimentos, de alegria ou tristeza, da Esposa: Gaynor tem-nos na mão o coração.

A estória abarca várias temáticas, como um chapéu-de-chuva. Por um lado, há toda uma reflexão sobre a relação conjugal, o adultério, o homem, a mulher e o amor. A Esposa representa o paradigma romântico da mulher-anjo; a Mulher da Cidade o da mulher-demónio. A ambivalência do feminino tem sido e é um dos temas de maior fascínio dos artistas masculinos. O casamento aparece como um gesto diário: daí o segundo casamento metafórico - ninguém se casa, vai-se casando, visto o amor necessitar de constante alimento, ou não fosse ele como aqueles pequenos peixes de aquário que, sem memória, se esquecem que comeram e querem mais e querem mais. A sequência da cidade é a mais importante no âmbito desta meditação lírica sobre as relações humanas, com o passeio da Esposa e do Homem a ilustrar a novidade toda do amor. Por outro lado, um dos temas mais evidentes é o confronto campo/cidade. Este, contudo, é um tanto ao quanto ambíguo. Se é a Mulher da Cidade que vai envenenar o Homem, este e a Esposa redescobrem o amor e passeiam-no na cidade: ela, enquanto sítio, diria, aparece como algo tendencialmente positivo, rico de ofertas ao novo casal. Contudo, no que respeita às pessoas, talvez desse ponto de vista já não fique, no ver de Murnau, tão bem cotada. As pessoas da cidade aparecem invariavelmente conotadas com a sexualidade: a Mulher da Cidade, o homem na barbearia e a manicure ou o cómico e erótico "casal" do salão de baile. O campo aparece como o refúgio da justiça e moralidade, lugar do trabalho e dedicação. Parece-me significativo o episódio do porco: tratava-se de um jogo popular entre os nobres dos séculos mortos. Que a nova classe aristocrata, a burguesa, tema o pequeno animal e tenha de ser o Homem, trabalhador rural, a dominar as forças da natureza, como que o eleva, a ele, à nobreza também, uma nobreza que, cremos, será sobretudo de ordem moral.

Fale-se de Murnau. O filme tem efeitos de montagem, nomeadamente as várias sobreposições de planos, que, sinceramente, me impressionaram, tanto mais tendo em conta o tempo remoto da opus. A cena em que , sentado na sua cama, o Homem evoca a Mulher da Cidade é simplesmente magnífica em termos de construção da imagem. Talvez o que mais sobressaia, contudo, ao espectador seja aquilo que, talvez incorrectamente, chamarei aqui de interpolações. Refiro-me à forma como Murnau intromete entre, direi mesmo, dentro o mesmo title (o ecrã preto usado nos filmes mudos para as falas das personagens) toda uma sequência - analepse ou prolepse, ou tempo psicológico - que esse mesmo title invoca. Algo análogo, mas não igual, sucede quando o casal se beija no meio da estrada, impedindo o trânsito. É fenomenal a forma como Murnau brinca mesmo com os titles, como quando se enuncia o plano do afogamento ou se fala das dívidas contraídas pelo Homem e a tristeza da Esposa, duas informações que aparecem a tempos diferentes no mesmo title. Em retrospectiva à queima-roupa, tenho de reconhecer que, no que toca a aspectos meramente cinematográficos, foi, por certo, a montagem o que mais me impressionou. Permita-se-me evocar aqui a belíssima e profundamente trágica cena em que se intercalam os planos do abraço do Homem e a Mulher da Cidade e o plano do abraço entre a Esposa e o seu filho pequeno: pungente. Também a fotografia merece uma nota especial de louvor. Murnau alcança um obra de um encantador lirismo, algo de que os filmes mudos beneficiam per natura, mas que em Aurora foi puxado ao limite: primeiro filme mudo que vejo na íntegra, Aurora desmentiu-me de todo a assumpção arrogante da inferioridade inocente do cinema do silêncio.

Aurora é a aurora de um homem (como, repito o paralelo dos autores, o é a Ressureição de Tolstoi), recuperado da sua longa noite: não é por acaso que os encontros adúlteros são no escuro e no preto se movem os cabelos da Mulher da Cidade, contrários à luminosidade loira da Esposa. Murnau fez uma obra-prima, rechunchuda de simbolismos, emoções e beleza. Poesia de filme!

sábado, fevereiro 10, 2007

And Viddy Films I Would §7: "Perfume: The Story Of A Murderer", de Tom Tykwer (2006)

Kubrick disse deste filme que era irrealizável: como o disse d'O Senhor Dos Anéis - e todos sabemos as óperas que Jackson esculpiu dos livros de Tolkien. Igual sucede com O Perfume, de Tom Tykwer, conhecido por Lola Rennt (1998), que, infelizmente, ainda não tive oportunidade de ver: este foi, assim, o meu primeiro contacto com o realizador. Não escrevo à queima-roupa: cerca de um mês passou desde que vi o filme nas salas. Deste modo, quanto escrevo é pensado, mas quanto não escrevo foi porque já caiu esquecido.

O Perfume foi uma opus que vi essencialmente pelo buzz que a rodeou - um pouco como vi Marie Antoinette (2006) pela hype que dançava em torno a ela, corte cortejando-a. É curioso que a sorte me tenha levado a, no decurso da review, associar na mesma frase os dois filmes, pois, agora que os tenho lado a lado no pensamento e na memória, vejo como partilham outras duas características importantes: ambos se constituíram como uma surpresa para mim e são, maioritariamente, experiências visuais e, mais genericamente (num genericamente que visa muito particularmente incluir a sua vertente sonora), experiências estéticas. Agora que reconheço o parelelo intentado antes entre as duas fitas entendo porque tão longamente se digladiaram pelo terceiro lugar no meu top pessoal de 2006.

A obra de Tykwer é uma fascinante viagem visual, o que, no filme que é, não deixa de ser paradoxal: Süskind escreveu um livro sobre o sentido olfacto, o filme transforma a experiência olfactiva numa experiência visual, alterando o sentido estimulado. Certamente, como tem sido amplamente referido, durante o visionamento da película praticamente cheiramos, pavlovianamente, os aromas evocados: porém, tal sucede apenas pelo poder total das imagens apresentadas. As cores fortes e a fotografia concordante são um dos trunfos e triunfos do filme: a isso contribui, por exemplo, o violentíssimo ruivo de Rachel Hurd-Wood, a actriz que interpreta Laura, a personagem feminina principal. Não creio que o casting ignorasse já o plano total e compreensivo do filme, contribuindo para o seu impacto estético. A multidão colorida e viva de tons imprime os frames de uma força e beleza que nos faz partilhar, ainda que por meios diferentes, a emoção e admiração de Grenouille pela multiplicidade dos cheiros humanos.

Na construção deste sentimento não é de subestimar, mas sim de relevar e revelar, a importância da banda sonora, a qual me cativou, a mim apreciador delas, profundamente a atenção, pela forma como fez integralmente parte da mise-en-scène, contribuindo decisivamente para o ambiente do filme. Aliás, a este propósito é de escrever dois factos: o realizador Tkywer é também o compositor (lembrando Roberto Rodriguez). Em consequência, num gesto assaz inédito ou, pelo menos, raro, a banda sonora, ou os seus esquissos, foram compostos mesmo antes do filme, o que possibilitou que durante a rodagem de algumas cenas a banda sonora estivesse directamente a passar em fundo. Tal julgo que ilustra bem o papel primordial da música em O Perfume, que, narrando uma experiência olfactiva - incapaz de transmitir pela própria natureza do cinema, metamorfosei-a, contudo, numa experiência, repetimos, visual e, acrescentamos, auditiva.

Em termos de actores, não obstante a boa presença de Dustin Hoffman e Alan Rickman, ambos conhecidos do público cinéfilo, a atenção desvia-se completamente para o relativamente estreante Ben Whishaw (no qual futuramente atentaremos mais com a estreia do bizarro I'm Not There), no papel principal de Jean-Baptiste Grenouille, numa performance suberba, de entrega física a que subjaz, sempre, uma psicológica. O actor captura toda a ambivalência da personagem, dando-lhe corpo e substância: não sem razão muitos leitores do livro têm confessado preferir a personagem na adaptação cinematográfica. Porém, seria incorrecto da minha parte, só porque não aparece na tela, esquecer um dos outros grandes actores do ensemble: John Hurt, o narrador - e quem viu Dogville, saberá a desnecessidade de acrescentar o mais que seja, saberá a obrigação de nos curvarmos - e deliciarmos.

Por fim, no que respeita à estória em si, só posso constatar duas verdades: por um lado, pelo visionamento do filme, compreendi facilmente o porquê de o livro ser dito de culto; por outro, cresceu, como grávido de um alien que depois irrompe pela barriga, o desejo de ler o mesmo livro. De facto, a narrativa, na sua forma quase de um proto-policial, é, na sua essência, uma reflexão sobre um sentido em que pouco pensamos e sobre a forma como ele determina a nossa vida, manipulando-a. Mais filosoficamente, podemos deslindir meditações sobre a efemeridade das coisas, a eternidade, o amor.

O Perfume, em síntese, é um excelente filme, dos melhoríssimos que cruzaram as nossas salas no ano corrido, fiel e dignificante do livro. Uma obra esplendidamente visual e luxuriante mesmo, como alguém o ousou classificar. Sensual, no sentido dos sentidos. Cheira-me a obra-de-arte.

quarta-feira, abril 12, 2006

And Viddy Films I Would §3: "V For Vendetta", de James McTeigue (2005)

Em circuitos de culto, V For Vendetta já andava a ser seguido desde há quase um ano, quando as primeiras informações sobre o projecto foram divulgadas. Era o semi-regresso ansiado dos irmãos Wachowski, que, desta feita, tinham a cargo somente o guião (escrito, aliás, antes mesmo da trilogia Matrix), deixando a realização para James McTeigue (assistente de realização na saga que os catapultou para o sucesso devido), mau títere dos irmãos que são, no fundo, a força principal por detrás deste filme que podemos reclamar inteiramente como criação sua.

V For Vendetta (estupidamente traduzido para português V de Vingança, sem preservar, como faz o título inglês, a palavra italiana) decorre numa Inglaterra distópica, num futuro próximo, em que o país seria governado por um regime fascista e conservador, com laivos nazis (não só na simbologia, mas também nas experiências cinetíficas à la Mengele). Evey, uma funcionária da estação estatal - obviamente, a única - é salva, na noite de 4 para 5 de Novembro, dos delatores ao serviço do Governo por um mascarado que sa auto-intitula de V. Pelos olhos de Evey, seguiremos a demanda revolucionária de V pela libertação do seu país do totalitarismo.

O filme é adaptado da BD homónima, da autoria de Alan Moore, reputado escritor da nona arte, e fora concebida nos anos 80 como uma crítica às políticas conservadoras de Thatcher. Na série, politicamente confrontavam-se fascismo e anarquismo. Esta dicotomia foi praticamente omitida pelos irmãos argumentistas, que se concentraram antes no lado terorista da personagem principal. De facto, ainda que não confessado, o guião foi claramente actualizado para servir como uma parábola da época moderna, dos medos e angústias do início de século XXI.

O lado anarquista não foi de todo censurado. Quando, por exemplo, V diz a Evey «A revolution without dancing...is a revolution not worth having!», cita Emma Goldman, conhecida anarquista. Sinteticamente, Finch - o polícia responsável por apanhar V - resume o objectivo do lutador da liberdade «Chaos». Noutro momento ainda, alguém grita «Anarchy in the UK!». Porém, outras referências não se identificam. Como comentaram os puristas, na BD, V lutava, acima de tudo, por algo; no filme, luta apenas contra o regime. V, ao longo de toda a película, não apresenta, de facto, uma única alternativa à ditadura. (Para ulterior desenvolvimento das diferenças entre fita e livro no que diz respeito ao anarquismo, vide A For Anarchy).

Pelo contrário, a palavra "terrorista" ou seus derivados recorrentemente emerge no filme. Este coloca-nos a pergunta incómoda: pode um terrorista ser bom? V, em última análise, enquanto vai eliminando chefes políticos e rebentando com edifícios emblemáticos desabitados, está a contribuir para a construção de um mundo melhor. A definição de terrorista balança na corda bamba na bobina deste filme. Os métodos de V merecem toda a nossa atenção e perguntam-nos constantemente a sua legitimidade: note-se a sua relação com Evey e as questões que emergem.

Porém, V For Vendetta herdou do livro um pormenor com toda a relevância: ao contrário da típica BD, o herói aqui não é tanto V, mas muito mais o povo. Daí constantemente, ao longo da película, irmos, silenciosamente, conhecendo uma série de famílias, pois é a elas que compete a rebelião. Escrevia Brecht num dos seus poemas «De quem depende que a opressão prossiga? De nós./De quem depende que ela acabe? Também de nós.» - é isto que V quer consciencializar a população. Por isso, ele se dirige à nação quando toma a estação televisiva onde trabalha Evey, para acordar as consciências adormecidas. Por isso, ele desabafa «...if you're looking for the guilty, you need only look into a mirror.». Como um crítico apontou, V é todos e ninguém; ninguém porque, sob a máscara e o anonimato, não lhe conhecemos a identidade (nem interessa, pois ele representa uma ideia e, as ideias, como ele diz a Creedy, são à prova de bala); mas é todos, pois, mascarados com a indumentária de V, quando os cidadãos enchem as ruas para levarem a cabo a revolta contra o regime, todos eles são, em última análise, o próprio V. V é, mais que uma pessoa, um símbolo. Não é ele quem faz revolução (a alavanca da mesma é deixada a Evey - a nova geração que verdadeiramente tem de tomar a decisão, como reconhece V), mas sim o povo porque quer.

O filme cruza referências tão diversas como Dickens, Camus, Shakespeare ou O Conde de Monte Cristo e O Fantasma da Ópera, sem esquecer, claro, a pesada herança de 1984 de Orwell. Os irmãos Wachowski, cujo contributo ao argumento já avaliámos, introduziram também no guião algumas das ideias que lhes são mais caras, como se deduz de quando V afirma «I, like God, do not play with dice and do not believe in coincidence.» ou «There is no such thing as coincidence, just the illusion of coincidence.»: retoma-se aqui o tema da relação entre destino, liberdade e coincidência que, filosoficamente, tão profundamente marcaram o segundo capítulo da trilogia Matrix. Os irmãos não se escusaram a alguns jogos subtis, como escolherem para chanceller Suttler o actor John Hurt, que tinha desempenhado o papel do oprimido Winston Smith na adaptação cinematográfica de 1984.

Ainda em termos filosóficos, V For Vendetta é, por fim, um magnífico ensaio sobre o poder da palavra; a palavra como verdade e a verdade como poder. A esse propósito, são ilustrativas algumas frases da própria metragem:

Because while the truncheon may be used in lieu of conversation, words will always retain their power. Words offer the means to meaning, and for those who will listen, the annunciation of truth.

My father was a writer. You'd have liked him. He used to say that artists use lies to tell the truth while politicans use them to cover the truth up.

Vi Veri Vniversum Vivus Vici
(Pelo Poder da Verdade, Eu, Vivo, Conquistei o Universo)

Em termos cinematográficos, o filme tem recebido boa e merecida aclamação, tendo já alcançado o seu lugar entre os 200 melhores filmes de sempre no IMDB. A realização é, bem possivelmente, o aspecto mais negativo da película. Nota-se a imaturidade de McTeigue, cujo trabalho nos passa indiferente. Certo que pegou o touro pelos cornos, ao começar uma carreira com um projecto desta envergadura, e, desse ponto de vista, há que realçar a forma como se aguentou. Um ou outro plano é, de facto, bem apanhado. Estou a pensar particularmente no renascimento espiritual de Evey. A fotografia, a cargo de Adrian Biddle, opressiva e incomodativa a princípio, restringindo-se a uma paleta de negros e vermelhos, resulta, no entanto, eficazmente, sendo memso um dos pontos mais laudatórias do filme. A banda sonora surpreendeu-me, mas não tanto da parte de Dario Marianelli (compositor de Orgulho & Preconceito, justamente nomeado para Óscar), mas muito mais pela música não-original, quer clássicos, como a epíca Abertura 1812 de Tchaikovsky - cujo uso, em termos de relação imagem/som, exclusivamente, pode ser, sem grande erro, equiparado ao da Nona na Laranja Mecânica ou da Cavalgada das Valquírias em Apocalypse Now - ou a Quinta de Beethoven (os fãs de Beethoven saberão por decerto que as notas introdutórias da sinfonia formam, em código Morse, a letra V), quer graças à recuperação de algumas baladas dos anos 50, como Cry Me a River. Os efeitos especiais, vindos da equipa de Joel Silver, são, obviamente, ou não tivessem os Wachowski elevado o patamar nesta área, da mais requintada qualidade bem como as coreografias das lutas. Desenganem-se porém os que vierem em busca de um filme de acção, mesmo que incentivados pelo trailer. A interpretação de Natalie Portman é madura e profissional e exigente pois, como é já lugar-comum, ela teve de rapar o cabelo para V For Vendetta.

Porém, a grande vitória do filme é, par a par com a poderosa narrativa, a personagem de V. V é, simplesmente, uma das mais belas personagens da história do cinema, das mais carismáticas e apaixonantes. E, a causa total disso, é Hugo Weaving, que divinamente veio substituir no papel James Purefoy, ao que consta, porque este não conseguiria utilizar a máscara ao longo de todas as filmagens. Só um actor da craveira imensa como é a de Weaving conseguiria insuflar uma tal vida a uma personagem principal que nunca depõe a sua máscara. A forma como ele pronuncia cada frase, as modulações da sua voz, os gestos, os tiques, os movimentos: em tudo pôs Hugo a sua arte e compôs um dos mais fantásticos papéis da sétima arte a que ninguém sai impune.

O filme não é perfeito, mas é poderoso. 5 estrelas. V estrelas.

segunda-feira, março 20, 2006

And Viddy Films I Would §2: "Sylvia", de Christine Jeffs (2003), e "Daddy" [num dia do pai]

Passou ontem na 2: o filme Sylvia, com Gwyneth Paltrow no papel de Sylvia Plath e Daniel Craig (o Bond-para-ser) como Edward Hughes, o marido da poetisa, ele mesmo poeta também. Quando o filme saiu, em 2003, fiquei com curiosidade em vê-lo, mas esta foi só mais uma das películas que estão uma semana num cinema de esquina em Lisboa e decapitadas são na capital - esquecidas ao resto de Portugal. Nunca ouvi falar de uma saída em DVD. Foi, por isso, com boas perspectivas que me sentei no sofá para, noite adentro, seguir a conturbada relação dos dois protagonistas.
Paltrow oferece uma interpretação poderosa, com uma maleabilidade de rosto impressionante: não raro a câmara pára nele, porque ela detém o dom de concentrar, nas rugas, nas expressões, na fronte, nos olhos, todo o sentimento de angústia de Sylvia. As frequentes cenas, sem palavra, em que, esperando pelo marido, Sylvia, num quarto escuro, numa fotografia impressionante em matizes azuis-escuras, sozinha, sofre, sugam-nos para o interior daquele espírito que teve o fado de ser infeliz. Craig também desempenha com primor o seu papel, mas é, face a Gwyneth, secundário - ainda que essencial, como motor da acção.
A impressionante vida de Sylvia, na forma como tenta conciliar família, poesia e carreira profissional, perturba. Com uma grave doença mental (esteve internada na sua adolescência, apesar de isso não ser mostrado no filme - faz recordar, quiçá, a situação da neo-zelandesa, poetisa igualmente, Janet Frame, mostrada em Um Anjo À Minha Mesa), com o trauma da morte prematura do pai (tinha ela oito anos), amando incrivelmente o marido como poucas mulheres há que o tenham feito, acabou por, César!, se ver traída pelo Brutus!: Edward! Teve, ainda assim, dois filhos, mas o adultério do esposo levou à inevitável solitária separação - que nunca mais reatará laços, como um embrulho de prenda rasgado: mas o presente, era a morte.
Como ela começa no seu poema Lady Lazarus: «I have done it again./One year in every ten», assim, depois de se ter tentado suicidar com dez anos, repetido, fracassando, a morte aos vinte, por fim, com trinta anos, num dia 11 de Fevereiro de 1963, pôs um término à sua vida, de uma das formas mais inéditas de suicídio. Os preparativos, a morte e o após são particularmente tocantes e bem conseguidos, em grande parte pela banda sonora, de qualidade magna ao longo de toda a fita - e verdadeiramente recomendável, sabendo transferir da tela para quem vê toda a tristeza de um dia de Outono/Inverno que foi a vida de Sylvia.
Um dos pormenores mais deliciosos do filme é a simbologia da árvore inicial e da final, como só após a morte, Primavera. Mais que não fosse, despertei para esta nova poetisa e as suas composições, que me estão, do pouco que, para já, pude ler, a cativar, como raposa o Princepezinho. Aos que têm a bíblia da poesia, Rosa do Mundo - 2001 Poemas Para O Futuro, vão à página 1716 e podem provar, com um dedo maroto, a nata do bolo de casamento. Abaixo, um dos que figuram no filme, um dos mais conhecidos dela e, estranhamente, com um título apropriado à circunstância - e a aparência ilude.

Daddy

You do not do, you do not do
Any more, black shoe
In which I have lived like a foot
For thirty years, poor and white,
Barely daring to breathe or Achoo.

Daddy, I have had to kill you.
You died before I had time--
Marble-heavy, a bag full of God,

Ghastly statue with one gray toe
Big as a Frisco seal


And a head in the freakish Atlantic
Where it pours bean green over blue
In the waters off beautiful Nauset.
I used to pray to recover you.
Ach, du.

In the German tongue, in the Polish town
Scraped flat by the roller

Of wars, wars, wars.
But the name of the town is common.
My Polock friend

Says there are a dozen or two.

So I never could tell where you
Put your foot, your root,
I never could talk to you.
The tongue stuck in my jaw.


It stuck in a barb wire snare.
Ich, ich, ich, ich,
I could hardly speak.
I thought every German was you.
And the language obscene

An engine, an engine

Chuffing me off like a Jew.
A Jew to Dachau, Auschwitz, Belsen.
I began to talk like a Jew.
I think I may well be a Jew.


The snows of the Tyrol, the clear beer of Vienna

Are not very pure or true.
With my gipsy ancestress and my weird luck
And my Taroc pack and my Taroc pack

I may be a bit of a Jew.

I have always been scared of you,
With your Luftwaffe, your gobbledygoo.
And your neat mustache
And your Aryan eye, bright blue.
Panzer-man, panzer-man, O You--


Not God but a swastika
So black no sky could squeak through.
Every woman adores a Fascist,

The boot in the face, the brute
Brute heart of a brute like you.

You stand at the blackboard, daddy,
In the picture I have of you,

A cleft in your chin instead of your foot
But no less a devil for that, no not

Any less the black man who

Bit my pretty red heart in two.
I was ten when they buried you.
At twenty I tried to die
And get back, back, back to you.
I thought even the bones would do.

But they pulled me out of the sack,
And they stuck me together with glue.

And then I knew what to do.
I made a model of you,
A man in black with a Meinkampf look


And a love of the rack and the screw.
And I said I do, I do.
So daddy, I'm finally through.
The black telephone's off at the root,
The voices just can't worm through.


If I've killed one man, I've killed two--
The vampire who said he was you
And drank my blood for a year,

Seven years, if you want to know.
Daddy, you can lie back now.

There's a stake in your fat black heart
And the villagers never liked you.
They are dancing and stamping on you.
They always knew it was you.
Daddy, daddy, you bastard, I'm through.


12 October 1962


«Even amidst fierce flames the golden lotus can be planted.»
(Epitáfio de Plath)

sábado, março 18, 2006

And Viddy Films I Would §1: "Despertares" (1990), de Penny Marshall ou O Rapaz das Laranjas

Ontem à noite, com um grupo de amigos, tive a oportunidade de, caseiramente, na casa de um, ver o filme Awakenings, em português, acertadamente traduzido (coisa raríssima!) por Despertares, nomeado para três óscares, entre eles o de Melhor Filme e Melhor Actor (Robert De Niro), no ano de 1990.
O filme narra a história do Dr. Sayer (Robin Williams) que, em chegado a um hospital de doenças crónicas, em vez de se conformar com a situação inumana dos pacientes, crente de que há vidas naquelas verdadeiras estátuas paralisadas que são os doentes, começa a investigar os seus casos, apaixonando-se pelo de Leonard Lowe (De Niro), que Sayer consegue despertar através de uma nova droga, reservada a doentes de Parkinson. Porém, «tudo tem a efemeridade de um arco-íris!», como escrevia Ribeiro - e, assim, o drama.
Chorei - chovia nesse dia: fora e em mim entristecia. Despertares é dos mais comoventes filmes que alguma vez vi, em grande medida pela assustadora interpretação de De Niro. É um filme terrível, tanto mais quando pensamos que se inspira num caso real - e, ai quão certo!, é tão mais perto da imaginação a realidade!
No fundo, citando o filme, num diálogo final entre Sayer e Eleanor:
- How kind is it to give life, only to take it away?
- It's given to and taken away from all of us.
Este comentário recordou-me A Rapariga das Laranjas de Gaarder, que, na sua habitual trama filosófica, nos indagava exactamente sobre esta problemática, alargada ao contexto da nossa própria vida. O livro narrava a história de um rapaz que descobre uma carta do pai - morrido há muito, na sua infância - escrita para ele, para a ler quando fosse mais velho. A pergunta derradeira com que o pai o liberta é se, de facto, valeu a pena tê-lo posto nesta vida, que ele comparava à Sonata ao Luar de Beethoven: o primeiro andamento (a não-existência), tenebroso e soturno; o segundo andamento (a vida), curto e alegre; o terceiro (a morte), fulminante, raivoso e rápido. Efectivamente, Despertares é só uma metáfora profunda da nossa própria existência, que é, também ela um despertar, efémero somente.
Leonard queixava-se, a um dado momento do filme, da pouca importância que as pessoas dão à sua vida, de como a desperdiçam em futilidades, sem dela saborearem o essencial - «the simplest things», essa sua confissão desesperada. É natural que, tal John do Admirável Mundo Novo, também ele, a um certo momento da história, se revolte contra aquela sociedade - ela sim, paralisada, doente crónica de uma maladia sem diagnóstico senão o dos loucos e dos manicómios.
Dar esperança («Hope, it is the quintessential human delusion, simultaneously the source of your greatest strength, and your greatest weakness.», nessa magnífica definição do Arquitecto no segundo Matrix) para logo a seguir a tirar - será crueldade?, sadismo? Mas e não a dar de todo? E não é a esperança a benção de Pandora, a vozinha fina e frágil, como uma ânfora que se pode partir só porque vai, varina, na cabeça de uma menina; essa voz que, no fundo da caixa de Pandora, depois de libertados todos os males, requesitou autorização para sair, ela também, para abundantemente - ainda que falsamente, quiçá - consolar os homens? Saber que perderemos tudo, que nada ficará porque «És pó e em pó te transformarás», que, em última análise, o Universo se encarregará de extinguir a nossa raça...
«Quando é que despertarei de estar acordado?» (Pessoa, Magnificat)