sábado, dezembro 23, 2006

And Viddy Films I Would §4: Confissão/Ignorância/Propósito

Confissão: Sin City, de Roberto Rodriguez (2005)

Eu sou o que ignora - mas quero saber!.

Não me reclamo o título-coroa de cinéfilo, esticando-me Alex laranja-mecânica para o ter, como os seios de uma rapariga: e não alcanço. Serei, pitágoras novo, ao tirano de siracusa, um filocinéfilo: aquele que apenas pode ser um aspirante de ser amante - há uma certa gravidade e drama romântico em toda a atitude, como o amador de uma paixão a priori perdida.

Quem ama cinema, não leia este blogue. Eu sou o que falhei em tudo, aquele que não viu o passado, mas, alas!, acha-se tão magro do presente. Daqui a cinquenta anos, regressai, filhos pródigos, esses, vós, que amais o cinema: nesse tempo, penso, enfim terei visto tudo quanto urge (grita tanto, como uma mulher a ser esganada na selva por queequegs! - que dor!). Vede-me como uma criança, que se enganou a pretender adulta. Deixai-me crescer,

eu, o que ainda nada vi do neo-realismo italiano,
eu, o que por enquanto desconhece a nouvelle vague francesa,
eu, o que até agora não provou o expressionismo alemão,
eu, o que para já ignora a quinta geração de realizadores chineses,
Sou quem escrevo hic et nunc.
Perdoai-me.
Esforçar-me-ei por ser um ser melhor.

P.S. (póstumo): cortei a última frase do original, que me pareceu despropositada e sem sentido. Este texto era parte de um velho blogue sobre cinema, o re-bobina, que esteve alojado primeiramente no Blogger e depois no Wordpress. Apesar de algumas das afirmações que aqui faço terem sido entretanto ultrapassadas - já vi pelo menos um exemplar quer da nouvelle vague quer do expressionismo alemão - o tom geral do post continua plenamente a justificar-se. Ele será, ainda durante um bom tempo, intemporal.

segunda-feira, novembro 27, 2006

Quoth The Raven §3: À Memória de Mário Cesariny


Hoje, dia de todos os demónios
irei ao cemitério onde repousa Sá-Carneiro
a gente às vezes esquece a dor dos outros
o trabalho dos outros o coval
dos outros

Ora este foi dos tais a quem não deram passaporte
de forma que embarcou clandestino
não tinha política tinha física
mas nem assim o passaram
e quando a coisa estava a ir a mais
tzzt… uma porção de estricnina
deu-lhe a moleza foi dormir

Preferiu umas dores no lado esquerdo da alma
uns disparates com as pernas na hora apaziguadora
herói à sua maneira recusou-se
a beber o pátrio mijo
deu a mão ao Antero, foi-se, e pronto,
desembarcou como tinha embarcado

Sem Jeito Para o Negócio

Mário Cesariny in “Discurso sobre a Reabilitação do Real Quotidiano

quarta-feira, outubro 18, 2006

Moleskines §7: Saudade & Saudação [rascunho]


(homenagem possível - não ideológica - às inscrições murais da uc:
o que, de mais novo, sempre me marcou mais)

Na entrada do velho – porque conhecido – bloco, a professora esclarecida esperava. Alguns, adiantados, argumentavam entre si: atena, senhora de sabedoria, resolvia as disputas pela demonstração da verdade ante os olhos de todos. A luz espraiava-se como quem espreguiça dando tom e graça ao pátio amplo. Saí – general vitorioso de um triunfo suposto – do edifício para a claridade aberta. Inalei cada fragmento de ar no momento – e sorri com a passividade satisfeita e calma de quem congemina um plano malévolo. E o meu plano malicioso tinha o nome de: liberdade.

Em roda da professora, os alunos confessavam os enganos e cabisbaixavam à visão dos erros cometidos. Juntei-me – porque as celebrações são feitas em unidade – ao grupo. Quando enfim, pombas colectivas que uma corrida de um engravatado em passando pelo bando dispersa, nos separámos, regozijei. Concluíra-se ali, naquele tempo, o último passo: o derradeiro exame nacional fora fechado. Tentei balançar o significado do instante: perdia-se ali, irremediavelmente, toda uma vivência, abandonada, como um casaco que, por ser verão, incomoda. Era grande a minha alegria e, temerariamente, atirava-me adiante. Foi preciso o tempo, que labora nos corações sempre a saudade, para despontar a compreensão lenta do bem ali deixado – e para sempre inconquistável:

Ali cultivara amigos, como cadmo, no antigo mito, plantara guerreiros. Naquele espaço crescera apoiado de agricultores prudentes que não são aqueles que somente se afainam nas sementes, mas que, verdadeiramente, as amam, primeiro – e por isso, segundo, as cuidam. Foi o sítio onde não fui uva – mas vinho – e onde souberam destilar de mim as artes dionisíacas, que se chamam teatro. E ali montei a minha hybris a todos os deuses que se me opunham – e porque fui apoiado por grandes, triunfei. E por isso, quando alcancei, alpinista, o pico, precipitei-me no brado liberdade – porque me esqueci, na contemplação da paisagem e da vertigem, que caminhava sobre um monte e não via o mundo como da planície onde tinha principiado.

O tempo é capitalista – porque se soma rapidamente: e, paradoxo, para nós se some. Não tardou a altura de estagnar na inumerável fila da tenda gorda das matrículas lentas da reputada Universidade. [Pisquei os olhos]. Uma santíssima trindade reunida à porta de uma sala numerada nove: uma rapariga viva, um rapaz alto e eu, sentado. O elemento congregador dos três espíritos chegou enfim, a professora. Apresentações. Próxima aula. Almoço. Procurar a sala. Praxe, ou Os Pequenos Cantores Ordinários de «Viena». Na Universidade, tudo corre, feito coelho de Alice; ainda que tudo invulgarmente passe lento enquanto de-corre: como se visse em câmara lenta um sprint. Liberdade?, parcialmente – mas não a mentira que nos tinham prometido. Medo?, irrazoável – foram grandes as mãos que nos pegaram e nos ensinaram, depois de gatinhar, a andar erectos e a descobrir o fogo: e é grande o calor humano.

Tem de se aprender uma nova arquitectura e a tratar reverentemente os professores – e faz-se bastante fora da sala que tem um quadro. Soubera eu de certeza ter, agora, quem me guiasse como sei hoje que tive no tempo que foi e na coisa que passou – e descansaria em paz. Reencontram-se pessoas que críamos perdidas e pródigos, prodígio!, retornam – atam-se os fios desatados do nosso passado. E sorrimos – porque o passado valeu transformado no presente.

quarta-feira, setembro 13, 2006

Speakers' Corner §4: M.L.K. - Manifesto Liberdade e Kultura [Parte III]

Centremo-nos, agora, nisto: as fogueiras provocam as sombras - os intermediários provocam os fenómenos. Estabeleço pois: é necessário queimar as fogueiras! Chegou o tempo em que o escritor fala ao leitor, o realizador vê o espectador, o músico ouve o fã. E o instrumento da libertação tem o nome de: internet. E a libertação chama-se: gratuidade. Do céu caiu uma estrela: ela é o sinal! Na literatura, os blogues permitiram uma inédita proximidade entre os dois lados da barricada, construindo-se tantas vezes como complemento ao próprio livro; a possibilidade da criação simples de e-zines favoreceu a divulgação de grupos menores antes sem meio de expressão. Em cinema, tivémos já este ano o vanguardista exemplo de Soderbergh com Bubbles, lançado simultaneamente nas salas, na televisão e em DVD; bem como o case study do recentíssimo Snakes On A Plane em que a produtora, sob pressão dos fãs na net, se viu obrigada a filmar novas cenas. Musicalmente, os selos, apocalipticamente, abertos abriram abertamente o futuro: a Universal passará a distribuir as suas músicas gratuitamente já pelo final do ano; as netlabels são uma realidade emergente; os Artic Monkeys são a prova de que a Rede funciona como plataforma de lançamento de novos artistas; na Suécia, domingo saberemos os resultados eleitorais do Piratpartiet. No Canadá, no ano passado, um projecto de lei que visava criminalizar os downloads foi reprovado (de resto, mesmo em Portugal só o upload é estritamente punível) - em contrapartida, parte do preço dos CD-Rs reverte a favor dos artistas e editoras discográficas. Pedro Leitão, responsável pela TestTube, profeta khalil gibran, anunciou:

"Há quem diga que o download gratuito é um roubo. Mas o download não é gratuito, visto que implica um pagamento ao ISP que fornece o acesso à Net. Deviam ser os ISP a pagar ás editoras pelos downloads, á semelhança do que rádios e discotecas já fazem com as taxas dos direitos de autor. Um dia, a música será um bem fluido, pago por uma conta mensal, como a luz ou a água."

Estes, irmãos, são os sinais dos tempos.

Mas até que ponto estamos nós, artistas, prontos a acompanhar esta mudança? O mercado musical é aquele que, a uma primeira análise, mais facilmente - também porque nele mais rapidamente a viragem para o futuro se processa, por ser a arte maior - se adaptará e salvaguardará os interesses dos seus artistas. Afamados cantores já foram prontos, há muito, a esclarecer que não se opõem ao download. Vimos já anteriormente que, verdadeiramente, quem beneficia do sistema actual de venda de CDs são as editoras, pois nem mesmo na rica América a margem de lucro para os compositores chega a atingir os 10% sobre o preço de capa. Estabelecemos já que o sustento dos músicos são as suas tours e um sistema como o proposto por Pedro Leitão ou a forma como, pela publicidade, a Universal vai continuar a lucrar, asseguram a permanência de outros rendimentos menores extras. Com o tempo, sonho!, nesse tempo de fraternidade que virá, emergirão mesmo estúdios gratuitos, construídos pelo dinheiro de várias bandas reunidas que abrirão as portas destes aos novos, dispensando-lhes material, como quem convida para ser o supporting act de uma tournée - e a música florescerá, como uma magnólia - porque branca de pureza.

No cinema, como pode um realizador actuar neste novo espaço e novo tempo (a quarta dimensão) sem intermediários? O filme é, indubitavelmente, das três artes que vimos falando, a que mais meios envolve, mesmo quando o seu orçamento é nitidamente baixo, também porque, evidentemente, é a que emprega mais pessoas. No dia em que o dinheiro se extinguir, há uma aurora boreal que anunciará a dissolução dos problemas que falamos - e Tyler Durden sorrirá. Hoje, permanece, estátua, a necessidade de alimento. Aos cineastas, como músicos em tournées, resta receber dividendos da exibição pública das metragens antecipadamente. Duas perguntas: 1) como, se os cinemas não são controlados pelos cineastas? 2) como, se a ida sociológica ao cinema está em queda? Obviamente, o sonho pressupõe o sonho. Se Coppola e Lucas fizeram a Zoetrope, se Von Trier concebeu Zentropa, se Spielberg criou a Dreamworks, eis chegada a hora de os realizadores, além das suas produtoras, formarem as suas salas, assegurando pessoalmente e directamente a distribuição dos filmes e recolhendo os lucros da exibição. E como um dia os estúdios serão dos músicos, assim virá aurora em que lusomundos serão dos cineastas. Mau grado a crise do ano passado, público continuará a afluir ao cinema, porque o grande ecrã é a essenciabilidade da sétima arte. Um 5.1. dollby surround não substitui um josé lúcio leiriense. Há sempre uma razão para ir ao cinema - mas é preciso também que fabriquemos essa razão. Experiências como o IMAX ou o Optimus Open-Air são pioneiras nesse campo nos tempos nossos, mas que falar do Napoléon de Abel Gance em 1927 ou os drive-ins doutrora? Adicionalmente, outra possibilidade, secundária, de financiamento dos artistas da área é o mecenato dos espectadores. Leiam-se, de novo, astrologicamente, os signos:

"We now live in an era where a blogger like Josh Ellis could ask his readers to pay him$500 so he could travel to Nevada and write an essay about his trip to the origins of the Manhattan project or where Daniel at PouringDown.tv could raise over $2000 from dozens of readers via Fundable.org to go and make a film a day on a week long road trip for the Seven Maps project."

Certos dirão que isto se traduziria, redundantemente, na não gratuidade dos filmes. Mas estamos perante uma falácia, porque obviamente o espectador nunca financiará todos os filmes que consumirá. Outro projectos gratuitos angariam também eles: nomeadamente a Wikipedia. Outros afirmarão que os realizadores se libertarão da escravatura da indústria só para resvalarem para a do público: o realizador, em vez de ter de convencer um estúdio, terá de convencer o seu público - o que é sempre a prova derradeira, agora tornada primeira. E o público não pode nem deve ser um problema - um filme, como veículo de uma mensagem, de uma weltanschauung, precisa de um interlocutor - cujo nome é: Público. Mesmo uma visão muito pessoal, necessariamente pouco apelativa às massas, encontrará nelas, quando elevadas cultas, suporte. E o cinema brotará como um rio - porque nasce nas montanhas, chamadas: Alturas, e desce ao mundo, regando.

Por fim, escritores que somos nós, como nos vestimos de festa para a celebração? O material mais precariamente protegido, mais propenso ao plágio, é, indiscutivelmente, o nosso. Possuímos, frutuitamente, mecanismos e organismos que asseguram os nosso direitos morais sobre as obras, conquanto as registemos. Verdadeiramente, muitos, pouco passam deste estádio. As editoras, protectoras, consentem, em matérias invisíveis como a poesia, na publicação se os lucros respeitantes ao autor revertem para elas até que os custos de publicação estejam cobertos. Tendo em conta que o lançamento de poesia em Portugal é, praticamente sempre, um investimento não recuperado, nunca poeta algum ganharia pão com a sua poesia senão em utopia. Assim, ao poeta colocam-se, francamente, poucas dúvidas, pela prática, de gratuidade da sua poesia. A publicação é perseguida pelo formato palpável de livro que permite - e é a dificuldade de extinção deste que condiciona, na literatura, o objectivo comum para Arte que aqui temos prosseguido. Se a música percorreu diversos formatos, do saudoso vinil ao impalpável mp3; se o cinema coube primeiro em película e hoje é digital, foi primeiro bobina, sofreu a metamorfose de ser VHS e acabou, mariposa, em DVD só para, insecto, se extinguir breve e das duas asas chamar-lhes, à esquerda, HD-DVD, e à direita, Blu-ray; o livro, esse, inalterável, ficou gutenberg desde o (re)nascimento. É pois complicado conceber o livro num formato alheio ao papel, livro cibernético e informático em plenitude. E isto condiciona a situação do escritor na nova distribuição da Arte: por um lado, é desconhecido qualquer meio de rendimento consistente de um escritor a tempo inteiro que não as suas obras (não há, como no cinema, salas; como na música, tours); por outro, o papel terá de ser sempre pago, inclusive por razões ecológicas. Uma reflexão pertinente aflora, contudo: raros são, excepto velhos, os só-escritores. A escrita tem por característica ser sempre uma actividade secundária longamente. Não se ouve falar de músicos, mesmo entre os menos conhecidos, que, após o lançamento do seu primeiro álbum, permaneçam no activo numa qualquer profissão de secretária. Paralelamente se comportam os cineastas, intercalando entre longas-metragens, videoclips e anúncios publicitários. A condição da escrita é, ipso facto, árdua. Excepcionando traduções, ninguém pode viver de se sentar ao computador. Mais uma vez, o escritor aparece, dentre as três artes que, sistematicamente, temos vindo a analisar, como o mais propenso a mais facilmente ceder à gratuidade, por o seu estado ser, de facto, bastante semelhante já a esse, de resto. Publicar um livro é muito mais a necessidade de uma concretização da natureza e modo e forma da escrita do que um verdadeiro lucro. É a condensação de um desejo que brota do interior do escritor, como o é do realizador ver o seu filme numa sala ou do música de uma audiência a cantar along. A primeira solução ponderada então é, como o Bubbles do cinema, o duplo lançamento da obra: simultaneamente a nível cibernético e editorial/livreiro. Isto materializaria o livro sem ofender a gratuidade que buscamos da Arte. Se o terreno cibernáutico é, nalguns formatos, mais favorável, o rígido papel permitirá a muitos a concretização mais fiel dos intentos. Uma taxação, como os canadianos nos CD-Rs, das folhas de papel (necessariamente requeridas para impressão dos textos online) poderia acalmar os objeccionistas da primeira medida. Creio, sinceramente, na possibilidade fáctica desta nova literatura, capaz até de explorar, modernisticamente (isto é, em jeito dos primeiros modernistas), as potencialidades do ciberespaço e as incluir na sua própria estrutura. E a literatura será como a semente da mostarda - "é a mais pequena de todas as sementes; mas, depois de crescer, torna-se a maior planta do horto e transforma-se numa árvore, a ponto de virem as aves do céu abrigar-se nos seus ramos."

Mais: até, amigos!, nesta luta, legalmente os juízes e os juízos nos compreendem e ajudam! Progressivamente, pela lenta dissolução dos direitos de autor, para a ribalta saltam livros, filmes, músicas! Na altura em que, beatles feitos, cantarmos "when i'm sixty-four", poderemos ver gratuitamente um filme de Kubrick, ler um romance de Vergílio Ferreira ou ouvir Nirvana. Mas nessa altura, de resto, professo firmemente a minha fé, ter-se-á cumprido o sonho do primeiro e último filósofo português, Agostinho da Silva, que anunciou, franciscanamente, o tempo da liberdade da arte.
E ser artista será, de novo, desregração.
E a Arte: acontecerá!

6.9.2006-13.9.2006

Speakers' Corner §4: M.L.K. - Manifesto Liberdade e Kultura [Parte II]

Houve, de facto, um tempo, em que cri que a Arte era um privilégio de elites abençoadas, estranhamente iluminadas - e que, jamais o «povo» haveria de ascender a percebê-la. Que engano!, que convencimento! Apolo, quando nasce, é para todos. Talvez nisso - como em tudo - tenham visto os Gregos mais longe, ao aproximarem, na mesma pessoa, o deus do Sol e o deus da Arte. Mas, hoje, Apolo, do seu carro, olha - e não encontra a lira. Se a Arte é de todos, onde estão «os todos» para a reclamarem? Em vez disso, «os todos», como prisioneiros da caverna da alegoria, festejam com as sombras - mas, lá fora!, o Sol! O Público contenta-se com falsificações, quando os quadros de Munch foram roubados - mas O Grito e a Madonna foram recuperados!

As massas galvanizam-se com fantasmas, quando, ao lado, na tumba, os falecidos só esperam o seu olhar para ressuscitar ao terceiro dia! Olho em volta - e entristeço-me profundamente, dando vontade de reconstruir o mundo como os «sábios» da Academia de Gulliver. Entra-se numa livraria, mas onde foge a almada exclamação de Almada!:"Deve haver certamente outra maneira de se salvar uma pessoa, senão estarei perdido." Hoje, a perdição é, amigo Almada!, a tua outrora salvação! Hoje, quando a sibila me quer mostrar, Eneias, o Inferno, leva-me a uma livraria. Tanta coisa sem jeito que pulula ali e que esforço, Deus que esforço!, para encontrar algo bom que não seja, vinho do porto, velho. E quando encontro, Deus encontro!, encontro, como quem encontra um amigo, por acaso, quando sai do café mas já soubesse antes que no café estava o presidente. Oh Almada!, nem imaginas a publicidade desalmada que fazem a tanta porcaria ambulante para que a comprem! Mas são os nomes delas que discutem na rua, como quando saíram As Minas de Salomão do Eça. (não sei se percebeste a ironia do contraste). Todos sabem os nomes delas, como todos sabem o nome do presidente, mas, ai!, quem conhece o meu amigo senão eu? Houve um tempo, Almada, em que as pessoas tinham alma e tinham amigos...

Entro no carro. "Ao volante do Chevrolet pela estrada de Sintra,/Ao luar e ao sonho, na estrada deserta,/Sozinho guio, guio quase devagar", ó Álvaro!, e, para saborear toda a modernidade de um só trago, ligo a telefonia. Mas Álvaro, preferia os intonarumori, os «instrumentos» de fazer barulho do teu futurismo! Isto é invariavelmente igual: baçamente distingo. Na rádio, imagina Álvaro!, passam plagiadores de músicas japonesas! E sabes o mais cómico nisto tudo? As pessoas gostam, as pessoas gostam [risos]! Já ninguém tem paciência para triunfalmente escutar os ruídos das fábricas: mas, compensatoriamente, taylorizaram a música. Agora, é como uma receita de uma papa de velha no Pantagruel. Tal como a Fanta, as canções hoje só têm 8% de música, e esta à base de concentrado! O mais compõe-se de vitais elementos: 1º a luxúria de uma mulher ("uma mulher bela que não se ama,/Que se encontra casualmente e se acha interessantíssima.") (ou, no caso masculino, uma metrossexualidade); 2º coreografias (a Madonna concebeu o cristo - e quando nasceu, veio crucificado); 3º computadores (sonhasses, Álvaro!, que um dia viria que a música seria sem instrumentos e sem músicos!). Depois - seguindo a receita, há o forno para o pão. Porque o pão é uma massa de farinha ensopada. É, revelação!, o forno que faz o pão, o fenómeno, o sucesso. O forno chama-se MTV e rádios. No teu tempo, Álvaro, eles lá na telefonia, quando era chegado o horário, tinham um locutor que criava ali, disco-jóquei, algo maior que ele sendo dele. Escolhia as músicas para mostrar e havia quem preferisse, pelos gostos musicais obviamente embutidos nos programas, mais um que outro. Hoje, Álvaro, os locutores chegam à hipocrisia de nem gostarem das músicas que estão a rodar. Vontadas de dinheiro, as editoras asseguram, como quem paga uma publicidade, um número fixo de audições diárias. Num tempo de cabalas, eu creio numa: aquele programa de fim de tarde, que eles chamam discos pedidos, deve também estar todo comprado e quem liga para lá são os empregados das grandes marcas discográficas, intermediárias impingidas dos cantores (nota, Álvaro, hoje já não falamos de músicos, mas de cantores!). Houve um tempo em que os músicos acreditaram no DIY. Sabes?, perdeu-se toda a liberdade. O mundo mudou tanto desde o ano da morte de Ricardo Reis!

Chego a casa. Tiro o casaco, abro o maço que poiso depois de acender um cigarro na cómoda do hall de entrada. Ligo a TV e estendo o braço e compro um comando. Nada. Um vazio. Até a casa está mais cheia, porque me tem a mim. «Produções nacionais» - nome tão alto para o tão baixo! - sucedem-se dinasticamente segundo o molde egípcio de casamentos entre irmãos. O resultado: faraós geneticamente deficientes! Há um ar mongolodita em tudo isto. Desligo a televisão e o cigarro. Monto ao cinema. Olho os cartazes. Raios de não viver em Lisboa! Aqui, o último cinema independente - chamava-se Avenida, o indigente! - fechou no mês passado. Há um semestre abriram, do outro lado do rio, mais seis salas. Deixá-las! Tiro do bolso da gabardina o bocado amuchucado de jornal do dia da página dos cinemas: três filmes de miúdos sem imaginação e quatro blockbusters de verão. E estar a acontecer o Festival de Veneza ao mesmo tempo! E a censura?, a censura! Tenho em casa um dossiê com os obituários pela MPAA. "Weitz stated that New Line Cinema feared that "perceived antireligiosity" would make the film financially unviable in the US." Deus, isto faz algum sentido? Houve um tempo - creio que houve - em que ser artista era um bando de enfants terribles. Hoje, quando vão aos Óscares, vestem-se de gravata.

Isto são as sombras. Mas há, o afirmámos, Apolo. Imputar, na alegoria da caverna, a culpa inteira e pura à fogueira, só porque ela faz as sombras, é negar que há cadeados a prender as mãos dos seus habitantes. Não há, hoje, senão nos que ainda não cresceram (e mesmo esses crescem já hoje tão depressa!), a liberdade suficiente para admitir e aceitar a Arte verdadeira. "You have to understand, most of these people are not ready to be unplugged. And many of them are so inert, so hopelessly dependant on the system, that they will fight to protect it.", ensina-nos Morpheus. Pouco há, de facto, a fazer com essas pessoas que matarão o filósofo quando ele, visto o Sol, regressar à caverna platónica. Precisamos de uma nova geração - e nisto temos a vantagem de sermos jovens.

Speakers' Corner §4: M.L.K. - Manifesto Liberdade e Kultura [Parte I]

A.S.: a escrita deste texto foi feita em várias partes, umas longas, outras breves, em dias juntos ou separados, em horas diferentes, na diferença toda que pode comportar o espírito. O texto resulta pois como uma enorme manta de retalhos de estilos - se isso lhe traz riqueza ou o ilide, o juiz - leitor! - decide.


Folheava hoje as páginas virtuais, leitura matutina do jornal novo em que se converteu, sem baptismo, a máquina em que escrevo. Nas informações que pesquisava da adaptação cinematográfica do primeiro volume da trilogia His Dark Materials, encontrei na Wikipedia:

"In an interview published on the internet in December 2004, Weitz indicated that the film would make no direct mention of religion or of God; two of the key themes of the trilogy - a decision attacked by fans of the novels. Weitz stated that New Line Cinema feared that "perceived antireligiosity" would make the film financially unviable in the US."

Este é o Tempo em que Arte diminui.

No séc.XX nasceu matarem-se as regras. A libertação libertou-se do que libertar-se. Dadá destruiu toda a seriedade da Arte, e os os russos acabaram com as palavras na literatura (Khlebnikov) e os objectos na pintura (Kandinsky). O Romantismo, enquanto movimento espartaquista, concluiu-se enfim, porque se concretizou finalmente. Na América, houve Greenwich Village. Ah!, esses, esses foram tempos em que o tempo não contava na atemporalidade de que as obras imortais eram cheias! Homens forjaram o quebrar das correntes e ser artista era sinónimo de ser livre! Livre da sociedade, livre da própria arte. Todos eram futuristas, ordenando os incêndios de tudo o que pertencia ao passado, e a inauguração de um tempo novo com a regra nova de não existirem regras. A Arte: acontecia.

"Todo o mundo é composto de mudança".

Hoje, o mundo engravidou de mais um século. Mas, ai Darwin!, estavas errado! Mais tempo não significou mais evolução. Os sinais são demais evidentes: a Arte foi taylorizada. Garrett escreveu nas suas Viagens a receita para uma novela romântica - hoje, tudo tem as suas regras, como se todos tivéssemos saídos de uma gigantesca academia de Belas Artes, chamada cultura pop. A rádio comprime as músicas a quatro minutos, talvez por o quadrado ser para os gregos a forma perfeita. As editoras literárias, canas de bambu, bamboleiam à boleia das tendências (vide Cruzadas Literárias, onde se distingue o bom do mau fruto). O cinema prostitui-se por um PG13. Estamos a ceder a Arte às massas - e a Arte nunca foi uma questão de massas. Não que os dois temas sejam antagónicos - e virá, assim creio, o dia em que, pelo contrário, serão sinónimos - mas tal sucederá não porque a Arte se baixou, mas porque o Público se elevou. Porém, repito, a Arte nunca foi uma questão de massas - porque é um produto, essencialmente, individual.

Enquanto exposição de uma filosofia, de uma mundividência, de uma mensagem, qualque obra de arte torna-se imensamente pessoal, e, quando é verdadeiramente genial, consegue atingir a universalidade. Anna Karenina é uma obra de Tolstoi, com as ideias de Tolstoi - mas capta o fundo do ser humano e, aí, ganha o coração de cada leitor e a essência difícil da psique humana. É desta extrema duplicidade paradoxal - de ser simultaneamente a expressão e a expansão de um «eu» e a possibilidade de identificação anónima com o Homem - que Nietzsche fala num passo da sua Origem da Tragédia: "...pois este «eu» não é já o do homem vigilante, o do homem empírico e real, mas sim o «sujeito» verdadeiro e eterno que existe no fundo de todas as coisas e que o génio lírico sabe reproduzir, penetrando assim até ao íntimo cerne da realidade."

A verdadeira Arte significa, pois, algo para as pessoas. Fala-se, por exemplo, em confirmação do «paradoxo» de cima, de cinema de autor de massas, das mãos de Hitchcock, Tarantino, Kubrick ou Spielberg. A Arte é Humanidade e condição essencial, como a Filosofia ou a Ciência, da nossa realização humana. Por isso, a Arte tem Público. Eu não acredito na estupidez das pessoas: eu acredito na sua estupidificação. Se a Arte tem de se livre, não menos livre tem de ser quem se dispõe a acolher essa Arte. E, Deus!, é isso que nos falta! Espíritos livres e espíritos presos que se queiram libertar! Entre o artista e o consumidor surgiu esta figura, exôtica, estranha, condicionante: o editor/o produtor. Nunca houve tanta oferta e nunca a cultura foi tão monólita. Este é o tempo dos media - «media» porque intermediários. E, porque intermediários, eles filtram a produção artística, condicionando o sucesso ou insucesso dos projectos criativos. Vivemos o tempo da Arte fabricada: o sucesso artístico é um fenómeno independente do artista. O sucesso da generalidade dos cantores de hoje em nada se deve aos seus talentos, mas à MTV; o triunfo de filmes de acção repetidos e comédias românticas adolescentes, ao marketing; as vendas de inúmeros autores, a irem às cavalitas de um género que obtém um breakthrough. Goethe escreveu na opus Fausto:"Que a sorte sem mérito pouco vale/Um tolo nunca o entenderia;/Tivesse ele a pedra filosofal/E inda o filósofo à pedra faltaria."

segunda-feira, setembro 11, 2006

Moleskines §6: Consequência/Colagem

AVISO&
"I would prefer not to."
by Bartleby, The Scrivener


PARTE I

TYLER

You have a kind of sick desperation in your laugh.

Tyler reaches under the seat in front of him and lifts a BRIEFCASE. Unnamed points to his own briefcase.

UNNAMED
We have the exact same briefcase.

Tyler opens his briefcase. He pops the latches and raises the lid to reveal quaintly-wrapped bars of SOAP.

TYLER
Soap.

UNNAMED
Sorry?

TYLER
I make and I sale soap. The yardstick of civilization.

Tyler reaches the briefcase and takes out his card. He hands it to Unnamed. "THE PAPER STREET SOAP COMPANY".

UNNAMED (V.O.)
And this is how I met--

UNNAMED
Tyler Durden.

TYLER
Did you know if you mixed equal parts of gasoline and frozen orange juice concentrate,
you could make napalm?

UNNAMED
No, I didn't know that, is that true?

TYLER
That's right. One can make all kinds of explosives using simple household items.

UNNAMED
Really?

TYLER
If one were so inclined.

Tyler SNAPS the briefcase shut. Unnamed stares.

UNNAMED
Tyler, you are by far, the most interesting single-serving friend I've ever met.

Tyler stares Unnamed. Unnamed, enjoying his own chance to be witty, leans closer to Tyler.

UNNAMED
See, obviously everything on a plane is single-serving, even--

TYLER
Oh, I get it. It's very clever.

UNNAMED
Thank you.

TYLER
How's that working out for you?

UNNAMED
What?

TYLER
Being clever.

UNNAMED
(thrown)
Great.

TYLER
Keep it up then. Right up.


PARTE II

http://vileheadquarters.com/downloads/games/
1. Where in the World is Carmen Sandiego?

Mother, do you think they'll drop the bomb?
Mother, do you think they'll like this song?
Mother, do you think they'll try to break my balls?
Mother, should I build the wall?
Mother, should I run for President?
Mother, should I trust the government?
Mother, will they put me in the firing line?
Is it just a waste of time?

Hush now baby, baby, don't you cry
Momma's gonna make all of your nightmares come true
Momma's gonna put all of her fears into you
Momma's gonna keep you right here under her wing
She won't let you fly, but she might let you sing
Momma's will keep Baby cozy and warm
Oooo Babe
Oooo Babe
Ooo Babe, of course Momma's gonna help build the wall

Mother, do you think she's good enough
For me?
Mother, do you think she's dangerous
To me?
Mother will she tear your little boy apart?
Mother, will she break my heart?

Hush now baby, baby, don't you cry
Momma's gonna check out all your girlfriends for you
Momma won't let anyone dirty get through
Momma's gonna wait up until you get in
Momma will always find out where you've been
Momma's gonna keep Baby healthy and clean
Oooo Babe
Oooo Babe
Ooo Babe, you'll always be Baby to me

Mother, did it need to be so high?

Ars Scientia


PARTE I [reprise]



PARTE III

AMOR: CUBO DE KUBRICK

O meu coração pesa gravítico bloco megalítico
Monolítico 2001 odisseia «Hal, open the door.»

Quoth the Hal: «Nevermore!»!
5.6.2006



Aldeous Huxley
[como segundo aviso e exemplo]

[instruções: clique sobre a imagem para ouVER]


PARTE IV

[...]
I just don't know what to do with myself
I don't know what to do with myself
planning everything for two
doing everything with you
and now that we're through
I just don't know what to do

I just don't know what to do with myself
I don't know what to do with myself
movies only make me sad
parties make me feel as bad
cause I'm not with you
I just don't know what to do
[...]


Duas Mulheres Bonitas Para Consolo Dos Tristes De Amor:












































O Filme Para O Meu Coração Cem-Sentimentos
:

[instruções 2: clique sobre a imagem para aumentar]


PARTE V

The Trial
[instruções 3: clique sobre o link para ouvir o julgamento]



PRÓLOGO:
"Aplaudite, amici, comoedia finita est!"
Last Words by Ludwig Van Beethoven


quarta-feira, setembro 06, 2006

Moleskines §5: E.L.E.N.D. [ouvindo]

E
A criança calara-se, súbita. Assim: no meio de uma conversação, normal, corrente, agitada e habitada. A família anciana ocupava olimpiamente a mesa. Discutia-se a manchete. O pai discursava, politicamente, expondo as pespectivas da razão. A mãe, adocicadamente, elevava o garfo castanho à boca e mastigava como chiquelete. «Muda de assunto: a criança está calada.» Tapava-a o desinteresse óbvio da matéria e a mãe, mediocramente perspicaz, aprendera-o. «Conta: como foi a escola?». A criança ergueu-se do seu lugar, ascendendo aérea, antigravitacional, numa iluminura budista. Contornou, misteriosamente, a távola, à altura do tampo até olhar a matrona. Tocou-lhe, contacto, com a ponta do dedo, extraterrasterialmente. A mãe pegou-a, precisamente, e levantou-a ao seu colo carnudo, aconchegando-a. A criança pousada, pousadamente, rodou o olhar para a mulher. «Dá-me um beijinho.» Mímica à acopolagem de uma nave, a mãe beijou-lhe, madonna, a fronte élfica. E a criança calou-se - para nunca mais falar. «Querias um beijinho da mamã?», perguntou, ternurante ternurenta. A criança, grave, deslizou, aeronâutica, numa linha de produção inexistente, afastando-se à velocidade de um produto. A mãe contemplou-a com estranheza e incompreensão temida. A criança surreal desceu da banda de montagem e montou, no mesmo passo, à cadeira original. Não comeu mais. «Filho, o que é que tens?», interrogou, paranormalmente, a senhora. O Horror. A criança ergueu o rosto, descomposto de aflitiva anagnórise, visão de são paulo, reconhecimento. A mãe levantou-se intempestiva e correu a recuperar o filho. Um espírito morto habitava a criança. «Rápido! temos de o levar ao hospital!» O pai arrancou o guardanapo, varreu o bigode, abriu a gaveta e procurou a chave. «Acende a luz!». A mãe comprimiu a criança vivamente contra si, embalando-a acidentada. Acendeu o interruptor. Um barulho esquizofrénico de chaves e moedas misturdas a chocalhar monte abaixo. A mulher trocava para sapatos altos, segurando, por cima do ombro, nascituramente, o filho. A criança, pacífica, assistia a tudo, como um menino jesus no templo. eureka em português. o pai correu para a porta, saíram para o elevador, entraram no carro (a mãe na parte de trás com a criança) e arrancaram. A criança guardava o aspecto circunspecto, embriagado de neutralidade impassiva, muito triste. A mãe, sistemicamente, coçava-lhe de festas a cabeça e reclinava-se para o beijar, colibri. Podiam ter sido felizes.

L
O médico voltou-se incompreendendo para os pais «O vosso filho não tem qualquer doença. Analisei-o e ele não manifesta quaisquer sintomas» pousou «mas concordo manifestamente que algo não está bem com aquela criança» olhou de soslaio para o paciente, sentado, doente, no bordo da cama cirúrgica «é como se, de um momento para o outro, pudesse começar a derreter e víssemos a pele dele descer, larga, cera, pelo corpo todo, nu» A mãe, violentamente, olhou o médico, violada. O pai, mais temperado, perguntou «O que nos aconselha a fazer?» «Procurem um psicólogo.» A criança continuava, branca, alheada, autista - e a mãe mordia os lábios para dentro.

E
Pôs-lhe, controlado, uma folha de papel à frente e uma caneta ao lado. Amarrou as mãos, avançou-se na espinha dorsal, pisamente, como uma placa metálica metícula guindastamente encostada. «Se quiseres, em vez de falar, escrever - está à vontade». A criança não pegou no utensílio. A criança não se mexia de todo. Olhava para o homem, testa tremilitantemente franzida, como quem sofresse demasiado solicitando eutanásia. O psicólogo concentrava-se, mascaradamente, no chão. Imóvel, pediu «Escreve na folha o que te atormenta, senão, nem eu, nem os teus pais te poderemos ajudar». A criança baixou os ombros, desconsolada, e abriu as mãos, lady macbeth mostrando o sangue. Na face, contorcida, a incredulidade, a desfiguração. «Raios, miúdo, diz alguma coisa!» ergueu-se, proteu acordado, anjo do diabo, o -analista. A criança, cristo chagado, recolheu os estigmas e pousou as palmas sobre o peito, deixando cair, desfeito, o coração à perna. Começou a chorar adultamente. A besta amansou-se e o psicólogo mirou-o, celebratório. A reacção chamara ao quarto os pais exteriorizados. E a mãe, conquistadora, gávea, exclamou, exultante (e o menino saltou-lhe de alegria no seio - lc 1,41): «Ele chora!», numa ascenção dos nomes até ao berro. E uma gargalhada, um riso puro, éclatante, iluminou o quarto. «Ele chora!» confirmou, alegre, transformada grega. E Apolo cresceu frondosamente naquela ilha de Leda. O pai encarou a mãe e jubilou, abraçando-a, com uma mão espetada carnívora numa nádega erótica e a outra serpenteando a costa até ao ombro de Pélops, agarrando-o como quem deseja desfazer. Altivos, beijaram-se encaixadamente, atemporais. O psicólogo, celebrante, exclamava ahah! no mesmo tom sucessivas vezes. Os três reuniram-se em torno da cadeira condenatória do protestante e, marias sanguinolentas, dançaram três vezes no sentido contrário ao dos ponteiros em volta do herege, festejando, entoando os cânticos com que cristo foi recebido na entrada de jerusalém. E era grande a alegria no mundo - porque a criança tinha chorado. A mãe reconfortava-se com a certeza da vivência do filho, da capacidade de expressar emoções, da humanidade do que antes era um boneco animado de Hoffman. O filho rompera a máscara imutável e rígida e ferreira - era o fim do carnaval de veneza. O pai revibrava os ecos de entusiasmo da mãe numa discussão com o psicólogo para marcação de posteriores consultas. Efusivamente, a mãe erguia a criança nos braços e no ar e apresentava «Meu filho!» «Meu filho!» «Meu filho!» ia repetindo na marcha circunstancial que abandonava o consultório, seguida dos dois. «Meu filho!», mostrava, e os outros pacientes prostravam-se, genuflectiam, e voltavam o rosto para o chão na passagem da rainha e do filho. O pai, por detrás, lançava, esfuziantemente, notas como grãos de arroz casados. Tombavam como pétalas oficiais no caminho da marcha. O psicólogo, oficial, formal, com botas, fechava o Triunfo. E as buzinas dos carros, audíveis do exterior, salutavam, trombetas, a procissão, anunciando o regresso do filho pródigo. E, no topo, recém-nascido, a criança chorava calada, mansamente - porque sozinha.

N
A criança percebera tudo. A criança sempre fora muito inteligente. Lia avidamente desde a mais tenra terna infância e as grandes obras do mundo contava-as amigas. A criança entendera, pois, toda a circunstância, como se endormecesse debaixo de uma figueira. Aos pais perturbava, inquietando, sua tristeza mais que seu silêncio. Hume, não compreendiam a união científica das coisas pelas causas no universo. E a criança tomou uma decisão: ia ser hipócrita. Saiu do seu quarto e apresentou-se na sala. Os pais, no sofá, observavam televisão. A mãe, primeira, viu-o. A criança vestia um sorriso fechado, mas largo, como os lábios constituíssem uma cicatriz. As bochechas curvavam-se em covinhas waltdisneianas e, como um produto japonês, os olhos luziam, inchados. A mãe ajoelhou-se e agarrou-o. A criança sorria como um boneco de palhaço. O pai, serenamente, levantou-se e, de pé, passou a mão, cigarreiramente, pelos cabelos do filho, rebolando-os. Ele olhou para cima e piscou os olhos, rápido. Acomodou o sorriso a proporções menores, pelo cansaço gerando pelo esforço muscular. «Senta-te aqui a ver este filme connosco.», convidou, sentando-o, a mãe. Ele fechou os olhos e sorriu mais expansivamente, no movimento #42 da sua lista de hipocrisias planeadas. A mãe puxou-o para si e ele respondeu agarrando-a também (#34). Finalmente, os pais estavam, genuinamente, felizes. Haviam aceite a mudez dele como um um acidente, como partisse um braço ou diagnosticassem dislexia: mais estranha, mais bizarra - mas facilmente co-vivenciável. A criança, cansada do fingimento, fingiu adormecer. A esposa sorriu ao marido, consolada.

D
Ai!, a criança dionisíaca vira mais longe do que eles todos! Ostracizada à hipocrisia pela sociabilidade, rindo eternamente, era palhaço: mas chamava-se Pierrot.! A criança templária, culta, vasta, sábia,! percebera tão simplesmente que não havia mais nada para dizer. Tudo o que possivelmente podia ainda restar a um novo homem para dizer quando crescesse, tudo,! fora extirpado pelo tempo anterior. E a criança, tão jovem!, tão inocente!, (coitada!) tivera de lidar com esta súbita verdade, demasiado imensa, imensamente enorme! para poder haver quem a pudesse. Não havia mais nada para dizer - não havia mais nada para ler. A análise humana, a exagese da alma, o entendimento do mundo: concluíram-se nos séculos passados. Fukuyama, a criança proclamou, resoluta, o fim da literatura. Não havia nada mais a escrever. Tudo o que interessava, verdadeiramente, ao homem: estava declarado. Alcançara-se o positivismo. Tudo perdia o sentido doravante, porque tudo não acrescentava nada. E a criança calou-se. Faltara-lhe a força para não pedir (pobre!, era só uma criança!) um último beijo à mãe! Era o saber isto tudo, como de resto é o saber qualquer coisa que seja, que perturbava a criança, kurtz, visionadora do horror. O horror da alma humana, totalmente, conclusivamente, desvelada. O horror da morte da palavra. O Horror!


"The rest is silence."
Hamlet, Shakespeare

segunda-feira, setembro 04, 2006

Quoth The Raven §2: Explicação

Possível é, no entanto, que a poesia desapareça antes da espécie humana, e também não é de excluir que ao fim e ao cabo não tenha passado de uma actividade menor e esporádica, a avaliar pela falta de resposta vital com que tem sido acolhida pela imensa maioria do público. Neste aspecto, a época crepuscular que atravessamos é das mais decepccionantes, não encontrando outras máscaras para disfarçar a sua atonia profunda senão as da leviandade e da presunção. Vai londe o tempo, realmente, em que Baudelaire sonhava ser capaz de persuadir os burgueses de que a poesia lhes era tão necessária como pão.

Cristais e Corais, apresentação de Ernesto SAMPAIO
na tradução homónima da antologia

Poemas, de André Breton, Assírio&Alvim

sábado, julho 15, 2006

Speakers' Corner §3: Diário de Bordo do Apocalipse [i]

os sinais

Plagiando mudando Pessoa:
«Vem a Sr.ª Maria de Lurdes Rodrigues... Aquilo é que é uma besta!»

Portugal é governado, foi governado e continuará, sem mudança, sendo governado por uma cambada de incompetentes. Todo o homem de inteligência lúcida e pura afasta-se, no completamente possível, da política impossível. Portugal acabará como país, porque não pode acabar o que já acabou: como cultura. Os homens grandes que aqui nascerem não deverão nada aos que nasceram com eles e serem grandes será independente de serem portugueses.
O ensino português hoje só pode produzir bestas quadradas porque quem o dirige, dirigiu e dirigerá é um bando de cavalgaduras. Todo o português desta geração que não for uma besta quadrada educou-se ou foi educado estrangeiradamente em insulto cuspido ao ensino pátrio praticado. (Graças a Deus que existe Erasmus!)
Declaro, Mr. Keating, que está na altura de rasgarmos esses manuais oficiais e aprendermos poesia! Poucos foram, no colégio, os que entraram no Clube dos Poetas Mortos - esses, contundo, engrandeceram e, o mais alto, racional, partiu, seguro. É esta a rota iluminada de todos os que guardaram os olhos apesar das trevas.
Repito: se alguém há dos nascituros do meu tempo - da stupid generation from 88 (White Lie) - que não é uma besta quadrada, devo-o a ser um pássaro, não há loba (rameira, em latim) que o amamentou animalesca. A vaca, de facto, só faz asneira - marrando cornadas nos exames.
Este é o último sinal do Apocalipse - começou.

O escândalo da aberração dos exames veio confirmar a palavra de todos os queixosos e a incompetência declarada da Ministra, que, elefante branco, arrasa toda a porcelana do lojista - é gordo, feio e cadavérico e não se enterra no cemitério dos da sua espécie por fim. Que se repitam os exames! Que se repitam todos! Que se instale a anarquia nas Universidades e nos concursos! Num país de ministra totalitária, só a máxima libertinagem política e burocrática nos poderá resgata. A Ministra é uma burra! A Ministra é o Anti-Cristo! A Ministra governa!
Só com o fim do Estado pode vir o fim da incompetência estatal.
Agradeçamos o Apocalipse próximo que poremos em mãos nossas.

Almadamente,
...

quarta-feira, junho 28, 2006

Quoth The Raven §2: Ode To L.A. While Thinking Of Brian Jones, Deceased; de Jim Morrison

I'm a resident of a city
They've just picked me to play
the Prince of Denmark


Poor Ophelia

All those ghosts he never saw

Floating to doom
On an iron candle


Come back, brave warrior
Do the dive
On another channel

Hot buttered pool
Where's Marrakesh
Under the falls

the wild storm
where savages fell out

in late afternoon
monsters of rhythm


You've left your
Nothing
to compete w/

Silence

I hope you went out
Smiling
Like a child
Into the cool remnant
of a dream

The angel man

w/ Serpents competing
for his palms
& fingers
Finally claimed
This benevolent

Soul

Ophelia

Leaves, sodden
in silk


Chlorine
dream
mad stifled
Witness

The diving board, the plunge
The pool


You were a fighter
a damask musky muse


You were the bleached
Sun
for TV afternoon

horned-toads
maverick of a yellow spot


Look now to where it's got

You

in meat heaven
w/ the cannibals
& jews

The gardener

Found
The body, rampant, Floating

Lucky Stiff

What is this green pale stuff
You're made of

Poke holes in the goddess
Skin

Will he Stink

Carried heavenward
Thru the halls

of music

No Chance.

Requiem for a heavy
That smile
That porky satyr's

leer
has leaped upward

into the loam


(A minha homenagem aos 60's, depois de ver o filme Stoned:
Jim Morrison louvando Brian Jones comigo ouvindo Led Zeppelin)

domingo, maio 14, 2006

Bloguística §2: Despedida Pequena

Esta foi a última tira de Calvin & Hobbes, magnífica série da infância de todos e que, para mim, ainda hoje me preenche os dias, em a relendo na contra-capa de jornais e nos livros por coleccionar. Escolhi-a para celebrar tristemente - passe o paradoxo -, como eles naquele 31 de Dezembro de 1995, a minha partida deste blogue. Não perpétua (ainda há a segunda parte de Prometeu-Lúcifer para partilhar!), mas efémera demasiado. Abandono agora a cibernia para a hibernação sem sonho dos exames nacionais, que me arrancam, violentamente, da minha humanidade. Vou-me tornar um pouco mais animal (por isso digo hibernar) e ser mais menos humano. A coisa pequena, a entrada no blogue, a pétala da margarida rosa, o meu pensamento proto-filosófico, a poesia-problema, a meditação divina do mundo, o desabafo constrangido, a memória querida de um fim-de-semana no campo, uma varanda amarela: isso, que me faz humano, renego hoje para me enterrar nesta bestialidade do sistema em que, involuntário, fui posto, passivamente. Perco tudo, tudo, para me centrar no estudo, muito aplicado!, de todo um saber que sei que vou esquecer daqui a uma dezena de anos, para não dizer por meados de Agosto. Que parvoíce! Há um rei e eu restrinjo-me a bobo - vou agora aplicar os guizos no chapéu. Adeus... e até voltarei, como não cantam os Madredeus.

sábado, maio 13, 2006

Speakers' Corner §2: Prometeu [em lendo a "Origem da Tragédia"]

Cita Nietzsche Goethe, a sua obra Prometeu:

Sentado aqui, eis que modelo homens
À minha imagem
Uma raça que me seja comparável,
Para sofrer e chorar,
Para gozar e jubilar,
E para não te venerar,
Como eu!

Eis que, em lendo, na aula, estas palavras, tudo, como iluminação, como eu mesmo, prometeu, roubara o fogo que algum deus olímpico escondera, uma série de encadeamentos de conceitos e noções, até à associação final da imagem.

Nestes versos do Poeta, aparece-nos um Promoteu que, primeiramente, se caracteriza pela revolta; segundo, pelo acto demiúrgico; terceiro, a ideia do sofrimento. Ante isto, é impossível não ocorrer à mente, correndo, a ideia de Lucífer-Demiurgo, numa fusão das entedidades Lúcifer (cristã) e Demiurgo (gnóstica). Lúcifer é, pela tradição, o anjo caído, que se revolta contra Deus, que resvala, ele mesmo, para o sofrimento (por isso cria também os seres humanos "para sofrer", "à minha [sua] imagem") derivado da separação de Deus e do Uno Primordial (não se leia o termo nietzschianamente). Em revolta, sugere-nos Goethe, lembrando o Demiurgo platónico-gnóstico, cria os homens: surge a matéria. Note-se, mais aterrador, a semelhança entre Lúcifer, literalmente, o que leva a luz, e Prometeu, que roubou a luz (o fogo). A própria linguagem nos parece claramente indicar uma estranha ligação entre as duas personagens.

Naturalmente, o imaginário cristão jamais poderia comportar a ideia de uma criação não divina, mas diabólica, isto é, que tudo o que existe não tenha sido criado por Deus, como afirma o Génesis. As primeiríssimas heresias cristãs, que afirmavam a matéria como mal, pareciam defender, implicita ou inconscientemente, que, a matéria, enquanto algo de claramente negativo, não podia ter a origem num sre bondoso, Deus, mas num deus menor, num demiurgo, num diabo, que, malvado, criara a matéria malvada. Não existia forma de compatibilizar as ideias, contraditórias, de Deus como criador de tudo e da matéria como algo negativo, mau. Obviamente, para suprir este dilema, o cristianismo ultrapassou esta dialéctica platónica que parece ter sido seu apanágio durante a Idade Média.

Obviamente, aquando do aparecimento da figura de Prometeu na mitologia grega este dualismo platónico estava totalmente ausente, pelo que a criação do homem em matéria (e espírito: recordemos, de novo, que não se falava ainda no maniqueísmo que Platão mais tarde introduziria ao falar de um Hiperurano onde os seres humanos existem somente enquanto almas) não é considerado um acto mau, nem, note-se, ainda sequer um acto de rebaldia. De acordo com o mito, Prometeu e o seu irmão titã criaram os seres vivos (Prometeu somente o Homem, sozinho) sob autorização de Zeus, para povoarem a terra. Nem, sequer, podemos declamar o verso de Goethe "E para te não venerar", já que, diz a tradição mítica helénica, foi Prometeu que ensinou aos homens o dever do sacrifício para com os deuses e das libações que lhes deviam. Sabendo nós que Goethe não era, de forma alguma, um ignorante nestas matérias clássicas, só podemos entender o por ele escrito como uma deliberada tentativa de associação da figura de Prometeu à de Lúcifer, no conceito de um caído e rebelado, e à do Demiurgo, que, porém, aqui, se transfigura.

Esta transfiguração é vital, no entendimento do que aqui tentamos expôr. Se o termo demiurgo contém uma carga negativa latente, um desprezo óbvio, quer por parte de Platão quer por parte dps gnósticos, que dele bebem, ele aqui surge totalmente retransfigurado, no cimo do monte tabor, ladeado do seu elias e do seu moisés: e nós, na sua contemplação, pedros, contruamos três tendas. Aqui o desprizível Demiurgo torna-se no resplendoroso Prometeu. O acto criador do velho Demiurgo, antes ele e o seu acto achados baixos, menores e maus, são agora subidos a toda uma nova categoria quando abandonamos essa terminologia satírica para com eles para falarmos da imagem helénica de Prometeu. Quem olha desprezivelmente para Prometeu? Ele é o deus menor ainda, nem deus é, é titã, o grosseiro titã, comentarão os deus olímpicos dos seus tronos de esmeraldas, mas ele é, a nós, homens, seus filhos, o pai, o criador: ele nos deu plena existência. Não achamos mais um deus menor que emprisionou os nossos espíritos, antes livres no etéreo, na matéria, achamos sim, há semelhança do Deus cristão, um criador que nos cria, pela primeira vez, inteiros, matéria e espírito (anima, em latim, aquilo que anima, ou seja, dá vida, literalmente).

Assim, Goethe opera esse milagre, naqueles versos citados por Nietzsche, de fundir, simultaneamente, as figuras de Lúcifer (no sentido da revolta) e Deus (no sentido da criação), nesse híbrido que é Prometeu. Prometeu, desde o início, elevou os homens à condição de Deus, dando-lhes o saber (do qual o fogo, em última análise, mais não é que, enquanto luz (Iluminismo), uma metáfora), o que incendiu tanto a ira de Zeus. Aqui, vemos, obviamente paralelismos bíblicos, com a Árvore do Conhecimento que Deus proibiu Eva e Adão de comerem. Mas a Serpente-Lúcifer-Prometeu dá a maçã aos homens, trazendo-lhes o conhecimento, o qual, inevitavelmente, traz sofrimento, quer ao tentador, quer aos tentados. É isso que nos diz não só o relato do Génesis, mas também o mito grego, quando, por um lado, Prometeu é agrilhoado no Cáucaso, por outro, Pandora desce à terra com os males do mundo e os liberta, punindo a nossa raça. Uma outra vez, reforça-se a ligação Lúcifer-Prometeu.

Parecemos ter aqui a confirmação da sabedoria profunda de Nietzsche, que escrevia, pouco antes de citar estes versos, "aquele que decifrar o enigma da natureza [...] há-de [...] violar as sagradas leis da moral." ou ainda "lança da sabedoria volta-se contra o sábio: a sabedoria é um crime contra a natureza". Nietzsche desprezaria esta minha interpretação desvirtuada dos seus escritos, mas parece que temos aqui a confirmação de que Diónisos (Uno Primordial) é, de facto, o contrário do Véu de Maya (princípio da individuação), é a perda do "eu", num nirvana quase budista. É, em suma, a incosciência, no sentido de não saber, o estado primitivo (por isso Uno Primordial) de Eva e Adão (em metáfora de todos os homens) até Lúcifer-Prometeu os tentar. (esta é, mais especificamente, a interpretação que Nietzsche reprovaria). É deste Uno Primordial em que tudo é paz, porque inconsciência ("Ignorance is bliss" - Cypher, Matrix) (que é a ingenuidade, a tão louvada ingenuidade, mais do que um não saber?), que Lúcifer-Prometeu quer arrancar os homens. Diz o mito que Zeus não concordava com o que Prometeu fazia aos homens, que ele [Prometeu] via como superiores a todos os restantes animais, achando que os homens deviam ser semelhantes às bestas. A sabedoria surge como uma ofensa aos deuses. Na ignorância se moviam a pré-Pirra e o pré-Deucalião (sem nomes na lenda) até Lúcifer-Prometeu lhes dar a luz (fogo), ele que, é, por Lúcifer, o que leva a luz, por Prometeu, o que vê mais longe. Note-se, na etimologia de Prometeu, o verbo ver: saber é ver, ver implica, enquanto fenómeno físico, necessariamente, a luz. Esta é a sabedoria maior, a de o ver longe, ou profecia. Pela profecia, Prometeu foi salvo: Zeus não podia dispensar saber quem seria aquele que o destronaria: preso ao poder, prendeu à rocha aquele que doutro modo mataria. Prometeu ensinou os homens, diz o mito, a estudar os astros e sabemos como nesse tempo que era o da Antiguidade, astronomia era equivalente de astrologia, e que outro intuito tem esta senão conhecer o que está para vir? Assim, vendo em Prometeu, o sentido da advinhação, vemos nele o Apolo de Nietzsche, até na forma ordenadora que traz ao homem-animal-besta, para o elevar ao patamar civilizado. O Apolo, que Nietzsche tanto critica, torna-se assim, na figura de Prometeu, o salto necessário para superar Diónisos, o estado primitivo e bárbaro.

Se a sabedoria é, como vimos, uma ameça aos deuses, como não o pode ser mais a profecia, o conhecimento do próprio destino? Os seres humanos humanos ameaçavam saber tanto como os deuses, ser tão poderosos como os deuses - e, então, que poder teriam os deuses? Obviamente, entende-se a preocupação destes. Os deuses constituem-se assim como uma espécie que existe apenas em função da conservação e execução do poder. (Um comunista podia ler aqui uma bela metáfora contra o capitalismo - pobres gregos que não sonhavem estes marxistas aproveitamentos!). O que Prometeu vem, proletário revolucionário, fazer é incentivar os homens a rebelarem-se, à semelhança de como ele se rebelou contra Zeus. Rebelado, ele pode ser mais infeliz, mais miserável, porque perdeu a benesse da paz e felicidade primordiais, que só se atingem na inconsciência, no nirvana, mas, em contrapartida, tornou-se livre, e a sua liberdade conquistada, não a cede por nada. Fora da mansão do seu senhor, o escravo não tem o pão que, todos os dias, o mestre lhe assegurava na mesa, não tem a água pura que o dominador lhe servia, mas é livre! E a única coisa pela qual pode ceder a sua liberdade (que antes dissémos não ceder jamais) é pela concessão de liberdade aos outros. Assim se entende que Prometeu, aquele que prevê, porque prevê, sabendo, a priori, do seu castigo, tenha, mesmo assim, roubado o fogo: a única coisa pela qual a liberdade é passível de ser cedida é pela própria liberdade. E, pelo fogo, Prometeu concretizou a libertação dos humanos dos deuses. Prometeu, foi, num certo sentido, o primeiro anarquista. Dizia Bakunine que "Se Deus existisse realmente, seria necessário fazê-lo desaparecer". Prometeu e Bakunine partilham a visão de um Deus que apenas procura preservar o seu poder (o que, implica, necessariamente, alguém que se submeta a esse mesmo poder e pelo qual esse poder se possa exprimir, em lhe [ao poder] obedecendo). Ante esta escravatura, os dois apelam à libertação do homem. Lúcifer, esse, procura libertar o ser humano da prisão da sua ignorância, que é inclusive a ignorância da sua prisão.

Algo, porém, ao leitor atento, parece falhar neste edifício. E, ai!, que até a mim me intrigava! Mas, como quando se escreve, tudo se desentreva, assim, em quanto me explanava em buscas de sentidos, achei-o. Sim, certo, o mito é claro nesse aspecto: depois de roubar o fogo do Olimpo, do carro de Hélio, Prometeu aconselhou os homens, que faziam fogueiras para aquecerem os alimentos e os corpos, a, para aplacar a ira de Zeus que ele previa, que lhe oferecessem um sacríficio (aqui a introdução do sacrifício, antes mencionada e atribuída ao titã). Para isso, matou-se um boi. Mas, eis companheiros, "brothers, your humble narrator" acercou-se da lenda e entendeu, enfim, o seu pormenor que não deslindava. Concentremo-nos no futuro do boi. Prometeu didiviu os restos do boi em duas partes, que envolveu em pele. A porção maior continha apenas gordura e ossos; a mais pequena repletava-se de boa carne. (há outras versões do mito, que o narram diferentemente, mas, tratam-se de matérias de pormenores ou divergências que, na medida das várias versões por nós conhecidas, em nada afectam as conclusões tiradas antes). Prometeu, ante Zeus, disse ter reservado a menor para os deuses, mas o pai do Olimpo indignou-se. Matreiro, como um Loki nórdico, Prometeu deixou, com um sorriso, Zeus escolher que porção queria e, obviamente, o guloso escolheu a maior - só para perceber como fora ludibriado. Note-se, pois, que Prometeu tudo isto fez para enganar os deuses - há aqui um sarcasmo, um desprezo. Ele introduziu o sacrifício, concordo: mas com o único intuito de ridicularizar Zeus. Por isso, o próprio sacrifício, na forma em que Prometeu o introduz, tornar-se um acto de revolta contra os deuses, não de subserviência. Goethe escrevia bem quando nos deixou o verso "E para te não venerar, /Como eu!".

Uma última questão prende-se com a criação dos seres humanos por Prometeu-Lucífer, apenas aflorada anteriormente. Lúcifer é aqui equiparado ao Demiurgo gnóstico só no sentido em que, não sendo Deus Deus, é um criador também. Segundo um os Três Livros de Enoque, bisavô de Moisés, (estes livros, não pertencendo ao cânon, foram citados e reconhecidos como inspirados por vários Pais da Igreja), Deus escolhera um grupo de anjos específicos (os quais, posteriormente, cairiam) para auxiliar na construção do Éden. A narrativa descreve como se apaixonaram pelas mulheres e lhes geraram prole, razão pela qual, segundo o autor teriam sido expulsos. Esta visão que muitos tardariam a qualificar de apócrifa está, na realidade, bastante bem documentada no Génesis. Passamos a citar o início do sexto capítulo do primeiro do Pentateuco: "Quando a humanidade começou a ser mais numerosa na terra e foram nascendo mais raparigas, os seres celestes viram que estas eram belas e cada um deles escolheu para sua mulher aquela que mais lhe agradou. [...] Havia então na terra os gigantes e continuaram depois a existir. E que os seres celestes tinham casado com as filhas dos homens e tinham gerado filhos. Foram estes os famosos heróis dos tempos antigos." (Gn, 6, 1-4). Porém, pois nos interessa especificamente este relato e só o transcrevi para maior credibilidade dar aos Três Livros de Enoque. O que estes nos revelam de importante é a intervenção directa dos anjos na criação do mundo. O texto, obviamente, não assume a possibilidade que não tenha sido Deus a criar a raça humana, mas involve directamente os caídos na feitura do mundo. Também Prometeu, como referido, cria os homens sob ordens de Zeus (ainda que este solicitasse apenas criaturas, sem especificar, para popular a terra). Se estamos perante um anjo-titã que se revolta contra a autoridade, como entender este acatamento de ordens da mesma autoridade? A tradição (do mito e do cristianismo) remete, frequentemente, a queda para depois da criação do ser humano, pelo que, sem embargo, podemos reconhecer Prometeu coerente, o mesmo Prometeu que, anteriormente, se associara mesmo a Zeus para destronar os outros titãs. Contudo, se tudo isto aqui explanamos, é numa tentativa de remeter sentido ao verso "eis que modelo homens", na tentativa de ligar mais prontamente Prometeu e Lúcifer. Para tal, tínhamos antes feito equivaler Lúcifer, na coisa de criar, ao Demiurgo gnóstico. Porém, a ligação das duas imagens que fazemos é relativamente vaga, pelo que seria mais acertado o associarmos ao binómio gnóstico Sophia/Demiurgo, que sabemos [este último] ser uma emanação de Sophia, a qual, por sua vez, era a emanação mais fraca de Deus. Lúcifer comporta esta dupla divindade: é Sophia enquanto portador de sabedoria, e é Demiurgo enquanto criador do mundo. Porém, não nos coibimos de concordar que é forçado unir, neste ponto específico, as imagens de Prometeu e Lúcifer, se não concedermos em não aceitar a versão de Goethe e do mito na sua versão mais conhecida, de que Prometeu criou, de facto, os seres humanos. Porém, ainda que este assunto seja portador de grande relevância, se aqui o tratamos foi por razões de honestidade e clarificação. Ele, na teologia nova do saber que aqui abordamos, no âmbito só em que Nietzsche a usa, mantém, independentemente da sua resolução correcta, inalteráveis e válidas as assumpções anteriormente feitas em matéria de conhecimento (fogo/luz) trazido pelo Prometeu-Lúcifer.

Estamos aptos a sintetizar então toda uma teologia alternativa: no começo, era o que chamámos de Uno Primordial: um descanso pacífico infinito de Deus/Zeus e das Suas criações. Nele, uma dessas criações (Prometeu-Lúcifer) revolta-se, ao despertar desse Uno Primordial, entendendo, enquanto criação, o seu estado de submissão ao poder instituído (Deus/Zeus). [?Cria as suas próprias criaturas: e, nesse, e apenas nesse, sentido de que cria sem que que seja a Entidade Máxima, é demiurgo.?] Aos homens ensina. Os deuses (Deus/Zeus) reagem negativamente à escalada de conhecimentos das criaturas que antes, no Uno Primordial, porque ignorantes, se lhes submetiam, sendo felizes. Com o conhecimento dissolve-se a ignorância, com ela a subserviência. Os homens escalam ao estatuto de deuses e dispensam-nos, gozando das libações que lhes prestam. Como castigo, o seu libertador (Prometeu-Lúcifer) é condenado, bem como eles mesmos. Os poderes (Deus/Zeus) surgem, pois, como vingativos, sendentos de poder, e Prometeu-Lúcifer como o salvador da Liberdade pela Sabedoria: a gnose, com a ascenção à condição igual dos deuses, e a queda necessária de belerofonte que isso implica.

Nietzsche por Munch

"He falleth like Lucifer, Ne'er to ascend again.."
And When He Falleth, Theatre Of Tragedy

quarta-feira, abril 12, 2006

Moleskines §4: O Operário em Construção

Presenteio-vos com a genial declamação de Mário Viegas do não menos forte poema de Vinicius, extraído do EP homónimo, O Operário em Construção e 3 Poemas de Brecht (1975). A T. emprestou-me, ' semana antiga, um duplo CD de poesia de Vinícius, cantada pelos ritmos afro-brasileiros da bossa-nova. Ela comprara o disco pela paixão que tem por aquelas cálidas melodias vivas, que só podiam mesmo ter sido inventadas numa praia brasileira. Posso dizer que, antes, nunca ouvira música brasileira, porque trautear Tribalistas ou ver o pai a ouvir Maria Bethania não pode, na acepção mais aceite da palavra, ser considerado válido para aquilo em questão. Foi um prazer natural aquele andamento dançável de Tom Jobim num' A Rapariga do Ipanema. Há beleza e tristeza no samba, como Vinicius ajustadamente exigia que houvesse. Na realidade, a verdadeira beleza é sempre triste; sabemos que é bela, porque é triste. O poeta, ante o que é belo, inevitavelmente, chora - não pode deixar de o fazer. É a súbita consciência da efemeridade de tudo o que se apresenta na proporção e harmonia da alma estética que carpe o homem. Perceber que toda a mulher bonita, há-de morrer - e, em última análise, que a todos nós chegará o dia em que os olhos se fecharão para as coisas belas. Se a beleza é algo de divino, então a beleza é, por maioria de razão, triste, porque Deus tem de ser obviamente Alguém profundamente infeliz. Na realidade, o poeta e o filósofo - ainda que movidos por dois instintos carnivoramente diferentes: sentimento e pensamento - estão ambos condenados a ser, na sua essência, misteriosamente próximos. Resumindo, ambos almejam alcançar a alquimia do mundo - não para a dominarem: a esses chamam-se políticos e demagogos - mas tão somente para a compreenderem. Bem vistas as coisas, o poeta quer tanto como o filósofo saber o mistério do mundo, apenas não se esforça muito para isso, porque, em descoberto o mistério, que resta para que nos espantemos e se escreva versos? O poeta quer - mas o poeta é budista. E anula o desejo. Não o elimina - somente o não concretiza. Ama, por exemplo, mas nunca, de forma efectiva, se lança à rapariga. Na realidade, ele perserva o desejo, pois não se pode desejar o que se tem. O poeta é um desejador, arde-lhe, nietzschianamente, a vontade - mas ele tem o cuidado de a preservar como um animal numa jaula de zoo. Por isso, na época de ouro da poesia como vida - o Romantismo - inevitavelmente a filosofia desse tempo tinha por arauto os profetas da Vontade: Zaratustra e Schopenhauer. O poeta é um desejador. E, depois, há os que desejam ser poetas...

And Viddy Films I Would §3: "V For Vendetta", de James McTeigue (2005)

Em circuitos de culto, V For Vendetta já andava a ser seguido desde há quase um ano, quando as primeiras informações sobre o projecto foram divulgadas. Era o semi-regresso ansiado dos irmãos Wachowski, que, desta feita, tinham a cargo somente o guião (escrito, aliás, antes mesmo da trilogia Matrix), deixando a realização para James McTeigue (assistente de realização na saga que os catapultou para o sucesso devido), mau títere dos irmãos que são, no fundo, a força principal por detrás deste filme que podemos reclamar inteiramente como criação sua.

V For Vendetta (estupidamente traduzido para português V de Vingança, sem preservar, como faz o título inglês, a palavra italiana) decorre numa Inglaterra distópica, num futuro próximo, em que o país seria governado por um regime fascista e conservador, com laivos nazis (não só na simbologia, mas também nas experiências cinetíficas à la Mengele). Evey, uma funcionária da estação estatal - obviamente, a única - é salva, na noite de 4 para 5 de Novembro, dos delatores ao serviço do Governo por um mascarado que sa auto-intitula de V. Pelos olhos de Evey, seguiremos a demanda revolucionária de V pela libertação do seu país do totalitarismo.

O filme é adaptado da BD homónima, da autoria de Alan Moore, reputado escritor da nona arte, e fora concebida nos anos 80 como uma crítica às políticas conservadoras de Thatcher. Na série, politicamente confrontavam-se fascismo e anarquismo. Esta dicotomia foi praticamente omitida pelos irmãos argumentistas, que se concentraram antes no lado terorista da personagem principal. De facto, ainda que não confessado, o guião foi claramente actualizado para servir como uma parábola da época moderna, dos medos e angústias do início de século XXI.

O lado anarquista não foi de todo censurado. Quando, por exemplo, V diz a Evey «A revolution without dancing...is a revolution not worth having!», cita Emma Goldman, conhecida anarquista. Sinteticamente, Finch - o polícia responsável por apanhar V - resume o objectivo do lutador da liberdade «Chaos». Noutro momento ainda, alguém grita «Anarchy in the UK!». Porém, outras referências não se identificam. Como comentaram os puristas, na BD, V lutava, acima de tudo, por algo; no filme, luta apenas contra o regime. V, ao longo de toda a película, não apresenta, de facto, uma única alternativa à ditadura. (Para ulterior desenvolvimento das diferenças entre fita e livro no que diz respeito ao anarquismo, vide A For Anarchy).

Pelo contrário, a palavra "terrorista" ou seus derivados recorrentemente emerge no filme. Este coloca-nos a pergunta incómoda: pode um terrorista ser bom? V, em última análise, enquanto vai eliminando chefes políticos e rebentando com edifícios emblemáticos desabitados, está a contribuir para a construção de um mundo melhor. A definição de terrorista balança na corda bamba na bobina deste filme. Os métodos de V merecem toda a nossa atenção e perguntam-nos constantemente a sua legitimidade: note-se a sua relação com Evey e as questões que emergem.

Porém, V For Vendetta herdou do livro um pormenor com toda a relevância: ao contrário da típica BD, o herói aqui não é tanto V, mas muito mais o povo. Daí constantemente, ao longo da película, irmos, silenciosamente, conhecendo uma série de famílias, pois é a elas que compete a rebelião. Escrevia Brecht num dos seus poemas «De quem depende que a opressão prossiga? De nós./De quem depende que ela acabe? Também de nós.» - é isto que V quer consciencializar a população. Por isso, ele se dirige à nação quando toma a estação televisiva onde trabalha Evey, para acordar as consciências adormecidas. Por isso, ele desabafa «...if you're looking for the guilty, you need only look into a mirror.». Como um crítico apontou, V é todos e ninguém; ninguém porque, sob a máscara e o anonimato, não lhe conhecemos a identidade (nem interessa, pois ele representa uma ideia e, as ideias, como ele diz a Creedy, são à prova de bala); mas é todos, pois, mascarados com a indumentária de V, quando os cidadãos enchem as ruas para levarem a cabo a revolta contra o regime, todos eles são, em última análise, o próprio V. V é, mais que uma pessoa, um símbolo. Não é ele quem faz revolução (a alavanca da mesma é deixada a Evey - a nova geração que verdadeiramente tem de tomar a decisão, como reconhece V), mas sim o povo porque quer.

O filme cruza referências tão diversas como Dickens, Camus, Shakespeare ou O Conde de Monte Cristo e O Fantasma da Ópera, sem esquecer, claro, a pesada herança de 1984 de Orwell. Os irmãos Wachowski, cujo contributo ao argumento já avaliámos, introduziram também no guião algumas das ideias que lhes são mais caras, como se deduz de quando V afirma «I, like God, do not play with dice and do not believe in coincidence.» ou «There is no such thing as coincidence, just the illusion of coincidence.»: retoma-se aqui o tema da relação entre destino, liberdade e coincidência que, filosoficamente, tão profundamente marcaram o segundo capítulo da trilogia Matrix. Os irmãos não se escusaram a alguns jogos subtis, como escolherem para chanceller Suttler o actor John Hurt, que tinha desempenhado o papel do oprimido Winston Smith na adaptação cinematográfica de 1984.

Ainda em termos filosóficos, V For Vendetta é, por fim, um magnífico ensaio sobre o poder da palavra; a palavra como verdade e a verdade como poder. A esse propósito, são ilustrativas algumas frases da própria metragem:

Because while the truncheon may be used in lieu of conversation, words will always retain their power. Words offer the means to meaning, and for those who will listen, the annunciation of truth.

My father was a writer. You'd have liked him. He used to say that artists use lies to tell the truth while politicans use them to cover the truth up.

Vi Veri Vniversum Vivus Vici
(Pelo Poder da Verdade, Eu, Vivo, Conquistei o Universo)

Em termos cinematográficos, o filme tem recebido boa e merecida aclamação, tendo já alcançado o seu lugar entre os 200 melhores filmes de sempre no IMDB. A realização é, bem possivelmente, o aspecto mais negativo da película. Nota-se a imaturidade de McTeigue, cujo trabalho nos passa indiferente. Certo que pegou o touro pelos cornos, ao começar uma carreira com um projecto desta envergadura, e, desse ponto de vista, há que realçar a forma como se aguentou. Um ou outro plano é, de facto, bem apanhado. Estou a pensar particularmente no renascimento espiritual de Evey. A fotografia, a cargo de Adrian Biddle, opressiva e incomodativa a princípio, restringindo-se a uma paleta de negros e vermelhos, resulta, no entanto, eficazmente, sendo memso um dos pontos mais laudatórias do filme. A banda sonora surpreendeu-me, mas não tanto da parte de Dario Marianelli (compositor de Orgulho & Preconceito, justamente nomeado para Óscar), mas muito mais pela música não-original, quer clássicos, como a epíca Abertura 1812 de Tchaikovsky - cujo uso, em termos de relação imagem/som, exclusivamente, pode ser, sem grande erro, equiparado ao da Nona na Laranja Mecânica ou da Cavalgada das Valquírias em Apocalypse Now - ou a Quinta de Beethoven (os fãs de Beethoven saberão por decerto que as notas introdutórias da sinfonia formam, em código Morse, a letra V), quer graças à recuperação de algumas baladas dos anos 50, como Cry Me a River. Os efeitos especiais, vindos da equipa de Joel Silver, são, obviamente, ou não tivessem os Wachowski elevado o patamar nesta área, da mais requintada qualidade bem como as coreografias das lutas. Desenganem-se porém os que vierem em busca de um filme de acção, mesmo que incentivados pelo trailer. A interpretação de Natalie Portman é madura e profissional e exigente pois, como é já lugar-comum, ela teve de rapar o cabelo para V For Vendetta.

Porém, a grande vitória do filme é, par a par com a poderosa narrativa, a personagem de V. V é, simplesmente, uma das mais belas personagens da história do cinema, das mais carismáticas e apaixonantes. E, a causa total disso, é Hugo Weaving, que divinamente veio substituir no papel James Purefoy, ao que consta, porque este não conseguiria utilizar a máscara ao longo de todas as filmagens. Só um actor da craveira imensa como é a de Weaving conseguiria insuflar uma tal vida a uma personagem principal que nunca depõe a sua máscara. A forma como ele pronuncia cada frase, as modulações da sua voz, os gestos, os tiques, os movimentos: em tudo pôs Hugo a sua arte e compôs um dos mais fantásticos papéis da sétima arte a que ninguém sai impune.

O filme não é perfeito, mas é poderoso. 5 estrelas. V estrelas.