quarta-feira, outubro 24, 2007

Em Busca da Beleza Perdida §6: O Erro de Virgílio

Sentei-me à secretária e abri as folhas. As palavras do poema encravavam-se entre os apontamentos manuscritos das aulas anteriores. Olhei os versos novos a traduzir. Bucólica Quarta, Virgílio: a falsa profecia cristã, em que se previu o Menino ("... modo nascenti puero, quo ferrea primum/desinet ac toto surget gens aurea mundo": "...ao menino que vai nascer em breve, com cujo nascimento/acabará a geração do Ferro e surgirá em todo o mundo a do Ouro") - que não era senão, coisa banal!, o filho do mecenas de Virgílio, Asínio Polião. Fiz o sésamo do dicionário (mesmo sem ser ali babá) e inicei a versão. O homero romano, fervoroso, enunciava como uma lista de supermercado as coisas grandes da idade do ouro, cuja vinda acompanharia o nascimento da criança mágica. E tudo seria, na sua descrição exultante, uma ilha dos amores (menos erótica, porém - isso, foi invenção sábia e boa de camões). Foi então que li os versos errados (cujo início, de resto, lembra aquela linha má de Cícero, quando este pensou infamemente que era poeta): "cedet et ipse mari uector, nec nautica pinus/mutabit merces: omnis feret omnia tellus" - "O próprio armador renunciará ao mar, nem o pinheiro naval (=navio)/há-de transportar as mercadorias: toda a terra há-de produzir tudo" (na tradução bela e latina do Pai-Santo Agostinho da Silva: "Ninguém mais haverá de marinheiro/e nave alguma transportará cargas/pois toda a terra tudo nos dará"). Virgílio, Virgílio!, que loucura foi essa que te tomou? Atou-te a trapaceira Ate (Aτή), (na trapaça só se compara a Eros: os dois - poucos o sabem - são gémeos falsos), a deusa do Erro, a de delicados pés que caminha "sobre as cabeças dos homens" (Il. XIX, 93, trad.: F. Lourenço). Virgílio, que damásio para o teu erro? Reli os versos, verifiquei a tradução e confirmei a insensatez: queria Virgílio um mundo sem mar!. Ponderei nas razões disso ser. Como um truman show, o pai dele devia ter-se afogado sob o olhar impotente do filho: doravante, não mais Virgílio foi capaz de construir castelos de areia, pelo receio das marés. Não raramente lembrava aos seus amigos, quando, em conversas de café, gozavam divertidos com a sua fobia, que a atlântida tinha morrido submersa (ele não sabia que, de todos eles, só mesmo asínio polião acreditava em platão). Depois o magister deu-lhe a ler hesíodo - e ele convenceu-se definitivamente da maldade do mar. Gastava as tardes livres no atelier a desenhar mapas do mundo e a requintar de monstros os mares vários (os cartógrafos medievais, de facto, pouco outro fizeram senão copiar meticulosamente as quimeras aquáticas do amedrontado Virgílio). Um dia, porém, Virgílio apaixonou-se: e a rapariga eleita nascera, como uma afrodite, do mar. Morava numa pequena cidade costeira, onde guardava uma uilla. Virgílio amou-a: mas ela amava o mar. Quando já sabiam contar dois meses de namoro, convidou-o para ir a casa dos pais dela, almoçar e conhecê-los. Ele assentiu. Quando a comida já estava encerrada, ela resgatou-o e levou-o para fora de casa com o egoísmo de o ter só para ela. Calado e amado, ele seguia-a. Foram ter à praia. Num gesto só, Virgílio apertou-lhe a mãe com força, como dois namorados. Ela, porém, não podia compreender que Virgílio procurava somente segurança, como uma criança à mãe. E, vendo naquilo um anel de noivado, Júlia, filha de Júlio (assim se chamava ela), encardiu os lábios dele com um primeiro beijo. Como uma abelha soltando-se da flor, desapertou os seus lábios dos dele e tingiu-os num sorriso. Nos olhos, apascentava o amor. Como quem se livra de algo incómodo, um peso aborrecido, desprendeu o vestido e deixou o pano mostrá-la. Abaixou-se e libertou as sandálias. Virgílio contemplava-a e via-lhe o corpo, delgado, vincado, em graça. Ela sussurrou-lhe ao ouvido, oferecendo-se-lhe inteira. E então correu para o mar, os pés descalços e pequenos sobre a areia que a corrida levantava como um aplauso, o corpo nu contra as ondas - mergulhou. Virgílio apoquentou-se, primeiro porque ela não aparecia; depois que ela emergiu, porque lhe pedia o mesmo compromisso e dar razão a Tales, fazendo toda a vida nascer na água. Virgílio sentia o desejo - e sentia o medo. E, como sempre que esta balança se organiza para os cobardes, triunfou o último. Sem voltar costas, Virgílio começou a recuar, até correr depois como um judas a quem os sacerdotes não aceitam a devolução das trinta moedas. No mar, a filha de Julho fez-se inverno - e chorou, incompreendendo. Apolo, deus mau, vendo-a então nua, e desprotegida de Virgílio, desceu dos ceús, consumido pela pulsão baixa, o libido. Deus parvo, atirou-se à água e nadou furiosamente para ela, para a tomar. Nos olhos dele ela reconheceu o seu perigo. Aflita, nadou mais e mais para dentro de água, mas o deus, como um cão perseguindo uma rapariga pequena, aproximava-se também mais e mais dela. Quando, enfim, apolo, o deus mínimo, estava prestes a agarrá-la, Zeus, compadecido, com o consentimento de ovídio, deixou crescer à rapariga uma cauda de peixe, para que fosse mais célere que febo bárbaro, e se mantivesse pura: assim nasceu a primeira sereia (a mesma por quem, muitos séculos depois, hans christian andersen se apaixonou). Virgílio jamais a recuperou, e o mar ficou-lhe a dever o pai e a amante. Furioso, o poeta mandou erguer uma torre altíssima, com o limite, contudo, de do seu topo não se conseguir ver o mar. Aí se fechou, imerso no elemento aéreo, longe do seu inimigo (porém, por respeito para com o deus, todos os dias, para não julgar o nume que ele o ofendia, oferecia hecatombes a posídon). De acordo com um testemunho oral de um escravo de Virgílio, a torre era também toda ela desprovida de janelas, para que jamais sucedesse o poeta contemplar sequer a chuva, que engorda os rios e engravida o mar. Assim, na ira, morava Virgílio - e, movido por esse ódio, escreveu as severas palavras da Bucólica, proclamando o mundo do mar dispensável, esquecido de que, no início, o espírito de Deus se movia sobre as águas. Por fim, Virgílio morreu, e foi para o Hades, onde o encontrou Dante. Ai, Virgílio, Virgílio! Viveste já tantos séculos entre o fogo: deixa-me mostrar-te a água eterna! Um dos grandes mistérios da humanidade (como stonehenge) é saber como Beethoven, o Grande, compôs a Nona Sinfonia, sem jamais, na sua vida, ter algum dia contemplado o mar. Frequentemente acho-me na Varanda a meditar sobre esse puzzle. Conheces, Virgílio, aquele quadro do David Friedrich, Monge à Beira-Mar? Creio ser das coisas mais belas que o romantismo pintou. O mar, Virgílio, é a forma material da metafísica; ali, derrama-se a transcendência, liquefeita. "Toda a terra tudo nos dará": quem te plantou esse engano: Nietzsche? O próprio engano, nota, é uma coisa da terra, que é opaca e enlameada; não do mar, transparente e limpo, onde não há hipocrisia. Sabes, Virgílio, em última análise (deixa-me confessar-te este segredo), se a Odisseia triunfou sobre a Ilíada, foi pelo seu cheiro a sal (e o sal, diz-se, é um condimento indispensável para qualquer receita). Virgílio, tu nunca poderias ter descoberto a índia e inventado o preste joão. Vou-te narrar uma estória e, como esopo, dela tirarás a moral: Júlio Verne quis, quando jovem, partir para o porto e embarcar, para conhecer o mundo - o pai, porém, apanhou-o e proibiu-lhe expressamente algum dia fazer-se marinheiro. Desgostoso disso, estudou afincadamente, lendo as revistas da netional geographic, as curvas do mundo (o mundo, enganam-se os que dizem ele ter cantos: é feito, sem dúvida, de curvas - parecem-se esquecer da verdade fundamental: o mundo é uma mulher). Foi assim que viajou sem barcos e escreveu tais livros que os homens todos quiseram acreditar que ele necessariamente tinha visitado quanto descrevia - mesmo se esse crença deles era uma mentira. Mas, Virgílio!, tu nem desejo tens de conhecer a solidão do mar! Já Ismael, o escriba da aventura da baleia branca, dizia que, sempre que tinha vontade de se matar, em vez de o fazer, embarcava num navio para afastar esse vento nefasto. Olha, Virgílio, o exemplo do marinheiro de Malta: ele é livre e belo - de facto, o mar é possivelmente, como ele nos ensina, o último reduto para os românticos, a planície ainda não conspurcada pelo homem e pelas máquinas, o território, arejado e anarquista, sem estado. (Corto, Corto!: quando poderei ser tu? empresta-me ser-te pelo menos umas décadas, só até eu morrer de morte). Os sonhos, formam-se no mar: lê o quinto volume do Sandman. Não é a despropósito (na língua, tudo é ponderado) que mar parece a etimologia de amar. Tétis, senhora dás águas, não esqueças!, deus à luz aquiles: grandes e poderosas coisas obra o mar! A minha primeira lição de grego, foi, crê-me!, à beira-mar. Virgílio, Virgílio: vês agora, manifesto, o teu erro?

Escuta!, ouves?, o grito verdadeiro: Θάλασσα, Θάλασσα!

quinta-feira, outubro 11, 2007

Em Busca da Beleza Perdida §5: Helena: Narrativa de um Enamoramento [primeiro rascunho]

"Foi então que ocorreu outra coisa a Helena, filha de Zeus.
No vinho de que bebiam pôs uma droga que causava
A anulação da dor e da ira e o olvido de todos os males.
Quem quer que ingerisse esta droga misturada na taça,
No decurso desse dia, lágrima alguma não verteria:
Nem que mortos jazessem à sua frente a mãe e o pai;
Nem que na sua presença o irmão ou o filho amado
Perante seus próprios olhos fossem chacinados pelo bronze.
Tais drogas para a mente tinha a filha de Zeus..."

Odisseia, IV, 219-227 (trad. Frederico Lourenço, Cotovia, 2003)

Comecei enfim na semana passada a ler a bendita bem-escrita Odisseia. Hoje, retido por doença em casa como uma suu kyi por uma junta de assassinos, aproveitei o tempo breve para avançar alguns cantos, encerrando a primeira parte do poema, conhecida pelos classicistas como telemaquia, por se centrar na busca de telémaco por seu pai, ulisses. Relembro mal a Íliada. Da Odisseia, porém, desprende-se uma ligeireza e agradabilidade, um sentimento encantatório e simples que consola o leitor como uma bebida de helena. Estranho que a droga da princesa de tróia não tenha ficado proverbial, e dessa realidade não tenha o tempo forjado (cronos é um hefesto) uma expressão como "calcanhar de aquiles" ou "canto das sereias". Não sabia que a filha de zeus se disfarçava de circe e só na fonte primeira, o pai homero, pude beber essa poção. Taça deliciosa! Não cabe em nós receá-la. Ela oferece o mesmo poder que o sonho: sem eliminar a memória, suspende-a. Espantalho efémero da tristeza.

Helena encantou-me. Desconhecia que a "tripla cadela" (como lhe chamou penso que Hesíodo) pudesse ser tão rica de mistérios e simbolismos. Ocorre-me escrever um longo texto sobre ela: subitamente, também eu caio, venerando, perante a mulher que nasceu do ovo. Não nego que a figura de Helena nunca foi das que mais me atraiu: tendia rapidamente a esquecer, ao ler as aventuras dos heróis de tróia, que a guerra era toda por aquela mulher de bela cintura. Hoje, confesso-me do meu pecado, e agradeço a afrodite não me ter punido pelo meu desrespeito perante a beleza. Ao ler as suas palavras naquele canto quarto, sinto a nobreza e a elevação - na forma como se descreve, a tragédia de ter sido um instrumento. Dalguma forma, o episódio doze da primeira temporada de Xena, "Beware Of Greeks Bearing Gifts", já me tinha aberto para as possibilidades alternativas de leitura trágica da figura de Helena. Erro meu, presunção minha!, a de acreditar que haja uma figura só, na hélade, que não seja intrinsicamente trágica! Se até na arcádia, ego sum... Percebo enfim tudo, atravessado por uma seta afiada de lucidez: o que sempre me levou a menorizar Helena, o ela ser sempre apenas um pretexto, um instrumento, é precisamente a sua grande tragédia, porquanto ela é uma pessoa. Lembro a Helena de fausto, de goethe: hei-de chegar a ela, no meu estudo (que pode demorar o mesmo tempo a emergir que eu demorei a perceber a verdade de Helena). Helena é desejada, mas nunca amada. O que durante tanto tempo eu julguei um defeito da sua figura, o ela só ser conhecida pela sua beleza, vejo agora ser o seu grande drama, mulher reduzida a uma só dimensão, expurgada da sua complexidade humana, resumida a uma face única (ai!, e o ser humano é um jano com tanto mais do que dois lados!). Aquiles é corajoso, intempestivo, irritável, desmedido, mas também bom orador; Heitor é bom pai, esposo, filho, cidadão, guerreiro: mas, ai!, Helena é só bela! - ou isso os homens pensam dela apenas! Bastou-me descobrir uma outra faceta dela, apenas, para reequacioná-la completamente. Doravante, Helena, não te tratarei mais com desrespeito. Perdoa as minhas falhas passadas e celebremos, celebremos a nossa união com um brinde da tua droga.

Imagem: Scarlett Johansson, tradução de Helena hoje.

quarta-feira, setembro 26, 2007

Em Busca da Beleza Perdida §4: Carta A Meu Pai

Pai, se eu tivesse sido pequeno, ter-me-ias escrito também cartas do pólo norte e eu talvez tivesse acreditado no pai natal enquanto não descobri na despensa a prenda que recebi quinze dias depois. Hoje, que eu sou criança (finalmente, depois de ter sido velho), é que leio as cartas antes de abrir os presentes todos os natais: são sempre as mesmas (não mandas mais) - que importa?, são suficientes. Mas Pai, não chores santa mónica pelo meu ateísmo em nicolau. Não imagino mesmo como tu sejas a chorar: recordo-te sempre (nas fotografias antigas que a mãe guardou tuas) a sorrires sem estrépito e contente de um segredo, a boca desdobrando-se, como se fosse próprio da anatomia (um sinal de nascença, por exemplo), no cachimbo. Não lamentes, Pai, a minha infância ser uma construção minha enquanto jovem, e eu, como atena, ter crescido pronto-inteiro logo quando hefesto moderno quebrou minha mãe. Aprendi assim, Pai, coisas que os outros se esqueceram de sonhar (Hamlet). Quando tu me contavas, para me embalar (e encarnavas sandman), as estórias de aragorn e éowyn, eu saboreava a melodia de dizer imladris e galadriel para me adormecer como quem conta cordeiros. Tu não te apercebias: eu só o fazia quando tu já tinhas deixado o quarto e abandonado a luz. Dos teus contos, estudei o apêndice E cuidadoso e em segredo, aprendendo a fala primeira do mundo (porquanto arda veio antes de nós). Era aquela a língua pura e pela insistência em me rodear da beleza dos teus mitos permeou-me a beleza dos teus idiomas. Subitamente, as palavras eram como as mulheres: existia-as belas, indiferentes e feias. Redigi uma furiosa catilinária contra os doutores da linguística, e proclamei-lhes o seu erro fundamental: a língua era, mais que um meio de comunicação, um exercício de arte. (Que, de resto, a língua não nasceu para comunicar, mas sim para cortejar as mulheres, já mo tinha ensinado o professor keating na escola). Antes, Pai, eu usava as palavras como quem se serve de uma mulher disponível. Foste tu que me mostraste a falha fundamental disso e me ensinaste a comer as palavras como pêssegos e a deixar os beiços húmidos delas. E em cada fruto de palavra descobri a semente da verdade. Reparei como Deus tinha moldado o mundo pelo império do verbo e sentia cócegas quando me contavas, Pai, os amores das palavras como os amores dos deuses e a sua progenitura. Quis praticar a quiromancia delas e fui penteando o meu quarto com quadros de palavras. As pessoas, quando entravam, interrogavam-me pela razão daquilo e não lhe achavam arte alguma: pobres!, que não sabem olhar por baixo da saia das palavras virgens! E, Pai, quando tu viste quanto eu amava as palavras, criaste mil e uma para mim, uma por cada noite - e chamaste ao conjunto quenya. Resolvi imitar antes do tempo, aulë impaciente, o teu ofício, e construí para mim uma língua e um mundo sobre os teus ensinamentos: para os deuses reservei o celeste c e e, aos ciclopes deixei o f e o v, para as sereias guardei o l, o i e o u, embrulhados de nasais. Pai, nisso fui como o filho pródigo, que te pediu demaisiado cedo a herança sem a saber gerir! Contudo, não me arrependo: tu ficaste feliz, como um pai que aprecia naturalmente os incipientes esforços de um filho para andar. Quis ser arqueólogo da língua e falar indo-europeu para ser entendido por todos. Pai, foste tu que me tornaste filólogo. Um ano depois do gaarder me ter ensinado a filosofar, tu fizeste-me soletrar a genealogia das palavras. Contigo, recuperei algo grego dentre os destroços do tempo: o sentido de beleza, a beleza omnipenetrante e omnipresente. Hoje, que soluço grego, reconheço a sua grandeza como uma mulher nua (pensar no latim, tão áspero, como uma velha). O próprio verbo há-de ser belo, há-de ser límpido, há-de ser puro. Dele transborda a verdade e só a bebem os galahads. Foste tu, Pai, que me ensinaste a apreciar tudo isto e a retirar daqui um prazer pastorício. Hoje (penso que ficarias feliz de o saber), estou inscrito num curso para aprender de vez o fabrico das palavras: e foste tu, Pai, que me levaste até aqui, com o teu sorriso fumado. Obrigado.

In token of my admiration for his genius,

the following philological series is inscribed to


P.S. (póstumo): a dedicatória, roubada a melville, mente. A série nunca foi redigida. A carta, essa, cada dia aumenta de verdade.

segunda-feira, setembro 17, 2007

Quoth The Raven §4: Caricaturas [i.e., Coisas Caricatas]

"Também há sorteios impessoais, de propósitos indefinidos: um decreta que se lance às águas do Eufrates uma safira de Taprobana; outro, que do alto de uma torre se solte uma ave; outro, que em cada século se retire (ou junte) um grão de areia dos inúmeros que há na praia. As consequências às vezes são terríveis."
Jorge Luis Borges, A Lotaria da Babilónia

PARA O LUIS

:
Artigo 67º
a) Aos professores universitários com direito ao uso de Borla e Capelo é vedado atravessarem ou permanecerem debaixo do Arco da Porta Férrea ao badalar da Meia-Noite no relógio da Torre da Universidade.
b) À infracção corresponde a sanção de unhas a aplicar por qualquer doutor da Praxe ou por veterano mesmo à futrica.

Artigo 75º
d) No uso de Capa e Batina, a capa e a batina no caso do sexo masculino e o casaco no caso do sexo feminino não podem estar separadas por uma distância superior a um braço estendido da pessoa a quem pertence.
e) No uso da capa sobre um ombro, esta tem de estar com a gola para a frente.

Artigo 156º
A protecção dada pelos doutores está sujeita às condições seguintes:
a) PUTO - Protege saltando para o dorso do "ANIMAL" e dizendo: NOS QUOQUE GENS SUMUS ET BENE CAVALGARE SABEMUS, ao mesmo tempo que se dirigem para debaixo de telha. [...]

Artigo 157º
A protecção dada pelos futricas está sujeita às condições seguintes:[...]
b) Ser o protector uma senhora que tenha a cabeça coberta por chapéu ou lenço e traga meias.
c) Ser o protector uma sopeira com avental.
[...] A protecção da alínea c) só será eficaz desde que o "animal" se coloque debaixo de avental.

Artigo 160º
b) Os abrigos das paragens dos autocarros, bem assim como todos os telheiros ou alpendres, não protegem. De igual modo os urinóis abertos não protegem, mas ao infractor só pode ser aplicada a sanção depois de ter urinado, ainda que não tenha sido esse o motivo que aí o levou.

Artigo 161º
Os "animais" que levarem consigo guitarra ou viola e demonstrarem, perante a trupe que sabem tocar, ficam protegidos, salvo nos dias em que só há protecção de sangue. Esta protecção tem o nome de protecção do instrumento.

Artigo 162º
Todos os que estiverem fortemente embriagados ficam auto-protegidos, ainda que só haja protecção de sangue. Esta protecção tem o nome de protecção do "Deus Baco".

Da Tourada Ao Lente
Artigo 223º
Constitui "tourada ao lente" a recepção feita pela Academia ao professor universitário, doutorado ou não, nacional ou estrangeiro, no momento em que este se disponha a dar em Coimbra a sua primeira aula teórica a estudantes universitários.

Artigo 224º
Haverá uma "Comissão de Recepção" constituída por cinco caloiros que tomará assento na Mesa da Presidência.

Artigo 225º
O lente toureado, no decurso da "cerimónia" tem a categoria de "animal", como tal devendo ser tratado.

Artigo 226º
À Comissão de Recepção compete elaborar um tema, em latim macarrónico, para a tese que o "animal" irá defender perante o auditório, bem assim como "brindá-lo" com um farto pasto de erva.

Artigo 227º
a) A cerimónia considerar-se-á extinta quando um fitado apadrinhar o toureado, colocando-lhe a pasta sobre a cabeça.
b) Não tendo havido ainda nenhuma imposição de insígnias ou não estando nenhum candeeiro fitado presente, qualquer veterano na Praxe o poderá apadrinhar, cobrindo-lhe a cabeça com uma ponta da capa, que deverá ter sobre os ombros.
c) Se o toureado não estiver a "dar gozo", o apadrinhamento não poderá fazer-se antes de decorridos 15 minutos. Não obstante, se algum doutor o fizer, este considerar-se-á válido.

Artigo 229º
Depois do apadrinhamento todos os doutores presentes devem felicitar o professor, tendo já em atenção a sua verdadeira categoria social e posição dentro da Universidade.

Artigo 261º
a) Os que usarem Pasta da Praxe devem trazer dentro dela, pelo menos um livro de estudo, uma sebenta ou um caderno de apontamentos ou, na falta destes, um papel com o mínimo de cinco palavras escritas pelo seu portador.

Artigo 268º
No grelo pode escrever-se o dia em que este se foi buscar, o dia da latada de imposição e um ponto de interrogação.

Artigo 275º
Aos candeeiros levando consigo as suas insígnias pessoais é vedado transportarem simultaneamente volumes de grandes dimensões.

Artigo 286º
Não é permitido bater palmas na Sala dos Capelos.

Excertos soltos do Código da Praxe 2007


terça-feira, setembro 11, 2007

Ramalhete §1: Variations on a Renowned Tune

ramalhete, s.m. (1679 cf. AVSerm*) 1 pequeno ramo de flores reunidas como arranjo artístico; buquê, ramilhete 2 conjunto de objectos selectos e de especial valor.
Entrada (adaptada) do Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, V

*A obscura indicação refere-se ao primeiro registo conhecido do termo. As coisas belas, certamente, foram estreadas nas grandes línguas e embaladas nas boas mãos. A palavra, diz a certidão, nasceu virgem no tomo 1 dos
Sermoens do Pe. Antonio Vieira, em Lisboa, 1679. Séculos mais tarde, Eça requesitou-a temporariamente para dar nome a uma casa que fechou no final do romance, devolvendo depois a palavra nos termos do contrato.

No outro dia, saí à rua (era início do mês, fui fazer as compras). Liguei o cigarro e arranjei a bicicleta. Pedalei de chapéu até ao mercado frente à catedral. Apalpei as frutas como a uma mulher e alegrei-me da sua maturidade. Pedi à senhora de lenço uns dois quilos e fiquei contente de estar mascardo de cesário, a amar o campo preso na cidade. Noutras bancas completei-me. Montei os sacos no velocípede e rumei a casa. Foi quando reparei na varanda. Parecia (e porque hoje tudo o que parece é mesmo que não o seja e a realidade é o gigantesco mapa de baudrillard que usurpou o mundo) pobre, sem decoração de maior senão a solitária rosa que herdei do monstro, depois que ele casou bela. Corri à florista que habitava a esquina ao lado, largando a bicicleta e os haveres. Ela tinha coisa de vinte e anos e um namorado. Os cabelos castanhos, volumosos, descansavam-lhe cansados do peso sobre os ombros e o mel dos olhos batia certo com o vermelho dos lábios. Pedi-lhe um par de flores, ao seu gosto e agrado. Ela deu-me uma mancheia de cravos, ainda que eu não tivesse espingardas (era, isso não nego, abril, todavia). Voltei a casa. Subi as escadas, procurei no bolso o espanta-espíritos do meu chaveiro e entrei. Poisei as coisas na cozinha e embalei nos braços as flores. Desarrumei do canto da varanda uns vasos velhos, montei-os nas grades e plantei lá os ramalhetes, alegre de alegrar o púlpito.

Da curiosidade e do cuidado urdi os meus ramalhetes, selecções de objectos queridos, e com afecto os exibi na Varanda, procurando a sua maior beleza. A minha superstição é a cabala e, portanto, resolvi por bem que não devia exceder em três o número de flores, e organizei-as em trilogias (algumas adaptadas ao cinema). Eram colecções de coincidências. Diverti-me naquele hobby, e ponderei ser jardineiro como o princepezinho (para todo o jardim ser valioso). Quando a vizinha inferior me confessou a graça da ideia e do gosto, confirmei o projecto. Disse-me serem as flores das suas coisas favoritas: e daí roubei o mote para o ramalhete 1.

Nietzsche foi sábio em muitas coisas e quando disse que tudo regressava, plagiava sem querer o eclesiastes desiludido (1,9). Dawkins, que sempre se julgou um capitão américa da ciência, chamou memes às coisas recriadas e a creative commons tratou de simplificar o processo. Algum dia descobriremos que nunca fizémos nada em séculos senão reescrever a ilíada, com menos sucesso que pierre menard o dom quixote (Ficções, Borges). Tudo se repete - e deus!, há sempre tanta coisa nova porque o homem é mortal! Benção de morrer! Se eu soubesse das coisas que existiram quando platão vivia, o mundo seria uma monotonia insonsa: graças a deus, nesse tempo eu era um cão, muito amigo de pitágoras depois de diógenes me ter expulso do meu canil e ter usurpado o meu nome.

Quando o homem inventou a metáfora, foi porque uma criança, falando à mãe, se enganou (disse a verdade), e em vez de dizer arte disse mar (por isso é que, no fundo de mim, eu sei que quero ser marinheiro e sei que isso é a mesma coisa que escrever). O mar espelha o céu, mas não é o céu; o mar engole o sol, mas liberta a lua; o mar é límpido, mas é profundo (desembrulhem as alegorias). Descarregando-se continuamente sobre o areal, as suas ondas rebentam sistematicamente na costa (são assaz teimosas): nunca porém, uma foi igual à anterior, mau grado a semelhança falsa. Assim na arte: a mesma matéria renasce em substâncias diferentes, formas estranhas às próprias mães, únicas. Um tesouro de família é sempre uma coisa diferente conforme a geração que o vela.

Em 1959, com música de Richard Rogers e letras de Oscar Hammerstein II, estreou-se na Broadway The Sound Of Music, musical que alcançaria fama mundial com a adaptação cinematográfica por Robert Wise em 1965 para a 20th Century Fox, com Julie Andrews. Em Portugal, ficou conhecido como Música no Coração. O filme gozou de enorme sucesso e monotonamente continua a ser repetido ano-sim, ano-não na estação pública. Filme de embalar infâncias, a idade, porém, torna-o num ícone da pior lamechiche que Hollywood pode oferecer. A uma certa altura, cansamo-nos de ser felizes: julgo ser um movimento natural do espírito. As canções, todavia, escondem-se algures nas memórias e persistem na guerrilha. Uma, particularmente, impôs-se: My Favorite Things (com favorite escrito à americana). Relembro-a com a timidez de me deixar levar [instruções: clicar sobre as imagens para aceder aos vídeos].

Confesso que não sou amigo de musicais. Guardo respeito para com Chicago (2002), de Rob Marschall, e, reconheço, um dos filmes por que mais espero actualmente é Sweeney Todd: The Demon Barber of Fleet Street, musical de Tim Burton com Johnny Depp (a minha tia, pelo contrário, quase que apenas gosta de musicais). Sempre tive tendência a ver no musical uma variação do género cómico, do qual jamais fui apreciador, sendo em número restrito as comédias que aceito no meu panteão cinéfilo. Não é de estranhar, pois, que o meu musical favorito seja precisamente o único anti-musical sério de que tenho conhecimento: Dancer In The Dark, do brilhantíssimo Lars von Trier. Esse filme, que arrebatou a Palma de Ouro em 2000 e chegou a ser descrito por Björk, a actriz principal, como "pornografia emocional", é a mais perfeita descontrução dos clichés dos musicais, estética-, musical- e narrativamente (aqui faço um esforço, como um pequeno rapaz a quem a mãe pede que aguente a sua vontade de ir à casa de banho, para não me desdobrar em copiosos elogios e comentários ao filme). Para a sátira ao género ser ainda mais perfeita, Von Trier tem o cuidado de evocar constantemente, como sombra, o The Sound Of Music: Selma, a protagonista, começa o filme num ensaio como Maria. Já na segunda metade do filme, relembrando-se disso, canta [perdoem as legendas italianas]:

[marquei um dia em que escreveria um post dedicado a amanda, vocalista dos Dresden Dolls. no dia em que tomei a decisão, não coloquei uma cruz no calendário e com isso esqueci a data de entrega do trabalho. o professor perdoou-me para inveja dos meus colegas]. Amanda Palmer compôs um dia My Favorite Things. Contente, ensaiou-a no piano sucessivas vezes, até estar do seu agrado total. Satisfeita, chamou Brian à casa e pediu-lhe a opinião da peça. Sem a querer magoar, Brian não disse. Quando ele saiu, ela caiu-se sobre a cama e ligou a Regina. Confessou-lhe que pensava mesmo já incluir a música no Who Killed Amanda Palmer? e estava confiante que o produtor a ia apoiar. Regina disse-lhe que só na noite seguinte podia passar pelo apartamento dela e combinaram então para as 21 do dia depois. Desligado o telefone, Amanda deixou-se adormecer. Acordou com o sol a martelar as janelas. Despiu-se e meteu-se no duche. A água sobre o rosto despertou-a: quando abriu os olhos, lançou um grito. Entristecida, retirou-se do polibã. Vestiu as meias p&b, e começou a maquilhagem. Desenhou as sobrancelhas e começou a pintar os olhos. Subitamente, interrompeu: as lágrimas rolavam-lhe pela face, esborratando tudo pierrot. Com as mãos cobriu o rosto e deixou o corpo nu. Tinha-se esquecido , no entusiasmo de a descobrir, que a música já existia. Ligou a Regina, cancelando o encontro. Procurou na estante um malboro antigo e acendeu-o para o roer. Da noite anterior ainda tinha sobrado perto do lava-loiças um pouco numa garrafa: completou-a. Durante o dia, recusou-se a tocar piano e entreteve-se a ler dorothy parker. Quando a lua poisou pela janela no piano, arriscou a melodia: achou-a intocada e bonita, comprovando que a beleza é um valor superior à verdade. Decidiu mesmo assim admitir nos concertos que a música não era dela: todos, de resto, a reconheceriam, o próprio Brian é que não devia ter tido a coragem de lho dizer. Maldisse elogiando Julie Andrews e tocou:

04-11.09.07

sábado, setembro 01, 2007

Speakers' Corner §8: O Grito dos Órfãos

ARRRRRGHHHHH!

[enrouquecemos a voz até sangrar da garganta como tísicos e uma maria à beira de morrer de vergonha]

.

Ponto final nisto – e ponto de exclamação no nosso grito!

O nosso grito é um ponto de exclamação a exigir um ponto final sem reticências!

Dois pontos agora!

:

Declaramos doravante oficialmente que estamos nediamente aborrecidos de morte.!
Da morte da inteligência e do bom gosto! (e também pode ser da sensibilidade, antero).

Ontem liguei a televisão e a minha casa começou a cheirar mal, como se tivesse um cadáver debaixo de cada sofá. Levantei a poltrona e descobri o corpo mirrado do tamanho de um gato (mas sem as sete vidas dele) da inteligência, agarrado como um quasimodo post-mortem ao cadáver da esmeralda que se chamava aqui bom gosto. Levei os dois ao hospital onde estudiosamente inquiriram a forma de os curar e a fonte da doença. Enquanto aguardava o diagnóstico (houve até quem me tenha vindo felicitar, vendo na minha ansiedade e nas minhas deambulações um sinal de que esperava por que a minha mulher parisse), o doutor house mandou os seus assistentes (convicto de que eu mentia) a minha casa, procurarem o que pudesse ser útil. E quando regressaram, o médico-chefe entendeu a cabala e saindo vitorioso proclamou como um profeta das coisas que já aconteceram, apontando para os seus pacientes: «Aqueles dois sofrem de televisão!». Um espanto inflamou-me o peito: «Doutor, há cura disso?». O homem cofiou o bigode e a careca e replicou sério «Amigo, é urgente destruir a sua televisão!». Como espetado de um hipnotismo lúcido, rumei a casa, tomei o aparelho entre as minhas mãos e enforquei-o nos seus próprios cabos do tecto da minha sala enquanto ele pedia misericórdia.

Mas, ai!, eu sinto-me muito sozinho! Fui a casa do meu amigo: ele tinha a televisão ligada – e continuava sozinho. Dormi essa noite em casa dele, e quando acordámos fomos ambos à casa de banho vomitar o dia anterior como dois romanos depois de uma refeição. Em vão tínhamos visto televisão: o que ela nos dava, passava em muito do prazo dos anos de a aturarmos assim. Tínhamos ambos vinte e anos e sentíamo-nos bastardos da televisão, cinderelas de uma madrasta má. Era um procedimento terrível vermos televisão: tínhamos de descalçar a cabeça, vestir um babete e comer papas às quais não encontrávamos já graça. A televisão, em suma, era um enorme frigorífico vazio que nos deixava a morrer de fome. Era um microondas (até na forma) que não aquecia coisíssima nenhuma. Queríamos alimento, alimento para o pensamento e para a sensibilidade (a sensibilidade, antero!), e ofereciam-nos em vez disso comida da herballife em comprimidos: serviam-nos kunamis e outra fruta podre. No refeitório comum, olhávamos em volta e havia muitas pessoas felizes, que até repetiam o conduto, mas nós não podíamos senão mastigar com amargura e cuspir secretamente para baixo da mesa ou deslizar os restos para o prato do outro ao lado como um calvin sem vontade de comer. E com isto, fomos emagrecendo, das oportunidades perdidas, das coisas que não aprendemos porque nos diziam para não pensarmos. «Pensar é muito desimportante!», diziam as professoras de cana na mão enquanto nós copiávamos (naquela escola, de resto, só copiávamos, nunca escrevíamos composições) quinhentas vezes o ditame. Graças ao moderno plano tecnológico, que a besta da ministra tinha anunciado aquele ano, a professora mostrava-nos muitas imagens, mas a sequência não fazia um filme, nem sequer experimental. Eram estímulos, dizia ela, uma espécie de terapia por cores. Eu e o meu amigo perguntámos, envergonhados, de que doença era essa que sofríamos, para recebermos aquele tratamento. A polida e artificial professora (um pouco como aqueles alunos fictícios a quem pagaram trinta euros) respondeu, atenta à nossa dúvida: «Sofrem de inteligência, meninos, uma doença hoje em dia cada vez mais rara, mas que ainda assim urge combater para ser finalmente erradicada num futuro feliz!» e pontoou a sua alegria com um sorriso de lés a lés na cara. O meu amigo e eu continuámos a observar o vídeo. Tinha muito barulho e era tudo exagerado, como um palhaço a representar tragédias gregas. Os nossos colegas, em volta, divertiam-se, mais do que aparentemente, sinceramente. Para não destoarmos, eu e o meu amigo começámos a rir também com eles (passava na altura uma cena cómica, um homem que, karaokeando, se abanava, levantando, fingindo ser sexy, a camisa). O que eles não sabiam é que não nos ríamos do vídeo – ríamo-nos deles (ainda que o nosso desejo sincero fosse chorar, o que fizemos quando chegámos ao dormitório em que no dia a seguir acordámos para vomitar na casa de banho, como na ressaca de algum ópio novo).

Descobrimos, lentamente, alguns iguais a nós: não tinham, ao contrário do que hoje se exige, permanecido crianças para sempre (no sentido pior da expressão, que não é o que lhe dá o peter pan e que nós partilhamos) e, tendo crescido, fartavam-se dos absurdos da caixa preta (a expressão parecia-nos uma piada de humor negro, como se a televisão, vestida de preto, estivesse de luto por si mesma, na plenitude do paradoxo disso). Formámos um clube dos poetas matadores, marginal ao recreio de todas as outras crianças, e nesse grupo, como um exército de dumbledore, tentávamos, entre livros, aprender o que a umbridge da televisão não nos ensinava. Tínhamos o nosso próprio fahrenheit 451, a sociedade secreta onde mantínhamos vivas inteligência e bom gosto, duas pequenas meninas que havíamos recolhido no bosque (chamávamos bosque às árvores metamorfoseadas em livros sob a forma de papel). Eram queridas eurídices invertidas, cujo espectro, ao contrário da de orfeu, só subsistiria se, permanentemente, as mantivéssemos sob o olhar aberto e atento (da mesma maneira que se conseguiu, décadas longas, enclausurar oneiros, a que chamam também sandman – mau grado a comparação, porém, o shaper nunca estava tão junto a nós do que quando nós estávamos junto a elas, lendo). Os interesses das outras crianças eram-nos cada vez mais distantes. Nós tínhamos, todavia, pena: porque ansiávamos, como uns judeus à espera do messias, pelo dia em que teríamos um keating que nos mostrasse as imagens que o nosso coração e desejo ansiavam por ver: as imagens refasteladas de sentido e provocação, de arte e pensamento – para a nossa idade.

Foi então que se começou a processar uma estranha metamorfose (possivelmente mais bizarra que a de samsa e o seu kafka) entre as crianças. Constatámos que algumas delas iam adquirindo, como amigos de pinóquio transformados em burros, os traços de velhas senhoras idosas, apoiadas em bengalas e encharcadas de rugas (com o hábito, inclusive, de fazer renda). Assustados, fugimos para a nossa caverna, onde, como os cem homens e cem mulheres do dr. estranhoamor, esperámos o fim dos merkwürdige acontecimentos como o fim do holocausto nuclear (sem, contudo, termos qualquer intuito de nos reproduzirmos). Quando emergimos à superfície, haviam-se criado minotauros. As crianças estavam divididas em dois grupos: as que efectivamente tinham permanecido enquanto tal (que, contudo, tais benjamin butlers, haviam recuado ainda um pouco mais na idade que já tinham), e as que se haviam, em plenitude, transfigurado em venerandos idosos (essencialmente do género feminino). Invariavelmente sobre todos caíra o encantamento de robin-puck e estavam por isso com uma cabeça de burro. As professoras, essas, pareciam bastante contentes e continuavam a projectar as suas imagens aos novos alunos que recebiam todos os anos, até o tratamento ludovico 2.0. (onde o outro inibia a liberdade de escolha, este destituía a vítima de inteligência) atingir o seu fim: a estupidificação total dos que a ele eram submetidos. Lamentámos isso tudo, e resolvemos fugir da escola, cansados daquilo e de vomitar todos os dias a porcaria que nos forçavam a tomar.

Procurámos, então, inserir-nos na vida social – em vão. Invariavelmente, das casas onde entrávamos sacudíamos o pó das nossas sandálias. Um enorme sentimento de solidão veio-nos acompanhar a caminhada. Enquanto, como os cegos de saramago, nos movíamos, vagabundos, de casa em casa, em busca de refúgio temporário, fomos ter, sem premeditação, à minha antiga casa, deixada a cair de podre como uma chuva de um telhado. Arrisquei entrar. Lá dentro, espanto meu!, restava a televisão, ainda enforcada no seu cordão umbilical. Com os meus colegas, retirámos o exemplar e concordámos entre nós dissecá-lo para o estudarmos e assim, quiçá, aprendermos algo sobre ele que nos ajudasse a entendê-lo melhor. Foi preciso recolher os instrumentos para a cirurgia. Um de nós trouxe, finalmente, depois de pesquisas avolumadas, um martelo: o utensílio de precisão necessário. Espetámos o martelo no vidro com toda a energia, como um lars von trier em ocupações. Analisámos as entranhas e chegámos a algumas conclusões: a televisão era uma coisa de pré-adolescentes rapazes a masturbarem-se pela primeira vez depois de lhes ter vindo o período raparigas e de velhas viúvas sentadas em casa anos depois da menopausa e da reforma. Entre os dois, um enorme vazio, como o silêncio da televisão enforcada. Dos restos do vidro da televisão, fizemos bocadinhos de óculos que utilizámos para doravante seguir as nossas pesquisas.

Sem dinheiro para comprar nada, muito menos revistas, fomos forçados, para as nossas investigações, a servirmo-nos dos jornais que os lojistas põe nas montras enquanto a loja está de obras. Procurámos aí a programação dos canais – e chorámos todos muito no fim, como se tivéssemos lido a antígona. A coisa, independentemente da estação, abria-se (eventualmente antes servia um prato ligeiro de notícias) com um talkshow que era interrompido, ao almoço, por uma hora de notícias para depois desta pausa continuar de tarde até ao lanche, mas com outro apresentador (suspeitamos – e julgamos ser uma teoria credível – que o intervalo que são as notícias serve somente para mudar os cenários do talkshow, visto que eles são sempre diferentes de tarde do que eram de manhã). Concluído este primeiro programa, segue-se outro, chamado novela (a que, no quarto canal, dão o pomposo e feio nome de ficção portuguesa). Para fabricar a novela, usam os seus autores a receita que deixou garrett enquanto viajava (referia-se o almeida aos românticos, mas serve aos guionistas também). Num exercício barato de platonismo, perante as diferentes novelas de imediato descobrimos o arquétipo e apreendemos a unicidade fundamental delas que nos permite referi-las no singular. A longa novela, contudo, encontra-se dividida entre duas partes fundamentais, como o verso pela cesura, sem que por isso deixe de ser o mesmo verso. Até à hora do jantar, a novela dirige-se às camadas baixas: as crianças e os jovens, ensinando-lhes coisas práticas da vida, relativas à época do cio; aos rapazes, por exemplo, como fornicar com segurança, às raparigas, os chamarizes mais atractivos para o acasalamento. Têm os actores o cuidado (ou a incapacidade de fazer melhor) de reduzir o vocabulário usado a aproximadamente quinhentas palavras, facilitando assim a compreensão da importante mensagem. Depois do telejornal das oito, a novela evolui, aumentando a fasquia da idade (mas mantendo rastejante a da inteligência). O conteúdo, esse, porque não existe, mantém-se igual, borrado de uma lamechiche que, na sua mirabolante fantasia, ao ver-se ao espelho, se julga a doença santa do lirismo. Por fim, há um terceiro tipo de programa (e a esta herética trindade se reduz, virtualmente, o panorama todo da televisão): o telejornal – este é um dos programas de entretenimento mais populares entre os portugueses. A decadência de programas como Imagens Reais ou Olha o Vídeo! só se explica pela usurpação do seu papel pelo telejornal, que os substituiu.

Por comodidade (e também para manter o segredo, não tanto pelo medo que nos roubassem a descoberta, mas mais pelo receio de que se apercebessem de que desdenhávamos do seu deus) passámos a referir entre nós, os exilados, a trilogia de programas possíveis com a sigla sueca TNT. «De facto», concordávamos entre nós, «a caixa negra sem avião é a dinamite da inteligência e do bom gosto!». Tínhamos, contudo, desenrolado o seu ácido desoxirribonucleico. Foi então que um de nós descobriu noutro jornal a programação do fim-de-semana, e watsons desbruçámo-nos sobre a pista que holmes nos transportava. A grande diferença era a profusão, da parte da tarde, de filmes americanos. Assentámos em ver alguns, por mera curiosidade. Depois de um mês, “filme de sábado à tarde” era já um insulto nas nossas bocas, uma expressão de desdenho. E de novo se abateu sobre nós um profundo enjoo, como quem anda num barco em que nunca lhe perguntaram se queria embarcar. A televisão convertia-se à ubiquidade e onde ela passava soltava pegadas de estupidez.

Um canal só, ásterix contra romanos (e romanos, na sua ânsia de pragmatismo e sede de realismo, são, de facto, as outras estações), procurava resistir, alternativo e com o público fiel do nosso clã: o segundo. Clandestinos, entrávamos, porque die fetten jahren sind forbei, em casas alheias, só para usar o canal que os seus habitantes não tinham ousado despertar, como se fosse um dragão (e era, das suas felizes estupidezes). O botão, inicialmente, demonstrava sempre alguma relutância em se baixar, e mesmo a televisão estranhava arrancar naqueles preparos ricos de forma e fundo. Ganhávamos alguma felicidade na contemplação daquele canal como na de uma paisagem bonita. Termos, porém, uma loba que, rómulos e remos, nos amamentava, não tirava de nós a saudade imensa de uma mãe que não encontrávamos na televisão. E sentíamo-nos órfãos, porque, ecce homo!, as duas meninas que havíamos acolhido, não eram mais que as nossas duas mães sáficas (as grandes coisas precisam de ser sempre incumbadas duas vezes, por isso tínhamos todos duas mães). Mas elas, na fábrica de chocolate, deixaram-se transferir um dia para dentro do televisor, dando a vitória a charlie – e, desde então, jamais as redescobrimos.

Como os pais de uma madalena, empreendemos a odisseia de telémaco para descobrir o pai ulisses. Testemunhas de jeová, aos pares fomos de porta em porta, pedindo que nos deixassem entrar rapidamente, apenas para inquirir as respectivas televisões. Entrávamos, ligávamos a televisão e, com grande delicadeza, enquanto um de nós revistava, apalpando com luvas, a tevê (procurando descobrir nalguma ranhura as nossas mães), o outro interrogava o aparelho sobre o paradeiro delas, tentando saber da máquina alguma coisa. Invariavelmente este soltava a mesma réplica: «Aqui mora somente a estupidez, a vileza e a infâmia, as três graças da minha casa». As três senhoras revelavam-se então, mascaradas de bruxas, e, contentes de um macbeth, dançavam à volta de um caldeirão de venenos (a própria televisão). Tinham, para elas as três, um só olho: haviam-se desembaraçado, édipas, dos demais, visto que se serviam da vista apontada sempre ao mesmo alvo: o quadrado das imagens. Tinham também um só dente, que cheguei, numa das minhas visitas a uma certa casa, a confundir com uma pipoca. Com uma certa desilusão, separávamo-nos dos donos da casa, agradecendo sempre a gentileza de nos terem deixado entrar.

Doravante chamámo-nos órfãos, porque não encontrámos jamais as nossas mães. E onde quer que ligássemos a tv, aí nos sentíamos longe de casa. Habituados, da nossa vida de vagabundos, a do lixo tirar o pouco aproveitável, tivemos de recorrer à mesma esperteza para quando víamos televisão: sobram-nos meia dúzia de séries depois da meia-noite para nos calarem. Mas a fome, a fome!, continua lá! A fome de arte e de cultura! A televisão portuguesa é uma televisão de eunucos cerebrais. No campus universitário desligámos todas as televisões até apanharem aranhas. Nós somos a geração não atendida, talvez porque não entendida – mas certamente entediada. Um aborrecimento mortal consome-nos quando ligamos a televisão e aqueles que dentre nós já estão a trabalhar no mestrado (para se abilitarem a ser professores, veja-se), redigiram um dicionário em que como sinónimo de televisão aparece estupidez. No outro dia, sub arboribus, com a minha namorada, assentámos em quando casarmos não comprarmos televisão, tendo concluído mutuamente a sua inutilidade (depois disto dei-lhe um beijo). Ninguém nos liga nenhuma: e nós não ligamos a televisão.

[cara de birra, sobrancelhas ferradas e braços cruzados; retirada de cena na pose altiva da razão]

17.08.07

terça-feira, agosto 28, 2007

Bloguística §4: Discurso sobre as Variedades do Regresso

"E se inventássemos o mar de volta, e se inventássemos partir, para regressar."
FMI, José Mário Branco
a/c Partir Para Ficar, Linda Martini

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Regresso I: Ulisses

"Então, com mansa admiração, como se descobrisse uma coisa perdida e há muito esquecida, [...] balbuciou estas palavras: «Argos, cão de Ulisses»."
O Imortal, Jorge Luis Borges

Quando falei com ulisses, ele mesmo não recordava sequer que tinha partido (condição essencial para regressar). Interroguei penélope (estava sentada ao lado dele). Ulisses, atarefado em ser marinheiro, compreendia-se que, no ardor da artimanha, entretido, tivesse nem dado pelo desaparecimento daqueles anos na sua cronologia como rei de ítaca. A mulher, porém (queria acreditar nisso), ela, presa a um palácio de chão de terra batida, sem outro ofício diário que olhar o mar (thalassa, thalassa!) por cima do tear em que não fabricava, como helena, em tróia, o cantar dos homens sobre eles, ela, estava certo, haveria de recordar os dias, até ao pormenor dos segundos. Inicialmente, reagiu com estranheza e, tal como o esposo, pareceu não compreender a pergunta. Insisti, li mesmo algumas passagens de homero, como que para lhes avivar a memória. Ao recordar aquele passo ("E com os olhos cheios de lágrimas fitava o mar nunca vindimado.", canto 5, 84), ulisses esbracejou os olhos e murmurou, dentre os lábios «calipso». Sobre essa memória procurei reconstruir quantas mais ainda lhe sobravam. A mulher começou também a evocar imagens dispersas, como se diz acontecer antes da morte (falou inclusivamente da primeira noite com ulisses, e da sua boca as palavras saíam, quando recordava, leves e louras, e contava, com amor disfarçado de timidez, o dedo de ulisses que lhe desapertou o peplum e a deixou nua). Ulisses lembrou-se que, em tempos (deu para os anos da odisseia a data da viagem de magalhães, confusão compreensível dada a idade, que é a lepra da memória), depois de uma certa guerra (tinha dificuldades em especificar qual, tendo sugerido ser ou lepanto ou trafalgar: curiosamente, ambas batalhas marítimas, notou um amigo meu), tinha, de facto, partido em viagem, tendo, no seu dizer, chegado, assim me assegurava, à índia (veio mais tarde a saber, explicou-me, quando colombo repetiu a viagem que ele já tinha feito, que afinal a índia era só a américa, tendo-se mostrado, quando lho contaram, mais ou menos desiludido). Quando me quis falar de cila e caríbdis, acabou por me contar a estória do adamastor. Da descida aos infernos, tinha uma vaga cintilação de aquiles (mas quando me detalhou a biografia do herói, vi que descrevia alexandre). Recordava contudo distintamente as três mulheres: Circe, Calipso e Nausícaa. Só me falou delas, porém, quando penélope foi levada da sala (aparentemente para lhe darem banho). Circe foi, das três, a mais amada, porque a primeira: amou-a e deu-lhe descendência. Recordava dela muito as flores: não era em vão que foi na ilha dela que hermes foi achar moli. Circe, dizia-me, era uma grande jardineira. Quando acordava, não era raro ulisses encontrá-la (ela que acordava com o sol como o orvalho) de luvas brancas e o cabelo longo e castanho apanhado, de avental, a cuidar de um canteiro de orquídeas. Algumas plantas e ervas, não sabendo a sua espécie, ulisses perguntava-lhe pelo nome delas, e circe respondia-lhe que eram a cura de doenças ainda desconhecidas dos homens de então, doenças que só o desembrulhar dos séculos revelaria: naquele jardim crescia a panaceia de todos os males futuros, mas o futuro esqueceu circe, e irremediavelmente perdeu a sua ilha. No final da entrevista, quando me despedi dele, chamei-o pelo nome, e pareceu-me zangado. A responsável pelo lar explicou-me depois que já há muito que ele não responde senão por fernão mendes pinto.


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Regresso II: Platão

"Assim regressou, finalmente, à terra da sua infância. Estava desolada e vazia e as pessoas que lá se encontravam eram poucas e grosseiras..."
Os Filhos de Húrin, J. R. R. Tolkien

Gulliver não errara a traçar o mapa de balnibarni. Descobri rapidamente a academia, único edifício intacto entre as ruínas, de resto. Entrei e perguntei ao primeiro cientista com que me cruzei pelo gabinete de platão. O homem, porém, renunciara, por comodidade linguística, ao uso das vogais, pelo que se tornava incompreensível. Valeram-me os seus gestos. Depois de passar uns corredores, bati à porta: houve um certo intervalo de tempo até o filósofo me aparecer. Quando me viu, correu como que assustado para a secretária, perguntou-me o nome aflito, o apelido, e registou os dados nervosamente num caderno de pele alfarrabista. Mais descansado, estendeu-me então a mão e pediu-me que lhe chamasse arístocles, o nome da sua juventude. Confessava-me que se chamarmos muitas vezes pela mesma palavra, como fazia o vergílio ferreira quando ensinava o bexiguinha, se ela perde o significado, não é porque o perca de facto (aqui, olhando-me no rosto por meio dos seus óculos grandes e redondos, recordou-me, com um sorriso, a lei de laplace), mas porque a sua essência, como um ovo a que se quebra a casca mole, se esvazia sobre o real, contaminando-o, alterando-o. As pessoas, sussurrava-me platão, desconfiavam dessa sua ideia (talvez, tentava justificar na sua plácida compreensão, porque usam tanto as palavras que têm medo que se possam ferir nelas enquanto ferem os outros), mas, de resto, as pessoas também não acreditavam que se podia colher no sonho uma flor azul como novalis ou, como sandman, arranjar uma garrafa de chateau lafitte 1828 para oferecer a um amigo antes de se descer ao inferno. Platão cria pois que, se todos o tratassem por arístocles, o nome sob o qual descreu da democracia quando viu o mestre morrer, a palavra acabaria por infundir sobre a realidade a juventude perdida. Facto era que platão se mantinha satisfatoriamente jovem, com pouco mais que uma curta barba triangular pelo prazer de a cofiar. Explicou-me o porquê da sua pressa inicial: como nada era mais que reminiscência, convinha apontar sistematicamente tudo com o qual nos cruzávamos, porquanto era mais um pedaço de eternidade que recuperávamos para a nossa alma. Os seus cadernos (cuja colecção só me parece comparável à dos diários de john doe descobertos por freeman e pitt) ocupavam várias estantes. Dispôs-se a ouvir-me e interroguei-o então sobre o regresso à caverna. Sentiu-se visivelmente incomodado, mas acedeu por fim a narrar a coisa. Lembrava-se bem do dia em que saíra. Não sabia como as correntes se tinham desprendido: isso era um facto, ali para ele aceitar. O movimento foi-lhe assaz complicado, pois os músculos tinham atrofiado no cativeiro e sentia-se como um neo espetado de agulhas para recompor os tecidos. Como uma beatrix kiddo num jipe, ousou primeiro mexer lentamente os dedos dos pés e daí foi-se reconstruindo. Viu então os homens e a lareira: mas isso não o ajudou a perceber o que eram as sombras - e durante a sua escalada até à superfície, cria ainda na realidade das pinturas rupestres andantes da caverna. Foi então que uma furiosa luz lhe penetrou os olhos como um saulo a caminho de damasco - e ele viu o sol, como um galileu: e percebeu que a terra girava em torno da estrela e não o contrário, que as sombras eram espelhos das coisas verdadeiras e não o inverso. E viu o cavalo e a rosa (platão, de emoção, começou a chorar). Aqui, o filósofo contou-me a verdade: como um ulisses na ilha de circe, esqueceu ítaca e permaneceu com a amante (a realidade) alguns anos. Afastou-se da caverna e quando não a viu, como um berkely, considerou que ela jamais tinha existido. Uma princesa, um dia, descobrindo-o no rio, recolheu-o e pediu ao pai que o recebessem no palácio e o educassem como seu irmão (a princesa, na realidade, tinha-se tão somente apaixonado por ele). Os homens deram-lhe um novo nome e chamaram-lhe moisés. Aprendeu os preceitos humanos e a beleza da mulher. E um dia, querendo saber o nome de todas as coisas, perguntou à sua irmã o nome do maior sentimento que o coração humano podia experimentar, e ela respondeu-lhe «amor». E doravante platão soube que a amava. Namoraram longamente, com a paciência com que namoram estalactites e estalagmites: ela vinha (ele sabia isso, apesar de ainda não terem naquela altura inventado o cristianismo) nitidamente do céu, e ele literalmente da terra. Por fim, combinaram o casamento e o faraó alegrou-se pelo dia em que a filha lhe pediu que resgatassem o rapaz. Ela fechou-se então no quarto, segundo o costume daquelas terras: e no dia em que acabasse de tecer o seu vestido de noiva, como uma penélope fabricando a teia honestamente, na manhã seguinte realizar-se-ia a boda. Impossibilitado de a ver, arístocles passeava pelos bosques e campos em redor da cidade, consumindo os seus dias na espera com as plantas (nesse tempo, em que o homem ainda fazia parte integrante da natureza, e não lhe era inimigo e estranho, também as nuvens se calavam na espera da linha última do vestido da princesa, e aguardavam as suas lágrimas para como grãos de arroz as deixarem cair no dia do casamento - desse tempo mítico, alas!, sobrou apenas o provérbio). Um dia, porém, passeando a cavalo, platão desembocou na caverna donde emergira toupeira ao mundo: e em revê-la, recordou tudo. Uma súbita urgência acometeu-o, e relembrou-se de quantos continuavam soterrados de mentira. Desceu do animal, e enterrou-se caverna adentro, pelos túneis cujo labirinto já não se recordava. Acabou, eventualmente, por achar os seus antigos irmãos e pela primeira vez viu-os: e percebeu como eram feios, desfigurados pela mentira, separados da luz. Um súbito nojo apoderou-se dele e por momentos hesitou na sua missão, como um jonas: mas não tinha uma baleia em que se enterrar para fugir, e por isso pregou em nínive: a sua voz irrompeu pela caverna como uma coisa estranha, ecoando. Pediu-lhes atenção e delicadamente procurou exprimir-lhes a verdade. Viu nos rostos deles a incompreensão, e então se lembrou que falava na língua dos homens da superfície (os übermenschen), da qual o dialecto dos homens inferiores não é mais que uma corruptela: eles não o compreendiam (também a língua, sublinhava-me platão, tem um arquétipo no hiperurano). Sentou-se, desiludido, entre os prisioneiros, e em vão procurou relembrar a sua linguagem. Pelo esforço dos meses, foi reaprendendo o calão até se sentir preparado para pronunciar o seu sermão aos peixes. Colocou-se então frente às figuras de sombra que corriam pela parede e iniciou. Os homens e mulheres escutaram-no com atenção e, quando por fim ele concluiu, cuspiram-lhe o desprezo sobre o rosto, por se ousar a proclamá-los todos loucos, crentes de fantasmas. Insultaram-no na língua baixa (só essa permite a fealdade das palavras) e as suas ofensas massacravam-no como um orestes a quem são dadas ouvir as vozes das erínias da consciência. Fugiu dali e escalou para a luz, mas era noite quando descobriu a superfície. Correu pela floresta, rasgando nos espinhos e nas árvores o seu robe de josé de mil cores. Em chegando às margens da cidade, viu uma lenta procissão e um poeta que elegiava. Escondido atrás de uma árvore, percebeu que era um enterro: o seu coração assustou-se: que amigo seu, que ali deixara, seria? Foi então que nitidamente, por entre as ladainhas, percebeu o nome da sua noiva e sua irmã. Baixaram o andor e um cadáver desceu à terra: o último lugar onde lhe faltou procurar pelo seu amado, e donde ele, por fim, fugira.

No dia em que ele se submergira de novo, nesse dia a princesa desceu a escadaria circular de trezentos e trinta e três degraus da torre onde compusera com paciência o seu longo vestido de noiva, cujo final da cauda permanecia na sala onde fiara quando o seu pé pousava já a entrada. De imediato, muitos correram a procurar o noivo - mas nenhum o descobriu. A princesa, confiante no amor dele, não se afligiu, e considerou o atraso ser só um atraso, na honestidade da realidade. A noite passou e no dia seguinte, o do casamento, ninguém encontrou moisés. Procuraram pela cidade e pelos arrabaldes, mas em vão. Os dias foram-se volvendo, até formarem uma semana. E então a princesa declarou perante o povo e os pais, imersa em tristeza, que recomeçaria o caminho para o topo da torre: subiria um degrau por dia e, quando atingisse por fim a cela onde, antes dela, dánae concebera, o quarto onde pacientemente urdira o inútil véu que trazia sobre o corpo, chegando aí, se não houvesse novas de moisés, olharia ela mesma pela janela durante um dia e uma noite e, se no fim dessa vigília não tivesse achado rasto dele nem pegadas suas no horizonte, cortaria a cauda do seu vestido com a tesoura com que o fiara e precipitar-se-ia em seguida da torre. A ameaça fez os esforços redobrarem, e rapidamente se mobilizaram grandes forças para saber o paradeiro de platão. Os reis em pessoa dirigiram-se aos grandes reinos vizinhos, mas ninguém sabia do seu genro. Como telémacos, deambulavam sem respostas. E a cada dia, cumprindo a sua promessa, a princesa subia mais um degrau. Quando se completou perto de um ano, e os dias se perfizeram, a princesa da sua torre contemplou as terras em redor e esticou a vista até ao mar, procurando os navios. A sua mãe, aflita, saiu de casa e, depois de não ter achado resposta nos homens, começou a interrogar as coisas: perguntou à rocha donde nascia o rio se sabia de moisés, e ela chorou, murmurando que não; perguntou ao único pássaro capaz de voar até ao topo da torre da princesa, ele que via tão longe, mas também ele não sabia de platão; perguntou à árvore mais antiga do bosque, e na sua sabedoria, a árvores desconhecia. A todos interrogou e de todos ouviu a mesma resposta. Por fim, no caminho para casa, nas últimas horas do dia, um azevinho, vendo-a passar, disse: «Sei o que buscas e sei onde está; porém, recuso-me a revelar-te o seu paradeiro: um dia recusaste um beijo sob o meu tecto, e ofendeste-me». A rainha recordou: num inverno, de facto, sobre um azevinho, recusara, ainda menina (vivia inclusive ainda na sua terra-natal), beijar um pequeno rapaz que insistia em lhe fazer a corte, mas de quem ela pouco ou nada gostava. A rainha, lembrando-se da sua culpa infantil, atirou-se aos pés da erva: «Por favor, a minha filha morrerá se guardares esse segredo contigo. Desonrei-te, é verdade, mas era ainda criança, sabia mal as regras do jogo do mundo. E, de resto, que tem a minha filha a ver com a minha culpa? Adão e eva e o pecado original são fantasias falsas de outros séculos ainda por vir». O azevinho, orgulhoso como um deus, insistiu na sua recusa. Toda a noite, por todos os argumentos, a rainha procurou convencê-lo a, pelo menos, indiciar algo, uma notícia breve que pudesse, contudo, salvar a sua filha. O azevinho persistiu na teimosia. Havia um desejo secreto em todos os corações de que o sol não se levantasse, para que a noiva não caísse. A estrela, porém, não obedece à vontade humana, e, quando os galos o anunciaram, irrompeu. Quando um raio de sol, penetrando pela janela, fez cócegas no rosto da princesa, esta despertou os olhos e a vontade, firmou a resolução e encaminhou-se para a janela. Em plena majestade, iluminada como se fosse um ser diáfano, todos a contemplaram, receptáculo virgem do calor solar. De olhos fixos, ela buscou, com o tacto, a tesoura: achou-a e cortou de uma raiva só a cauda do vestido. Não lhe corria uma lágrima pelos olhos. A mãe, vendo tudo, num acto de desespero, lançou-se escadas acima, aos gritos. Ela sentou-se no parapeito (a multidão, em baixo, observava). Lentamente, pôs as pernas para fora, ficando como que à beira de um rio invisível, molhando-se. Ficou naquilo um certo tempo. Por fim, já inesperadamente, atirou-se súbita, quando a mãe entrava no quarto. O corpo precipitou-se e quebrou-se no chão, desfigurando-a e soltando o sangue. O pai correu para a filha, sem coragem de a tocar. A mãe desceu a torre e abraçou-a nos braços, manchando-se do sangue dela. Marcou-se o enterro para daí a três dias. O pai calou-se, e não falava. A mãe assumiu então as rédeas do poder, desgovernada. Ordenou que cortassem a cabeça a todos os galos, que jamais deviam anunciar as manhãs. A torre, mandou que fosse selada e jamais aberta. Mas a sua vingança mais terrível foi contra o azevinho. A rainha ordenou que cobrissem todos os azevinhos do reino (que eram, como todos sabem, brancos, nesse tempo de outrora) com o sangue da sua filha. Ela mesmo se dirigiu ao fatídico azevinho com que falara na véspera e baptizou-o com estas palavras: «Cheira o sangue daquela que mataste. Doravante, todos os da tua raça carregarão a tua culpa, tal como a minha filha teve de expiar a minha». E assim o azevinho se tornou vermelho, mas dizem os mais incrédulos que, se ainda hoje preserva a cor, não é certamente por ainda se recobrir do sangue da princesa, mas pela vergonha eterna do seu acto. Platão nunca soube nada disto: soube apenas - e isso bastava para a sua desgraça e miséria - que a sua irmã e amante morrera, e a culpa era dele (sussurrava-lhe o coração essa certeza). Esperou que todos se retirassem e se fechassem nas suas casas para se deitar sobre a campa rasa e aí carpir os seus erros. Perdera os dois mundos: o que amava e o que odiava. (Mais tarde, Shakespeare dramatizou este episódio do enterro em Hamlet). Deambulou perdido, como um caim, a leste do paraíso, até encontrar um país. Perguntou o nome: responderam-lhe Hélade. Resolveu fixar-se aí e dissolver as mágoas na filosofia: começou a ensinar mas, tímido como era (e lembrando que tudo, neste mundo, eram sombras, e cabe ao homem descobrir os arquétipos), criou uma personagem para divulgar os seus ensinamentos. Depois de alguma indecisão sobre o nome a dar-lhe, resolveu chamar-lhe sócrates. Criou para ele toda uma vida e, muitos séculos mais tarde, um fernando, inspirado por ele, resolveu imitá-lo e criou alguns heterónimos também. Já cansado, especialmente quando as pessoas se começaram a virar para um discípulo seu (infelizmente bastante menor), resolveu desaparecer. Foi procurando outros países, então, que eventualmente fora dar a balnibarbi. Sim, tinha conhecido gulliver, e lembrava-se dele, ainda que gulliver se tenha esquecido de o mencionar no relato das suas viagens. Na realidade, explicou-me, pediu isso especialmente a lemuel, o qual acedeu e guardou silêncio. Disse-me que não me preocupasse, porque a mim não me exigiria o mesmo voto. Confessou-me que, se se retirara para aquela academia decadente, era porque, pelo menos ali, podia descansar em paz, sem se sentir rejeitado. Pessoalmente, porém, creio que platão procurava expiar no meio daquela imundície física e intelectual os seus pecados, a ofensa inominável que cometera contra o mundo das coisas belas e a destruição irrecuperável do arquétipo do Belo (explicou-me que toda e qualquer referência a esse arquétipo nas suas obras é um acrescento dos seus discípulos: ele bem antes de ser grego sabia que o Belo estava enterrada numa noite que nenhum mapa registava). A falta dessa arquétipo, aliás, era uma problema metafísico que o obcecava (esta era a sua perífrase para traduzir o seu sofrimento contínuo, a dor de um amor destruído). Ao começar a falar destas coisas, platão tornou-se mais distante, no exercício da reminiscência da amada. Achei por bem deixá-lo sozinho e, discretamente, abandonei o gabinete. Imagino que ele jamais se apercebeu disso.


*
Regresso III: D. João de Portugal

"São ilhas afortunadas,
São terras sem ter lugar,
Onde o Rei mora esperando."
Quarto/As Ilhas Afortunadas, Fernando Pessoa

A Leandro R. Ribeiro
Os árabes, contou-me, não eram insensatos: sabiam que matar o rei acarretaria uma violenta reacção diplomática que, num tempo sem nações unidas, acabaria por resvalar para o confronto armado. Os mouros redigiram, nos dias imediatos à batalha, o dicktat de versalhes, acertando o valor das indemnizações que portugal deveria pagar. Entre outras reivindicações, exigiam o algarve e o alentejo, como uma alsácia-lorena. Em lisboa, quando chegou a carta com as condições de nikê, serviram-na de imediato ao cardeal (que sofria de alzheimer). O homem leu o documento e tomou até algumas resoluções, entre elas responder à carta. Devido à diferença de fusos horários, a missiva chegara já de noite e o padre resolveu deitar-se e deixar para o dia depois a eloquente réplica, cansado. No dia a seguir, porém, não redigiu a resposta, porque não se lembrava sequer (a doença, a doença!) de ter existido um ponto de interrogação. Em vão o sultão aguardou a obediência das suas exigências. Tardando em vê-las cumpridas, reteve o rei no cárcere, e este não teve força para alimentar outro desejo que não repetir fernando, infante santo de portugal. Quando o filipe enfim usurpou o trono, vagueando pelos papéis da burocracia de ser rei, encontrou, na secretária do cardeal, a carta árabe. Leu-a com atenção e ocorreu-lhe um susto: sebastião vivia. Nesse dia, sentiu sempre no assento real um desconforto, como uma ervilha debaixo de muitos colchões. Mesmo a mulher rejeitou-o no leito. A noite em branco fê-lo convencer-se da decisão: era necessário eliminar a carta, pelo que tratou do assunto incendiando-a (e assim se perdeu a narração da verdade, explicava-me). Sete anos perdurou o seu cativeiro e descreveu-me deles a monotonia dos dias. Havia porém, ressalvou, uma mulher. Quando ele lhe perguntou o nome, ela respondeu apenas que os demais prisioneiros lhe chamavam seisachtheia (o alijar do fardo), e ele, que não sabia árabe (nem sabia que a palavra era grega), percebeu o seu significado. Ele, contudo, deu-lhe o nome de isabel. Todas as semanas descia aos calabouços do sultão: há alegrias que só uma mulher pode trazer. A sua presença insuflava os homens e as suas palavras gotejavam dos dois lados da boca consolando-os. No vestido, que era branco, trazia os pães escondidos, e distribuía-os, embrulhando as suas mãos nas mãos dos prisioneiros, brincando ao amor. Entre todos, acabou por se afeiçoar a ele, talvez encantada pelo nome de isabel (o nome, quando ele a chamava, prolongava-se no ar, na suspensão da língua contra os dentes, destilando-se). A amizade entre eles, por caminhos irregulares, cresceu em amor. Ela era mais velha que ele, mas isso não a impediu. Criaram um jogo juntos para se amarem: durante os primeiros meses, ela ensinou-lhe todos os passos que se podiam dar dentro da cidade, do mercado árabe ao jardim já fora de muros. Com a minúcia caligráfica, descrevia-lhe, semana sobre semana, o pêlo dos camelos que latif, o vendedor, expunha na sua tenda, os metros exactos da altura do minarete e a tonalidade em que o muezzin chamava para a oração, ou a mulher bonita que todos os dias ia, com o véu cobrindo-lhe a face (e só deixando adivinhar os olhos belos, verdes-esmeralda), à fonte colher a água. Quando, por fim, ele sabia de cor todos os pormenores das coisas invisíveis por cima dele (confessou-me que a tarefa de aprender foi fácil), os dois começaram a passear juntos: ela chegava (sempre às quintas, na véspera do dia sagrado, como que para gastar a última oportunidade de ser profana), e, sentados os dois um ao lado do outro, as grades pelo caminho, sonhavam naquele dia visitar o beco escuro do bairro mais antigo da cidade, ou (porque estava calor) irem à fonte pública beber. Apontavam as coisas como crianças e teciam comentários íntimos e maledicentes sobre os transeuntes. Um dia, por fim, debaixo de uma laranjeira, ele pediu-a em casamento. Ela calou-se, corou, e correu da prisão para fora, deixando-lhe na mão a realidade. Durante aquela semana, ele ponderou o seu erro, até o súbito medo de ela, ofendida, não mais regressar lhe toldar o discernimento. Passava as noites ansioso e não dormia. Por fim, amanheceu quinta-feira - e ela veio. Viu-a primeiro ao longe, dando ordens aos guardas (donde lhe vinha o poder de, mulher, assim se impor?) e estes retiraram-se, deixando-lhe a chave. Ela apareceu então diante dele, e, rodando a fechadura, entrou. Os olhos dela emanavam uma serenidade solene, iluminando o rosto pálido de insónias dele. Levantou-se e procurou articular alguma redenção, mas ela poisou-lhe dois dedos sobre os lábios. Soltou o véu, que caiu muito lentamente no chão como com medo. Desprendeu então o seu vestido, e este genuflectiu-se a seus pés, largando-a nua. Ela descalçou-se do tecido e avançou para ele, enrolando-o no gesto de lhe tirar a camisa. Beijaram-se, libertos de grades que não os seus próprios corpos. A lonjura do dia amaram-se, e quando o dia adormeceu, ela, embalada no corpo dele, narrou-lhe o seu segredo: ela era a rainha, a esposa do sultão. Os olhos dele iluminaram-se de espanto e horror, e beijou-a para exorcizar aquele mal de alma. Percebera enfim a fuga inesperada dela no dia anterior e a impossibilidade de consumarem de outra maneira o seu amor senão assim. Ela voltou a vestir-se, penteou os cabelos e cobriu-os com o hijab. Com uma lágrima, trancou-o na cela. Chamou os guardas, devolveu-lhes a chave, e foi-se embora. Lentamente, o episódio chegou aos ouvidos do sultão, eventualmente deturpado. Nunca se conformara com a atenção que a mulher dispensava aos seus prisioneiros, menos cómodas ainda eram as despesas dela com os cativos (ouvira dizer que ela lhes levava alimento). Era mais grave, porém, aquilo que lhe narravam agora. Na quinta-feira seguinte, ordenou que o acordassem cedo e escondeu-se no corredor que conduzia aos calabouços, aguardando a esposa. Certo tempo depois, ouviu pegadas e sentiu no ritmo dos passos a cadência da mulher: revelou-se. Isabel afogou a surpresa e manteve a compostura. Inquietava-a o que trazia consigo, disfarçado no regaço da abaya. O marido interrogou-a, procurando desmascará-la: «Que carregas contigo, mulher?». Lamya, a de negros lábios (esse era o seu nome), hesitou a respiração. Procurou arguir: «Senhor, acaso censurais o sadaqah, a caridade? Ouvi dizer que não aprovais as minhas práticas. Peço desculpa se vos ofendo com elas». «Para com os inimigos da fé o Profeta não prescreveu a compaixão» (o sultão perguntou-se aqui se não deveria citar nietzsche sobre a piedade como último pecado, mas, visto que o alemão ainda não tinha sido inventado, optou por ficar calado). Insistiu: «Mulher, amas demais: estes homens não merecem os teus sentimentos». «Senhor, não digais que amo demais: todo o amor é sempre por defeito», sorriu ela. «Mulher, não quero mais que alimentes estes miseráveis. Incorrerás na minha ira se ousares desobedecer-me». Lamya mordeu humilde os lábios negros e engoliu o veredicto amargo: «Assim farei, senhor». Considerando acabada a conversa, recomeçou a andar em direcção à prisão. O sultão, porém, indignado de ela continuar o seu caminho indiferente, seguindo com a carga proibida junto ao ventre oculto, exclamou, irado: «Desobedeces-me?». Agarrou-lhe o pulso puxando o braço. De imediato, o arranjo do regaço se desmanchou (a outra mão incapaz de sozinha o manter colada ao corpo), expondo o segredo - e dezenas de jasmins correram sobre o chão. «Vede: são jasmins, meu senhor», pronunciou ela com calma, enquanto, já libertada pelo espanto que acometeu o sultão e lhe desprendeu a mão, recolhia as flores. O homem deixou o corredor, apavorado. Isabel foi nesse dia à prisão, mas não regressou mais lá. Incapaz de dizer adeus, não o disse: e corrigiu o seu erro com uma noite de lágrimas. Isso apaziguou o sultão, que entretanto resolvera descartar a notícia do adultério da mulher como um boato. De resto, uma notícia fê-lo esquecer todo o desconforto que a caridade antiga da mulher lhe poderia inspirar: lamya estava de esperanças. Os médicos do sultão confirmaram e acompanharam a gravidez. A criança nasceu, mas defraudou o pai em não sendo um primogénito: era uma rapariga, e a mãe chamou-lhe salomé. O sultão alegrou-se quando, um ano e meio mais tarde, lamya deu à luz o desejado rapaz: e esqueceu, como um abraão, hagar e ismael. No gineceu, as duas educavam-se. Quando a filha completou sete anos, iniciou-se o tempo da sua escola e a mãe tomou em mãos a tarefa de crescer salomé: e a menina crescia em idade, sabedoria e beleza perante os homens e Alá. Numa arte, porém, era unânime, entre todos, o louvor dela: a dança. Ela movia-se com a curvatura das cobras e a flexibilidade das searas sopradas. Quando completou catorze anos, achou o sultão por bem ser tempo de a expor aos homens: e os pretendentes acorreram. Veio o primeiro príncipe, ela dançou para ele. Veio o segundo, ela dançou para ele. Veio o terceiro, e quando o pai lhe pediu que dançasse, ela olhou o pretendente, e sentiu-se incapaz. Fugiu da sala. O sultão reagiu com espanto e desaprovação, mas insistiu com o pretendente para que dormisse aquela noite no palácio: no outro dia, garantiu-lhe, salomé dançaria para ele. A rapariga entrou no seu quarto e verteu-se sobre o leito. Algum tempo depois, a mãe, a quem contaram tudo o que havia sucedido, entrou no quarto, delicadamente. Sentou-se na beira da cama e afagou os pés da filha. Salomé, que nunca ocultara nada da mãe (e por isso ainda era inocente), perguntou-lhe: «Mãe, o que é o amor?». E lamya, sorrindo-lhe, contou-lhe a estória da sua paixão, como a tinha recapitulado mentalmente vezes infinitas na espera do dia em que a poderia partilhar com a filha. Salomé escutou com atenção, como um conto de embalar para sonhar sem adormecer - e no fim, sabia o que era o amor: é o nome que damos ao desejo de sermos felizes. A mãe retirou-se, como irmã mais que como mãe. No seu íntimo, salomé ponderava quanto lamya partilhara com ela e tomou a resolução de descer aos calabouços, porque o amor é uma coisa dupla, e ela só tinha visto um jano. Quando o palácio descansava, ela desceu à prisão. Quando ele a viu, concordou que enlouquecera e que catorze anos o tinham destruído. O sentimento, porém, vinha enlameado de uma felicidade irresistível por a redescobrir, que suplantava quase o delírio (que em tempos foi delícia, na metafísica dos sete irmãos narrada numa estação de neblinas por gaiman). Sussurrou por entre o desespero e a esperança (os opostos atraem-se): «Isabel?». Salomé sorriu, percebendo o engano do velho homem, e no seu coração compadeceu-se: «Não, sou salomé, a filha de isabel». Ele procurou testar a verdade das palavras, e, satisfeito, aceitou-as, não sem espanto. «Por momentos, pensei rever a tua mãe: tens os traços e os modos dela. Mas, porque tive esperança? A tua mãe abandonou-me há muito». E enquanto murmurava estas palavras, salomé apercebeu-se de que ele acariciava um jasmim, podre, velho e feio: e reconheceu-o. Um ímpeto de desenganar o prisioneiro acometeu-a, mas uma pergunta muralhou as revelações: «E tu? Ama-la ainda, depois do seu grande silêncio?». Ele olhou-a: «O meu amor por ela fugiu tanto de mim quanto eu fugi desta cela». Ela sentou-se junto dele e falou-lhe a verdade, então, lavando-lhe as dúvidas como manchas. No dia em que lamya transportara as flores, nesse dia ela sabia ser o último tempo de um passado. O corpo confirmara-lhe dias antes as esperanças. Muito em breve, descer as longas escadas ia converter-se num exercício de resistência, e não tardaria mesmo a que os médicos recomendassem o descanso. Sabia: era o tempo de partir. Mandou no mercado comprarem uma flor por cada prisioneiro: peter pan, de resto, dera um beijo ainda mais improvável, com um dedal. Ordenou que tudo fosse feito secretamente, porquanto não desejava que o marido soubesse, temendo uma má reacção da parte dele. A flor seria uma perífrase do adeus que ela não seria capaz de pronunciar. Imaginava como os prisioneiros estranhariam, na semana seguinte, a sua não-visita, e na semana a seguir, e na semana depois: até eventualmente ela se relegada para o plano mitológico de uma criatura doce que em tempos todos imaginaram conjuntamente (que é o único meio de o sonho se ter real, segundo a parábola dos mil gatos de sandman). Naquele dia, como de hábito, visitara-o por último. Jogaram mais uma vez o seu jogo de passearem pela cidade, mas ela pediu-lhe que o fizessem de olhos fechados. Conduziu-o até ao mercado e deu-lhe a cheirar uma flor branca, e quando eles acordaram, ele tinha um jasmim aos pés dele, como um novalis e uma flor azul. Tomou-a nas mãos e admirou-a: quando regressou o olhar para isabel, ela já se tinha ido. Quando por fim salomé nasceu, isabel ponderou regressar aos hábitos velhos e rever o amante, mas sentiu que isso levantaria as suspeitas do sultão, que se tinha alegrado com o fim da sua caridade. Sentou-se ao sol, abdicou, mas não foi rainha de si, porque o seu rei esperava-a sob os seus pés. Ele lamentou-se dos seus pensamentos errados ao ouvir o mito, e contristeceu-se da sua fraqueza em crer em penélopes. A rapariga levantou-lhe o queixo e enxaguou-lhe as lágrimas. Ele pediu-lhe um beijo na testa e ela, acedendo, tocou-lhe a fronte, redimindo-o dos seus pecados. Ia amanhecer e ela viu que era a hora de voltar: despediu-se e subiu em lances de duas as escadas. Pousou-se na cama, fechou os olhos e descansou. A mãe veio acordá-la algumas horas depois. Quando por fim se achou completa, apresentou-se no salão, onde se sabia esperada. O pai dirigiu-lhe umas breves palavras, mas ríspidas: o coração dela estava já sereno e elas não a perturbaram. O sultão mandou então entrar o convidado. Veio o príncipe, e quando o pai lhe pediu que dançasse, ela olhou o pretendente, e inventou o flamenco.

Quando ela fechou o corpo, o príncipe ergueu-se do seu assento, percorreu lentamente, mas seguro, os azulejos do chão até ela, e, prostrando-se a seus pés, pediu, humilde: «Casa comigo, mulher». «Chama-me esposa», respondeu ela. O sultão abençoou logo ali o par (não fora sem expectativas que convidara o jovem a ficar alojado no seu palácio: logo no primeiro dia tinha percebido que ele era um excelente partido, e que havia que mobilizar todos os esforços para o cativar). Marcou-se o casamento e salomé foi apresentada aos pais dos seu noivo. O sultão acrescentou à filha como dote uma razoável quantia de ouro, largos hectares de terra e os seus prisioneiros, que oferecia como escravos. Ao casamento, depois da cerimónia, sucedeu um opulento banquete, organizado no palácio do pai do noivo. As servas e os servos, hebes e ganimedes, corriam agitados pelas mesas, distribuindo a bebida, o alimento e o fausto. A meio da refeição, mandou-se entrar uma bailarina, para ir distraindo os convivas. Vendo isso, o noivo falou a seu pai: «Pai, porque mandas uma mulher destas ao nosso jantar quando a tua nora se senta à mesma mesa? Dispensa esta bailarina e pede a salomé que dance para ti». O sultão reflectiu naquelas palavras e num gesto ordenou à dançarina que abandonasse o recinto. Ergueu-se então e batendo palmas lentas captou a atenção de todos: «Salomé, sabemos-te dançarina: dança para nós, por favor». A rapariga levantou-se, corada interiormente. Contornou a mesa e os homens, e foi para o centro da sala, onde parou. Inspirou e permaneceu. Quando o sultão ponderava já, delicadamente, incitá-la à dança, ela começou e moveu-se como as folhas a quem o vento dá remoinho e levanta do chão: aérea, ela parecia caminhar sobre pontes de luz. Tendo dançado, a filha de Lamya agradou ao sultão e aos convidados. Então o rei disse à jovem: «A tua fama é humilde para com a tua arte. Pede-me o que quiseres e eu to darei». E acrescentou, jurando: «Dar-te-ei tudo o que me pedires, nem que seja metade do meu reino». Ela recolheu a vista para o chão e ponderou. Pedindo licença para se retirar, dirigiu-se à outra mesa, onde estava a mãe e perguntou-lhe: «Mãe, que hei-de pedir?». A mulher reflectiu: andava inquieta e perturbada com muitas coisas, mas uma só era necessária. Num murmúrio, interrogou a filha: «Salomé, tu amas-me?». «Senhora, tu sabes tudo: tu bem sabes que eu te amo!». «Então, salva da escravatura aquele que eu amei: porque ele é, em verdade, teu pai». A rapariga desprendeu um grito brevíssimo, que intrigou os presentes, aguçando-lhes a curiosidade. A filha observou os olhos da mãe: e soube que ela não mentia: suplicava. Recompôs-se e dirigiu-se ao sultão: o noivo, orgulhoso, pensava no que ela tomaria. «Senhor, entre os escravos que meu pai, como dote, vos ofereceu, há um, chamado sebastião. Não tenteis compreender os meus motivos: seria como procurar as regras de uma dança. Mas, se quereis ser fiel, como certamente sereis, à vossa palavra, soltai esse homem e deixai-o partir». E assim sebastião, rei de portugal, ganhou a sua liberdade. Apenas salomé, das duas mulheres, o conseguiu ver ainda antes de partir. Pediram-lhe que identificasse o escravo para o libertarem. Quando o viu, mandou dispersar os guardas. Estavam a sós. Ele olhava-a, incompreendendo a sua liberdade. Ela contemplava-o, num esforço insano de registar os traços daquele corpo e rosto. Sorriu ao ver-lhe as mãos, e perceber donde as tinha herdado. Levantou a cara e observou-o de frente. Com a mão esquerda, subtilmente, afastou os cabelos, compridos e desgrenhados, para lhe ver melhor a testa e as têmporas. Sussurrou, quase inaudível, «Pai», e beijou-o violentamente, engasgando os seus lábios nos dele, como querendo compensar naquele êxtase catorze anos perdidos. Largou as suas duas mãos do rosto dele, agarrou-o pelos pulsos, disse adeus - e desapareceu. Sebastião não as tornou a ver jamais. No porto, contou-me, encontrou uma embarcação para portugal. Durante o mediterrâneo, escreveu versos como espantalho da tristeza: "A vida a bordo é uma coisa triste,/Embora a gente se divirta às vezes./Falo com alemães, suecos e ingleses/E a minha mágoa de viver persiste" (sebastião veio mais tarde a emprestar esta estrofe a pessoa. este, querendo-a usar mas sentindo-se incapaz de assinar algo que não era seu, criou para o efeito um heterónimo. o texto teve um sucesso franco, e o sá-carneiro, a quem ele tinha dedicado o poema, acabou por o incentivar a escrever mais assim. a modos que contra vontade, viu-se portanto forçado a continuar o personagem. a verdade, porém, era que não gostava daquele estilo, que criara apenas para não destoar muito do fragmento sebástico. depois de algumas tentativas falhadas, acabou por declarar que o opiário era poema único de uma primeira fase de álvaro e, anunciada assim a solução de continuidade, avançou com o engenheiro para o futurismo, corrente que sempre lhe era mais cara). Passeava pelo convés ausente, e foi lembrando-o que um passageiro escreveu séculos mais tarde num livro sobre uma baleia branca: "Resguardem-se de alistar nas vossas pescarias atentas qualquer rapaz de rosto magro e olhar profundo, propenso a meditações inoportunas e que se oferece levando na cabeça o Fédon em vez de Bowditch. [...] Estas advertências são também necessárias porque hoje em dia a caça à baleia constitui um asilo para muitos jovens românticos, melancólicos e ausentes, desgostosos com os penosos problemas do mundo..." (35). A sua alma ocupava a sua mente que paralisava o seu corpo com recordações da filha e mãe. O barco acabou, como estava previsto, por desembarcar em lisboa. Ao sair, ensopado de memórias, um homem agarrou-o violentamente pelo braço. Com a outra mão segurou-lhe o queixo, observando-lhe a fuça dos vários lados. Remexeu-lhe os cabelos e declarou triunfante: «É dom sebastião!». Pela primeira vez desde há vinte e um anos, sebastião recordou o seu estatuto real. Tinha-se esquecido de que o país onde desembarcara era, em última análise, seu reino: pouco ou nenhum era contudo o seu desejo imediato de o governar. O silêncio de sebastião à exclamação do homem começava a fazer este último duvidar. O velho do restelo abanou por fim a cabeça, reprovando, e comentou: «Oh, esqueça... não é manhã nem está nevoeiro», e com isto abandonou-o. Deambulando, meditando no estranho episódio, sebastião chegou a uma taberna. Sentou-se sem pedir nada. Reflectiu. Parte de si duvidava que o aceitassem como rei depois de alcácer-quibir. Havia, de resto, que ser reconhecido e fora o velho homem (sebastião não sabia que era camões) ninguém o parecia identificar. Não sabia também como seria recebido: regressar ulisses vinte anos depois a um país era achá-lo diferente. No seu lugar, congeminava como é que, sem atena, se iria transformar num mendigo para descobrir os leais do seu reino. Ocupou-se de escutar as conversas humanas. Dois homens, mesmo ao lado dele, discutiam com ardor o que parecia ser uma novidade. Pelas linhas iniciais do diálogo entendeu, facto espantoso!, que portugal estava dominado pelos filipes. A ideia incutiu-lhe uma certa esperança: se se confirmasse essa situação, o seu regresso seria, queria-se convencer disso, bem aceite, garante da restauração da nação (sebastião não sabia que bandarra já tinha profetizado que isso sucederia pela mão de um joão). Continuou a escutar. Pelo que conseguia compreender, certo manuel de sousa, recusando-se a abrigar sobre a sua casa espanhóis, tinha-lhe pegado pelo seu punho fogo. Alguém identificou essa casa como sendo a de dom joão de portugal. O nome despertou memórias a sebastião: lembrava-se bem desse nobre, e trocara amenas palavras com ele. Era um homem valente e sábio: alas, a lança moura ferira-lhe o lado e matara-lhe o todo. Madalena de vilhena (recordava lentamente a genealogia do amigo), diziam os dois lisboetas, era a mulher desse tal manuel: a viúva tinha, portanto, voltado a casar. Lentamente, no seu espírito foi-se delineando um plano. Introduzir-se-ia na família apresentando-se como o defunto joão de portugal. Não planeava demorar muito o seu teatro (garrett ainda não tinha nascido), mas mantê-lo-ia umas aristotélicas vinte e quatro horas que, estava convencido disso, seriam suficientes para ter uma imagem suficientemente razoável de como seria recebido em portugal se se apresentasse amanhã perante as cortes reclamando o trono. Apurou de novo o ouvido, procurando saber a casa para a qual o casal se modera na sequência do incêndio. Decifrando a morada, pôs-se a caminho. Ao chegar à porta, parou: era necessário inventar um passado para os vinte e um anos de ausência de dom joão. Olhou em volta e rapidamente concebeu uma ficção de pergrino (não era também importante detalhar muito a coisa, pois não teria de suportar o disfarce mais que um dia). Pediu então para ser recebido pela senhora e madalena deixou-o entrar. A conversa, como é do conhecimento geral, correu francamente mal. Sebastião não sabia que o casamento já tinha dado frutos e a existência de uma rapariga com pouco menos da idade de salomé perturbou-o profundamente. Já com madalena fora, jorge perguntou-lhe: «Romeiro, romeiro! Quem és tu?». Percebendo que não o reconheciam, sebastião triste murmurou como um ulisses descontextualizado: «Ninguém». Para ser coerente, ainda foi cumprimentar telmo e tentar urdir com ele uma solução para a mentira, mas alea iacta est e a miúda morreu de vergonha. Abandonou a casa e os mortos, e foi desiludido para os portos de círdan onde embarcou. Em avalon achou paz e conversa, entre os outros reis que as nações esperam (notei que sebastião desenvolvera uma amizade especial por mahdi, possivelmente por lhe lembrar alcácer e as duas mulheres). Aborrecido da entrevista, perguntou-me se tinha mais perguntas: desabituara-se ao trato com os mortais. Não o censuro: desde pessoa que não falava com nenhum. Tom hagen, disse-lhe que não havia mais ninguém para o ver, e ele, padrinho, sentiu-se feliz por poder ir enfim ao casamento da filha. Levantou-se do banco de jardim e apoiado na bengala foi-se sentar na mesa debaixo da macieira onde frederico o primeiro o esperava com um xadrez. Ao lado deles, artur praticava whist com ogier, matjaž e wenceslaus 1. Deixei os imortais em eressëa (a que outros chamaram elísio) e regressei pelo caminho que são brandão (o falso, que o verdadeiro ficou em mú, onde corto maltese o encontrou) tomou quando voltou de mag mell. Hoje, mesmo que me pedissem que reescrevesse a rota, desconheço-a e ainda que recordasse, desde bilbo bagins que não partem mais barcos para aman.


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Regresso IV: Nietzsche

"E neste sentido, declaro que o mundo existiu antes da Criação, e estava no seu fim antes de ter um princípio; deste modo, eu estive morto antes de estar vivo..."
Religio Medici, I, 59, Thomas Browne

Therese conduziu-me a uma pequena sala, onde guardava o irmão. «Ele está já mesmo muito afectado, há dias em que não diz uma única palavra. Ainda anteontem, aliás, veio cá herr steiner e ele nem notou a sua presença, para tristeza de rudolf». Quando entrámos no quarto, nietzsche estava a ver kubrick, 2001: odisseia no espaço. A irmã disse-me para me sentar numa cadeira na varanda e foi-lhe desligar a televisão. Trazido por therese, nietzsche aproximou-se na sua cadeira de rodas. «Friedrich, este herr veio de muito longe (se tempo e espaço são a mesma coisa, como ensina einstein) para falar contigo. Tem isso em consideração e conversa com ele». O filósofo permaneceu calado. A irmã começou a desdobrar-se em desculpas, mas eu disse-lhe que não se preocupasse e que me deixasse a só com o irmão. Ela retirou-se e então nietzsche expirou um guten tag. «Não sei qual o sentido de termos uma conversa que já tivemos», acrescentou. «Se não a tivermos agora, porém, significa que nunca a tivemos», repliquei. Nietzsche sorriu: «Bem observado. Não deixaria contudo de ser interessante não termos uma conversa com a justificação de a termos tido - e ela nunca ter porém acontecido». «Vistas as coisas, só aconteceu outrora aquilo que nós fazemos acontecer agora. O passado é então um produto do presente, e as nossas decisões não actuam sobre o que há-de vir, mas sobre o que já foi», comentei, amando o paradoxo. «Isso faz quase parecer a tese do eterno retorno uma prova do livre arbítrio», riu-se o alemão, respondendo com outro oxímoro. «Alguma vez, porém, as coisas tiveram todas de acontecer um primeiro tempo e nesse primeiro mundo fomos livres: e eu escolhi falar contigo», procurei defender-me. Ele retorquiu: «Se não nos lembramos desse começo, não é porque a idade nos contaminou a capacidade da lembrança, mas porque ele nunca existiu». «Mas se tudo é um eterno retorno, então o tempo é circular: e todas as circunferências têm necessariamente um começo para o compasso. Para que o tempo não tivesse começo, tinha de ser uma recta.», insisti. «E é: o arco da circunferência do círculo máximo é uma linha direita». A sua observação desconcertou-me: a conversa, aparentemente racional, que tínhamos mantido até ali fizera-me esquecer os comentários que circulavam sobre a saúde mental do filósofo. Mas aquela observação nova, digna de um aforismo de heraclito (e quanto não o amava frederico!), superava não os limites do bem e do mal, mas da razão. «Nicolau de Cusa, De Docta Ignorantia, 13. Podes confirmar». Permaneci calado, tentando balançar as coisas. «O tempo é um círculo disfarçado de recta, e por isso temos esta falsa impressão de linearidade». Senti que o segundo wittgenstein poderia ter denunciado aqueles jogos de palavras, mas eu não fui capaz de o fazer (talvez por isso não fui nunca wittgenstein). Nietzsche olhou para a paisagem, calmo, mas desiludido. «Julguei-te, erro meu!, diferente: pensei que compreendias. Afinal, não passas da minha irmã. Ainda me lembro do primeiro dia em que lhe anunciei o sonho do eterno retorno. Era setembro (o ano era 1881), tinha passado o verão em sils-maria, onde como um siddharta me atingiu a revelação da roda do tempo. De alguma forma, temia a reacção que a minha irmã pudesse ter à ideia, mas consolou-me a certeza de que eu já lhe tinha anunciado a notícia cem vezes antes e isso não travara o curso do mundo. Resolvi regressar à alemanha sem aviso, para ser ainda maior a surpresa. No dia de partir, escolhi bem a roupa (eu que, doutro modo, pouco cuidava da aparência). Quando já estava perto de casa, pude compreender a minha irmã, na cozinha, a preparar o jantar. Pé ante pé, fui-me aproximando da entrada. Bati à porta. Therese fui à janela da cozinha, para ver quem era, e quando me percebeu a identidade rejubilou. Correu para o hall (tirou o avental no caminho) e escancarou a porta, abraçando-me num ímpeto. Conversámos amenamente, até ser hora de jantar. Na refeição, por fim, achei ser o tempo conveniente de revelar a verdade. Levantei-me e expliquei que tinha algo a anunciar. Minha mãe e minha irmã, atentas, calaram-se. Foi então que eu declarei, solenemente, como um édito, a circularidade das coisas. De alguma forma, as duas mulheres pareceram desiludidas. A minha mãe confessou-me que esperava que eu fosse anunciar o meu casamento (como, se eu apenas conheceria lou salomé no verão do ano seguinte?) e a minha irmã que eu lhes fosse dar algumas prendas da suíça. Acabei eu mesmo por me sentir desiludido: foi então que deixei crescer o bigode». Aqui, o filólogo fez uma pausa.

«Os meus amigos também reagiram mal à ideia, achando-a desconfortável. Eu bem que procurava fundamentar a minha tese para esses espíritos cépticos com argumentos científicos: falei-lhes de poincaré e da simetria-t, mas pareciam indiferentes a essas coisas enquanto discutiam a nova medida de bismark. Senti-me um platão a quem na caverna desprezaram. Mesmo wagner abandonou-me. Resolvi escrever um livro: primeiro, a ingratidão dos meus amigos não devia fazer-me esquecer que esta novidade tinha que ser proclamada ao mundo (por isso dediquei o livro a todos e a ninguém); segundo, entre alguns leitores poderia achar compreensão. Para tornar o livro mais interessante, fabriquei-o como poesia e criei um heterónimo a que chamei zaratustra. Cedo, porém, me apercebi do erro da minha esperança, e quando cheguei à quarta parte de also sprach, não fizeram mais que quarenta cópias dela. Uma súbita dor acometeu-me: eu não tinha falhado na minha missão apenas daquela vez - eu tinha falhado setenta vezes sete e falharia ainda igual número no futuro. Uma terrível angústia da dimensão da minha derrota ocupou-me a alma, e foi por essa altura que alguns me começaram a achar louco. Comecei a escrever muito (na ausência de pessoas com quem falar): não recebia mais que o desprezo dos homens, e mesmo a minha irmã (a quem eu queria tanto bem!) arranjou marido e fugiu de mim para o paraguai, no outro canto do mundo. Desesperado, apontando para mim, gritei por fim do meu refúgio eis o homem, em latim, para que universalmente pudesse ser entendido: mas continuava a ser feito de celofane. Dizem que eu sofri então um colapso, e que a partir daí começou a minha loucura de facto. Mas isso é o mesmo que dizerem que o tolstoi estava louco quando embarcou para astapovo só para não terem de suportar a verdade do que ele escreveu nos seus últimos dias. Talvez seja melhor assim, estar mascarado de louco (eu sempre gostei do teatro e de diónisos). Os homens já se resignaram a não aceitarem a verdade. Até um certo ponto, não os censuro: sonho às vezes mesmo que seria bom ignorar, ser, olhe, como a minha irmã, e talvez sobre essa base fabricar a minha felicidade. Mas cheguei à conclusão de que ser ignorante só é feliz para os sábios: o ignorante jamais se apercebe desse prazer de desconhecer. Aceitei ser o atlas que no mundo suporta a verdade do eterno retorno: a decisão fez-me corcunda. Este peso, das schwerste Gewicht...», deixou-se suspirar. Olhei para nietzsche: não era, de facto, feliz, e parecia nunca ter recuperado do parto da verdade. Estava abatido, melancólico e, julgo, se eu não estivera presente, teria chorado. Creio que quando rafael pintou heraclito estava a pensar em nietzsche e na sua profunda tristeza, mas só munch (que pintou nietzsche) percebeu esse aparte do pintor italiano. Regressar não era nunca fácil: e para ele todo o instante era um regresso a um passado que, porque não acreditava em platão, não conseguia desenterrar pelo exercício da reminiscência. Estranhei no entanto aquele seu desânimo e interroguei-o: «Mas não disse, num cântico de alegria, zaratustra: "Era então isto a vida? Então vamos recomeçar!"?». «Sim. E logo por baixo acrescentou: "Mas semelhante máxima é uma fanfarra"», e quedou-se. Resolvi não insistir mais no assunto: ficámos calados algum tempo. De repente, ele levantou-se e, andando de costas como os caranguejos (era a aplicação em tudo do sonho do eterno retorno), recolheu na sua secretária um caderno, que me passou para as mãos: «Algumas traduções de heraclito que tenho feito», apresentou. Por um momento, reflecti na diferença daqueles dois espíritos e percebi que, de alguma forma, naqueles exercícios de versão, nietzsche devia procurar consolo, como pessoa em caeiro. Para heraclito, o rio nunca era o mesmo: para nietzsche, a tragédia era o rio e todas as coisas serem sempre o mesmo e repetirem-se sem originalidade. Ele concebera o mais fantástico dos regressos: mais que o regresso no tempo, o regresso do tempo. Outros tinha percorrido grandes distâncias para poderem regressar: ele podia estar numa cadeira de rodas e ter um sentimento de regresso muito maior do que o desses aventureiros, porquanto regressava ali a vez mil. Nietzsche aligeirou a conversa: «Quais são os seus interesses?». Respondi-lhe que gostava muito da literatura e do cinema. «Cinema.», exclamou (mau grado o ponto final). Contou-me que o seu filme favorito era o dia da marmota com o bill murray e calou-se outra vez. Foi de cadeira de rodas até ao televisor e retomou o visionamento do filme (tendo sabido que eu gostava de cinema, calculo que deva ter considerado que não me ofenderia por cortar a conversa para ver kubrick: de facto, não me ofendeu).

Era já a sequência final: deixei-me ficar. Naquele dia, porém, a cena revestiu-se de um novo significado e como que julguei nela decifrar uma alegoria: de alguma forma pareceu-me que nietzsche, na sua cadeira de rodas, não era mais do que david, estendido no seu leito, estendendo a sua mão, cansado dos anos e sozinho, para o monólito negro, com a diferença subtil que nietzsche sabia que tocar o ia, enfim, moldar de novo em embrião. Anos depois, revendo estes acontecimentos, considerei que, de facto, devia ser isso que nietzsche me devia estar a tentar comunicar e que ele voluntariamente e propositadamente interrompeu a nossa conversa, só para a continuar na linguagem dos filmes. Pareceu-me incorrecto dizer mais algo (mesmo uma despedida) depois daquela nossa comunicação secreta. Saí do quarto e agradeci a elisabeth a oportunidade. Nietzsche viria a morrer um ano depois, em 1900.


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Regresso V

"E, caindo em si, disse: 'Quantos jornaleiros de meu pai têm pão em abundância, e eu aqui a morrer de fome! Levantar-me-ei, irei ter com meu pai e vou dizer-lhe: Pai, pequei contra o Céu e contra ti; já não sou digno de ser chamado teu filho; trata-me como um dos teus jornaleiros.' E, levantando-se, foi ter com o pai."
Lc 15, 17-20

Em tempos, eu despedi-me. Escrevi um texto, arrependi-me do texto, apaguei o texto, alguém leu o texto. Não sei se tive saudades, mas hoje tenho coragem. Vagamente apenas me lembro do que me levou a fugir de casa. Havia um profundo sentimento de erro nas coisas. "You're here because you know something. What you know, you can't explain. But you've felt it your entire life. That there's something wrong with the world. You don't know what it is, but it's there... like a splinter in your mind, driving you mad.": não foi sem causa que me chamaram morfeu uma noite, que em inglês se diz morpheus. Retirei-me, portanto, e poucos sentiram a minha falta e nenhum mais do que eu a ausência de alguém em mim. O curso, todo o dia mais nédio, espojava-se pelo meu tempo e rebolava-o da sua lama. Alas!, a minha escrita é claustrofóbica e quando se viu no mesmo elevador com a universidade saiu logo no andar a seguir sem escadas. O verão, de alguma forma, arrefeceu o ressentimento. Ousei regressar. Antes de transpor a soleira, sentei-me nela. Pareceu-me necessário engendrar um pedido de desculpas. Não procurei causas (aitiai) mas exemplos (archai) para a minha atitude. Deixaram-me entrar. Não garanti a ninguém ficar, com medo do futuro, mas prometi ajudar enquanto permanecesse ali, como forma de pagamento. Não sei o que nostradamus me tem a dizer: sei que por ora este é o meu lugar.
26-28.08.2007