quarta-feira, julho 18, 2007

Em Busca da Beleza Perdida §3: Primeiro ou Beowulf: Pontos

A primeira vez que me apresentaram a Beowulf foi numa convenção de heróis. Calhou estarmos alojados no mesmo hotel e um dia encontrei-o no lobby, lendo o New Yorker. Perguntei ao rapaz da recepção, empregado de verão para ganhar algum dinheiro fácil, quem era o indivíduo e ele, verificando a identidade no livro de registos, confirmou-me o suspeito. Aproximei-me e, como quem teme interromper (mesmo que saiba - e especialmente se sabe - que está no processo disso), perguntei, apenas pela delicadeza retórica de uma question tag: «Beowulf?». O herói poisou a revista e levantou-se entre um oh de espanto que disfarçava o desconhecimento de mim com a interjeição de um assomo de lembrança. Era um sujeito substancialmente alto, mergulhado num fato polido de ocasião (camisa branca nas consequentes molduras pretas das calças e do casaco), mascarado de concodar com a art nouveau d'ouro e vermelha do hotel. No rosto tinha a cara de quem leva o destino às cavalitas. Magro, tudo nele era longo e estreito: olhos, lábios, nariz, dedos; parecia uma grande cana atlética. Os cabelos tinha-os puxados para trás com ímpeto e gel, castanhos pela altura dos ombros. Sorriu-me ao estender-me a mão, procurando balbuciar fingidamente uma palavra na expectativa de que eu o interrompesse na revelação do meu nome. Assumi a minha identidade e ele convidou-me a sentar no canapé ao lado dele. Ofereceu-me um cigarro que eu rejeitei e acendeu o seu. Quis saber coisas sobre mim, numa simpatia sincera. Perguntei-lhe em que se tinha reformado, e ele respondeu-me que trabalhava agora como ourives (rimo-nos ambos da pun): "From ring-giver to ring-maker and i'm not yet a sauron!". A deixa foi o bastante para dali inquirir o passado dele. Contou-me a vitória sobre Grendel e a mãe, mas omitiu a luta final com o dragão: compreendi que não quisesse falar das sua morte e respeitei-o. Ariadne apareceu então por detrás, inclinando-se sobre a cadeira e sussurando-me ao ouvido a ordem de ir: os trabalhos da manhã iam começar. Uma trança encaracolada dela caiu-me a fazer cócegas no pescoço e eu concordei contudo o que ela dizia só por causa disso. Levantei-me, despedi-me de Beowulf e prometemos rever-nos. Ariadne tinha apanhado o cabelo em forma de flor aberta no topo da cabeça, com algumas madeixas a escorrerem até baixo. Cobrira os olhos de sombra preta egípcia e vinha vestida com uma camisola de lã de cores hippies e uma saia de linho violeta a encaixar numas sandálias. Deu-me um fio para me orientar até à sala e um beijo para me desorientar a alma. Ainda hoje, quando vou a Creta, mesmo se nunca lá fui, durmo no palácio dela. (observação: o congresso de heróis chamava-se Livro Ilustrado de Mitos, organizado por Neil Philip).

Não tive mais notícias de Beowulf até há coisa da páscoa passada ter tropeçado, em plena descoberta de Borges, no ensaio As Kenningar. Foi o mote para eu ir aprenler Beowulf. Arranjei o livro no instituto inglês, na premiada tradução de Seamus Heaney, numa edição da Norton Critical. Aos meus amigos, quando inquiriam o que estava a ler, respondia-lhes que era a Ilíada dos ingleses. Beowulf trata-se de um longo poema heróico-elegíaco, com data algures entre o século VIII e o X e 3183 versos, escrito em inglês arcaico, também chamado de anglo-saxão. Ao contrário do português arcaico, que é razoavelmente compreensível para o falante moderno (é possível estudá-lo no início do secundário), o inglês arcaico é ininteligível para a rainha de inglaterra. Por isso mesmo os ingleses são obrigados a ler o seu épico nacional em traduções, o que porém não nos deve espantar num país em que se conduz pela esquerda.

Lembro-me da minha surpresa quando abri a Odisseia e não rimava - e senti-me defraudado por um homero que tinha concebido à imagem de camões. Nessa altura, as canções de embalar ainda tinham de rimar para eu adormecer. Beowulf, como parece ser teimosia dos grandes épicos (Milton dizia mesmo, no prefácio do seu, que a rima era uma "invention of a barbarous age, to set off wretched matter and lame meeter"), também não faz estrofes (como Borges bem identifica no seu referido ensaio, a estrofe é uma criação que resulta directamente da rima), mas, em contrapartida, alitera. O verso é composto por duas partes, chamadas hemistíquios: cada uma destas pode, por sua vez, ser dividida em outras duas. Ficamos assim com quatro unidades métricas, em que a primeira obrigatoriamente alitera com a terceira, podendo a segunda juntar-se à dança. Foi assim que eu aprendi a adormecer, onde antes tinha cantigas, ao som de trava-línguas. Traduzir mantendo este padrão é, como facilmente se entende, uma tarefa titânica, mas Heaney carrega atlas sobre si um prémio nobel da literatura. Nem sempre conseguindo necessariamente manter a rígida regra, o poeta, na sua tradução, garante que pelo menos duas palavras aliteram, contudo. O seguinte verso obedece à ordem básica da lírica germânica: "[1] by his powerful [2] thanes. [3] A party [4] remained" (v. 400). Por meio dos números procurámos indicar as já referidas quatro partes em que se decompõe todo o verso anglo-saxão. A negrito mostramos o fonema que alitera: /p/. Esta era a "rima" básica (entre o [1] e o [3]) que se exigia ao bardo inglês, chamado de scop. Adicionalmente, como dissémos, o [2] podia juntar-se ao obrigatório namoro do [1] e do [3]. Este ménage à trois desbrochava em versos como: "[1]So every [2] elder and [3] experienced [4] councilman" (v. 415). Heaney, porém, na sua tradução, chega a conseguir orquestrar as quatro partes da empresa em coros como: "[1]but shields must [2] stay here and [3] spears be [4] stacked" (v. 397). Nesta exótica substituição nórdica do artifício da rima há algo de infantilmente cativante para quem brincou sempre no pátio defronte da casa greco-romana. E para o poeta dessa educação, esta é a revolta querida e necessária, o exercício dos caminhos obscuros, o desafio insano: virá talvez o dia em que escrevamos todos como se profetizássemos lengalengas.

Os poetas anglo-saxões, longe de Homero, compuseram-se a si mesmos e inventaram os recursos que o papá grego que não conheciam não lhes pode por isso ensinar. E entre eles desenvolveram uma linguagem secreta e onde homero escrevia epítetos eles musicaram kenningar. Um kenning é uma perífrase que é uma metáfora. No precipício do fim de Beowulf, escreve Anónimo: "ban-hus", que Heaney traduz por "bone-house" - com isto querem dizer corpo. Eis, irmãos e irmãs, o kenning. Os kenningar (é o plural) são uma nova linguagem por si próprios, necessária de aprender para restaurar a beleza no mundo. Segundo tem sido sugerido, o próprio nome Beowulf é um destes, sendo um composto de bee-wolf, o lobo das abelhas. Se por lobo entendermos inimigo e nos temperarmos com um pouco de imaginação, percebemos que o inimigo das abelhas é o urso. Não deixa de ser significativo que os dois maiores heróis mitológicos ingleses - Beowulf e Artur - tenham nomes que significam o mesmo animal. Os kenningar são palavras cruzadas da criatividade. Logo no verso décimo do poema, temos "whale-road", o caminho da baleia, para dizer "mar". Beowulf não é, contudo, o mais rico dos poemas em kenningar. Outros épicos nórdicos ultrapassam-no, nesse aspecto. Borges, assaz crítico da técnica (soubesse ele os kenningar de ideias que a sua prosa guarda!), afirma: "Reduzir cada metáfora a uma palavra não é resolver incógnitas: é anular completamente o poema". Contudo, onde o poema nas longas e monótonas descrições das batalhas na Iíada? Veja-se sintomaticamente o seguinte passo do Canto XI: "Oileu saltara do carro para se colocar à sua frente./Mas no momento em que arremetia o rei desferiu-lhe/um golpe na testa com a lança afiada; o elmo pesado de bronze/não reteve a lança, que o atravessou assim como ao osso./Os miolos por dentro ficaram todos borrifados;/e assim subjugou quem contra ele arremetia" (vv. 94-98, tradução de Frederico Lourenço). Confrontados com a mesma necessidade de relatar as gestas bélicas dos seus heróis, os nórdicos, pelo menos, aliviaram ao ouvinte o peso da narração com uma cascata de metáforas em que a lança já não é mais a lança, mas sim um "dragão de cadáveres"; a espada abandona de si o nome espada, e torna-se o "lobo das feridas"; e o guerreiro despossessa-se do nome secular com que o baptizaram e reconverte-se na "árvore da espada". Claro que, como bem aponta Borges, corre-se o sério risco de cair num gongorismo balofo. Não sucede isso em Beowulf, como já afirmámos, onde, pelo contrário, apenas lamentamos não existirem estes em maior número.

Como um neo a tentar bater num morpheus, ainda não o atingimos: é tempo de o fazermos. Despi as roupas de poeta e deixei para trás a filologia do poema, para ficar com o herói e saber-lhe a estória e os feitos. Hrothgar, rei dos Jutos (actual Dinamarca, cuja península é precisamente designada de Jutlândia), ordenou a construção de um palácio "meant to be the wonder of the world forever" (v. 70). De todos os cantos do reino e do mundo vieram trabalhadores e juntos como um memorial do convento ergueram Heorot, "the hall of halls" (v. 78). O rei e as suas tropas vieram habitar aqueles paços e nas primeiras noites a festa foi grande como uma tróia que deixou falsamente de estar sitiada. Os homens, porém, desconheciam. E uma noite, um monstro humanóide, da prole de Caim, Grendel de nome, insuportando as harpas e os cantos e as luzes e as festas, atacou o novo palácio, matando trinta homens: "greedy and grim, he grabbed thirty men" (v. 122). O rei ordenou que se montasse vigia na noite seguinte e os homens bravos aprontavam-se para matar a besta. Grendel regressou e destruiu os guerreiros, pois nenhuma arma conseguia perfurar a sua pele. E assim, Heorot foi abandonado e Hrothgar, bom rei de sábias vitórias, viu o seu reino encharcado de terror. Grendel todas as noites ia até Heorot, matando ocasionalmente pelo caminho: "There was panic after dark, people endured/raids in the night, riven by the terror" (vv. 192-3). Doze anos se lamentou o rei e nesse tempo os poetas e os marinheiros fabricaram estórias da desgraça da Jutlândia até estas, pelo labirinto das bocas e dos ouvidos, terem chegado até Beowulf, vassalo de Hygelac, rei dos Godos. Com os seus homens, rumou à Dinamarca. Apresentou-se a Hrothgar, expondo-lhe o seu propósito. O pobre e ancião rei acolheu de braços abertos o aventureiro, e como fora o pai de um filho pródigo, mandou matar o animal mais gordo, e em Heorot celebraram. As bebidas aquecem os homens e um guerreiro dentre os Jutos, Unferth, provocou-o, desdenhando do seu valor. Um homem a isso responde de dois modos: por baixo, iniciando uma luta, ou por cima, cobrindo a aposta. Beowulf prometeu então matar Grendel sem recorrer a armas. Quando a noite se aproximou, o rei abandonou com a sua companhia o palácio, desejando boa sorte ao guerreiro godo. "Then out of the night/came the shadow-stalker, stealthy and swift" (vv.702-3). Com as mãos nuas e o coração vestido de coragem, Beowulf fez-se à besta e numa dança nupcial triunfou-lhe arrancando-lhe o braço. Um grito reverberou pelas paredes de Heorot, pintadas do sangue do neto de Caim. Grendel arrastou-se até ao seu covil, sangrando abundantemente para morrer em paz como um ivan ilitch. Quando o sol saiu, Hrothgar se dançasse dançaria: Heorot foi reocupada e grande foi o festim que contou com a presença da rainha, Wealhtheow. Beowulf foi agraciado com grandes prémios e por todos era coroado de herói. Descansados, adormeceram: mas um não voltou a acordar. Pela calada da noite, um monstro ainda mais terrível matou Aeschere, o conselheiro mais próximo do rei. Hrothgar enlutou-se pela morte do amigo e lamentou a vingança da mãe de Grendel e a desgraça incessante que escorregava sobre o seu reino. Beowulf pediu ao rei que o levasse ao pântano onde habitava o novo monstro: aí o mataria. Unferth, antes que o godo mergulhasse nas águas sujas onde se escondia a mãe da sua primeira vítima, deu-lhe a sua espada, que nunca o havia defraudado em batalha, como prova de reconhecimento pelo seu valor, pedindo desculpa pelos seus comentários anteriores. Beowulf agradeceu e mergulhou fundo. A mãe de Grendel atacou-o, mordendo-lhe o peito: salvou-o a sua cota de malha, forte e impenetrável, trabalho impecável de metalurgia. A espada de Unferth mostrava-se impotente contra o monstro, mas Beowulf notou, no fundo do lado, uma espada do tempo dos gigantes, e, na sua força, erguendo-a, cortou a cabeça da besta. O sangue afluiu à superfície e o rei e a sua corte - que a tudo assistiam de cima - julgando ser o sangue de Beowulf, abandonaram o local, entoando lamentos pelo herói e pelo destino cruel que impendia sobre a nação dos Jutos. Choro precipitado, tão precipitado como a primeira festa em Heorot! Beowulf reapareceu ante eles, transportando consigo a cabeça da mãe de Grendel. Ah!, o reino estava salvo e todos foram mais uma vez celebrar para o hall de Hrothgar, Heorot. Os bardos entoavam sempre novas melodias e as canecas enchiam-se permanentemente. Hrothgar presenteou Beowulf com tudo o que este quisesses e as dádivas generosas do distribuidor de anéis - assim designavam o rei - foram embarcadas e, com elas, os homens, que partiram para a sua terra. Muitos anos depois, Beowulf, por um conjunto de circunstâncias bélicas, tornou-se rei dos Godos, que viveram prosperamente enquanto foram por ele governados. No fim do seu reinado, porém, um novo desafio, o último desafio, aguardou-o. Um qualquer ladrão de tesouros roubou, no sono do dragão (draco dormiens nunquam titillandus, já se diz em Hogwarts), parte do seu tesouro. O verme acordou na sua fúria e começou a desvastar as terras envolventes e a aterrorizar os camponeses. Beowulf ergueu-se do trono sem bengala, apesar dos cinquenta anos de domínio justo sobre o povo. Levando consigo uma companhia de homens, foi ter com o dragão à sua cova (a ambiguidade é propositada: a cova é o antro, mas a cova é o túmulo também). Aí enfrentou o cuspidor de chamas, mas, ai!, o velho rei era no coração o mesmo jovem que matou Grendel e a mãe, mas não mais no corpo! Grandes eram as dificuldades de Beowulf, mas ninguém da sua companhia correu a protegê-lo, excepto o jovem Wiglaf (que havia de suceder a Beowulf), que com o seu escudo protegeu o rei. Com a ajuda deste, como um iolau que socorre hércules frente à hidra, Beowulf triunfou - para morrer. Grande foi a dor que se abateve sobre os seus súbditos porque haviam perdido um grande rei e, sem ele, se encontravam de novo à mercê dos povos vizinhos, que - sabiam - não tardariam a atacá-los. Com o cadáver de Beowulf foi enterrado o tesouro do dragão, num monte de terra tão alto que os marinheiros o conseguiam ver de longe: tão longe quanto a fama de Beowulf.

Apesar de o primeiro confronto com Grendel e, depois, com a sua mãe serem os mais conhecidos da lenda de Beowulf, creio ser no confronto final que o poeta atinge a perfeição da sua expressão. A sequência da morte de Beowulf e do seu funeral, com que se conclui o épico, é pungentemente bela - uma vez ao longo de todos os versos, senti verdadeiramente os personagens, a enorme sensação de tragédia e destino que preenchem o poema, o sofrimento: e no lugar de heróis, vi homens. Enquanto lia o episódio, revivia a morte de Artur, que sempre me impressionou como uma peça grega: quando era pequeno, chorava muito em lendo essa passagem. A morte de Beowulf, com as suas diferenças, conseguiu de mim a mesma catarse. Transcrever aqui os muitos versos do passo seria agora despropositado, mas será provável que, numa releitura de Beowulf, poste aqui excertos.

De todas as personagens, marcaram-me especialmente Wiglaf e Modthryth. Onde Beowulf age para provar o seu valor, Wiglaf avança para testemunhar a sua lealdade. Ele é o protótipo do jovem guerreiro, inflamado de orgulho pelo seu rei, desejoso de o defender e lutar ao seu lado, sem que, na sua adoração cega da figura-modelo, meça, muitas vezes, os riscos de se aventurar no zelo da sua devoção. É, contudo, precisamente essa imoderação, essa entrega total e não peneirada pelo raciocínio frio, brotada livre da alma, que o torna o símbolo do guerreiro puro, inocente e bravo - o guerreiro que provará o santo grall. É uma imagem a que o romance de cavalaria recorrerá com frequência e que herdámos dessa idade média. Modthryth, essa, é uma personagem absolutamente secundária, apenas referida de passagem, mas que conquistou o meu fascínio. Transcrevo as linhas que a ela se referem: "Great Queen Modthryth/perpetrated terrible wrongs./If any retainer ever made bold/to look her in the face, if an eye not her lord's/stared at her directly during daylight,/the outcome was sealed: he was kept bound,/in hand-tightened shackles, racked, tortured/until doom was pronounced - death by sword,/slash of blade, blood-gush, and death-qualms/in an evil display. Even a queen/outstanding in beauty must not overstep like that" (vv.1931-41). Seguem-se ainda alguns versos, em como se diz como a rainha alterou o seu comportamento, depois de casar. O que, porém, me penetrou a imaginação como um aguilhão afiado foi esta imagem de uma rainha de beleza tal que votava à morte quem a olhasse. Modthryth está talhada para ser um símbolo. Num certo sentido, é como uma eurídice invertida: não é o amante (Orfeu) que a condena à morte em olhando para ela, é sim ela que, olhando-a o amante, o sentencia. Ela é a metáfora mais terrível e vampírica da mulher-demónio, da femme fatale, cuja observação da beleza marca a morte do artista. Há algo de ícaro na atitude de quem a olha: um desperezo salutar pela vida em nome de valores maiores. É como uma sémele que soubesse de antemão que ver o amante zeus era matar-se - e insistisse nisso! Olhar Modthryth é a alegoria de não conhecer fronteiras ou limites, da temeridade de saber: é querer as coisas pelo seu valor intrínseco e não as julgar pelo seu preço. Só quem despreza muito a vida a pode ter ao máximo. Modthryth é o brasão, a tatuagem dessa prole de gente.

Outra das riquezas da obra são as sentenças gnómicas em que abunda. Estas são frases que, nalguns aspectos, podemos comparar aos nossos adágios e provérbios: uma colecção do que os velhos pronunciam antes de morrerem, com a súmula da sua experiência terrena - é essa a fonte dos ditos populares. Não pertencendo Beowulf, de modo nenhum, ao género da literatura sapiencial, como o Trabalhos & Dias, de Hesíodo, o seu autor pintou-o com várias linhas que, na sua incisão lacónica, guardam em si verdades extensas. "Often when one man follows his own will/many are hurt" (v. 3077-8) ou "Behaviour that's admired/is the path to power among people everywhere" (v.24-25) inscrevem-se como mandamentos no coração do homem sábio, que reconhece neles a polidez das coisas certas. Beowulf oferece também uma visão das relações sociais desse tempo de antanho, marcadas por um ciclo de violência ininterrupto. Um homem tem de vingar a morte do seu familiar ou esperar que a família do assassino ofereça ouro para compensar a perda, numa quase antecipação do direito moderno, que prevê precisamente esta figura da indemnização em certos casos de homicídio por negligência. É uma moral guerreira sinceramente estranha ao tempo moderno: as guerras, em Beowulf, são incessantes - os anglo-saxões não deram o passo dos gregos, quando estes saltaram da Ilíada para a Odisseia, do forte Aquiles para o artificioso Ulisses, do vigor do braço para a astúcia da mente.

Durante muito tempo, Beowulf foi analisado precisamente como repositório de dados arqueológicos e históricos apenas. A Tolkien e ao seu seminal ensaio Beowulf: The Monsters and the Critics (1936) se deve a reavaliação de Beowulf como um poema de valor literário intrínseco. O ensaio de Tolkien, que acompanhava a minha edição do épico, é essencial para se entender os méritos de Beowulf. Num estilo claro mas literário, que confirma a genialidade de Tolkien, este argumenta como um cícero apaixonadamente a favor de uma reconsideração literária de Beowulf, delineando as principais linhas de força e centrando a sua análise nos monstros e na sua simbologia enquanto forças do mal absoluto. Não me concentrarei aqui tanto nesta abordagem de Tolkien quanto numa consideração que ele tece no decurso da sua reflexão, que me abriu os olhos até doerem. Tolkien defende que há uma diferença substancial de mundividência entre as mintologias grega e nórdica:

"[...] we may with some truth contrast the 'inhumanness' of the Greek gods, however antropomorphic, with the 'humanness' of the Northern, however titanic. In the southern myths there is also a rumour of wars with giants and great powers not Olympian [...]. But this war is differently conceived. It lies in a chaotic past. The ruling gods are not besieged, not in ever-present peril or under future doom. Their offspring on earth may be heroes or fair women; it may also be the other creatures hostile to men. The gods are not the allies of men in their war against these or other monsters. The interest of the gods is in this or that man as part of their individual schemes, not as part of a great strategy that includes all good men, as the infantry of the battle. In Norse, at any rate, the gods are within Time, doomed with their allies to death. Their battle is with monsters and the outer darkness. They gather heroes for the last defence. [...] When Baldr is slain and goes to Hel he cannot escape thence any more than mortal man. This may make the southern gods more godlike - more lofty, dread, and inscrutable. They are timeless and do not fear death."

Esta passagem é multiplamente virtuosa. Primeiro, no que diz mais respeito a Beowulf, explica a importância dos monstros, que os críticos anteriores sempre haviam desgostado, considerando-os infantis e excessivamente imaginativos, na esperança de encontrarem no Norte as tragédias gregas meramente humanas, despovoadas de fantasia. Os monstros são importantes precisamente porque toda a teologia nórdica assenta na luta contínua contra essas forças do mal, num maniqueísmo talvez simplista, mas verdadeiro para aqueles que nele acreditavam. Os monstros como encarnações do mal que todo o ser humano é forçado a enfrentar na vida ganham ressoância universal. Eles são forças luciferianas: há algo de apocalíptico (o sentido do destino, o cheiro da morte) que reina sobre Beowulf. Segundo, esta observação, profundamente perspicaz, revela uma diferença radical, de consequências que não podemos medir aqui inteiramente, entre duas concepções do mundo. Qual delas a verdadeira desconhecemos. Havemos de retornar a esta oposição identificada por Tolkien, com mais fôlego e mais saber. Por último, isto vem mais uma vez relembrar a importância dos estudos comparados de mitologia e a forma como qualquer especialização, neste campo, é profundamente redutora: não se pode estudar mitologia grega ou nórdica ou japonesa - estuda-se tão somente mitologia, na nudez da expressão (e nem mesmo isso se estuda, ama-se).

Beowulf e Tolkien namoraram algum tempo (antes de ele conhecer Lúthien) e bastardamente descendeu desse amor O Senhor dos Anéis. Estou convencido que o épico anglo-saxão é essencial para a compreensão da génese e de alguns elementos da maior mitologia do século XX, o legendarium tolkeniano, apenas superada na dimensão pela segunda grande mitologia desse século passado: os comics americanos. O próprio nome O Senhor dos Anéis compreende-se melhor tendo Beowulf como fundo. Aí, o rei é designado muitas vezes pelo kenning de ring-giver, que é um epíteto de poder. Entende-se agora a ideia estranha do anel, recuperada desses tempos obscuros de uma inglaterra antiga. Não deixa de ser sintomático que Bilbo, no Hobbit, inicie as suas viagens vencendo um grupo de trolls e as termine derrotando um dragão: também Beowulf triunfa sobre Grendel, que vários estudiosos identificam precisamente como um troll, e mata, no fim da vida, o dragão. Heorot e a corte de Hrothgar recordam de sobremaneira, a meu sentir, Meduseld e Théoden, de Rohan. As canções que Tolkien introduz no meio das celebrações (recordo Bilbo em Rivendell) deixam de aparecer aos olhos do leitor como meras efusões líricas do filólogo do cachimbo e transformam-se em ressonâncias dos jantares de Heorot, permeados de estórias de bardos. Por fim, há todo um tom e tempo, intransponível em palavras, que permite ver duas obras gémeas que nasceram da mesma musa, mas separadas pelos séculos de um parto que, como a alcmena, íris atrasou.

Beowulf, de resto, continua vivo na cultura popular. Em Novembro próximo estreará um filme homónimo, de Robert Zemeckis. Não é este o espaço para explanarmos os nossos receios quanto à técnica escolhida para a película. Consola-nos (muito) que o argumento seja de Roger Avary (co-escritor de Pulp Fiction) e Neil Gaiman (Sandman) - especialmente este último, o grande reinventor pop de mitos, desperta-nos curiosidade e confiança suficientes. Entre os actores, destaque para Anthony Hopkins (Hrothgar), John Malkovitch (Unferth) e Angelina Jolie (a mãe de Grendel). Iremos seguindo aqui o desenvolvimento do projecto. Próxima etapa: trailer.

Ilustrações de Lynd Ward (1939): (1) Beowulf; (2) Geats Sail For Deanmark; (3) Wrestling With Grendel; (4) Beowulf Dives Into The Mere; (5) The Dragon; (6) Death Of Beowulf; (7) Mouring At Beowulf's Bier.

P.S. (póstumo): Há um erro na história que escrevi de Beowulf: ele nunca aparece com a cabeça da mãe de Grendel, mas sim com a do próprio Grendel. Coisa estranha: tão estranha que, no meu cérebro, eu a corrigi. Resolvi não alterar o texto, contudo, e perservar a mentira para o leitor incauto que não leia até ao fim, cansado. É que, no fundo, é fascinante o modo como a nossa mente vê o que quer, escreve o que pensa - não lê o que está.

segunda-feira, julho 16, 2007

Em Busca da Beleza Perdida §2: Conveniente

A ideia de possuir a musa é só parcialmente verdadeira, porquanto, não raro, é a musa que nos possui, numa afirmação de feminismo mitológico. A obra de arte só parcialmente é obra do escritor: é muito mais da arte. A noção do texto como uma entidade autónoma, apenas em parte sob a tutela do autor, é, compreende-se, díficil de aceitar por um mundo que varreu de si a crença no sobrenatural (os velhos deuses não eram mais que manifestações dessa inexplicação das coisas). A arte, portanto, é, em primeira instância, um organismo, no sentido etimológico do termo: um corpo cujas partes "executam os diversos processos necessários à vida" (Houaiss); desenvolve-se per se, sem intervenção externa. O papel do falsamente chamado criador podia ser comparado ao dos pais que, não sendo eles que fazem a criança crescer, asseguram que esta dispõe dos meios (alimentos, saúde) para que o possa fazer nas melhores condições. O artista lúcido não teme expôr esta autonomia da arte: assim, Esher compôs a mão que se pinta a si mesma - é outra a mão que pinta, que não a mão do pintor. O símbolo universal desta verdade, a sua manifestação imaginada máxima, é o Livro do Destino - o livro último, que continuamente se escreve e se corrige a si mesmo. É que nem mesmo os deuses são superiores ao destino, para os julgarmos autores dele. Não raro, é precisamente quando o artista, enquanto sujeito e não mais enquanto veículo, se procura impor que a arte enfraquece e cai de cama.

Ontem ou anteontem (num dia qualquer que não foi hoje, e pouco importa qual seja, pois qual seja será sempre irrecuperável), eu queria ter escrito uma introdução breve e formal com o propósito que preside ao Em Busca da Beleza Perdida. Em vez disso, a circe-arte (porquanto o poder da arte é esse mesmo da metamorfose e daí a metáfora ser a sua expressão mais pura e o símbolo a metáfora maior) transformou cila, que era bela e amada, num monstro de seis cabeças, sem um hércules que a matasse. E por isso eu criei um eurípides para matar ésquilo e se desembaraçar da "sua gordura pomposa". Assim achei por bem escrever, armado de uma gravata e um papillon, uma apresentação conveniente para o projecto, entendível ao mortal (de tanto se habitar entre os deuses no olimpo, o homem que ali subiu como belerofonte esquece-se que é mortal, de viver entre os imortais).:

Tenho no andar de baixo, entre livros de todas as áreas, o primeiro volume, na tradução de Pedro Tamen, de Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust. Nunca li o cujo. O nome, porém, conservei-o na estante da memória como uma enciclopédia muito bonita para as visitas verem. Quando surgiu a ideia de criar este blogue, o nome retiniu nos calabouços das lembranças, batendo com uma pedra nos canos da parede da cela - e então eu libertei-o, porque o via já diferente e recuperado. Há coisas belas no passado. Do passado dizia Cícero: "De resto, que te importa que falem de ti os que nascerem depois, se já não falaram os que nasceram antes? Esses homens não foram menos numerosos, e foram certamente melhores". Quando eu era pequeno, acreditava nos dinossauros porque tinham aparecido na televisão em 93 e queria ser um paleontólogo. Hoje, tornei-me um paleontólogo de deuses e heróis e exercito-me nesse meu emprego no curso de clássicas. Quando era criança, eu lia, para me embalar, dicionários de mitologia e o meu herói era o hércules e a xena a princesa guerreira. Os meus amigos imaginários tinham todos séculos de anos. E para mim pronunciar "hermes" era como falar da vizinha de baixo do apartamento. Quando eu fingi que cresci e fui para o secundário, eu queria escolher grego, para ler as autobiografias dos meus amigos, mas as senhoras da secretaria disseram que não, e resmungaram inscrevendo-me em latim, só porque não havia grego (como se isso fosse uma desculpa aceitável). Eventualmente, deixei-me levar por aquela língua áspera, que o tempo se encarregou de suavizar nos romanços. Como um Nietzsche, queria filosofia, mas tornei-me filólogo, pelo amor das palavras que Tolkien me ensinou. E quando entrei no curso, mais e mais descobria, a cada dia, tesouros novos que o tempo escondia e as pessoas esqueciam. E quando comecei a falar na língua das coisas enterradas, percebi que o mundo não percebia. Então cheguei a casa - e chorei muito: não tanto porque não era entendido, mas porque ninguém entendia mais os meus amigos; e ninguém sabia a beleza que perdia. Ai, eu amo em demasia as coisas belas e devia temperar a minha alma desse amor! Não me desconvenci ainda de Dostoievsky: "A beleza salvará o mundo". Montei então uma resolução: cristo ressucitar os lázaros outros deuses. Quantos autores não mais lidos, quantas personagens que há anos que ninguém ama! Porque os deuses antigos não estão mortos, parte de nós (e da nossa civilização) é que morreu por não crer neles. Amemos todos os deuses como um ricardo reis e voltemos a encontrar homero como num conto de borges. Quando assentei nestas coisas, escrevi uma carta a todos os deuses, a convidá-los para virem aqui como a um café e inaugurar o clube dos deuses mortos. Chamei-os de todos os cantos e das épocas passadas e congregei à mesma mesa Loki e Atena, Epona e Ascânio, Artur e Tot, Izanami e Lúcifer, Kali e Quetzalcoatl, D. Sebastião e Zoroastro, vindos da Atlântida, de Mû e de Númenor: as terras mortas dos deuses matados. Gastámos os primeiros tempos a contarmo-nos mutuamente as nossas andanças e comentámos então a situação actual e o que se andava a fazer das nossas figuras, só para nos descubrirmos em livros e filmes e músicas. Foi então que Selene, já cansada de ser, disse precisar de dormir - e isso anunciava o fim da noite. Combinámos um encontro para daqui a mais cem anos, só para matar saudades: e no interlúdio, os deuses encarregaram-me de escrever.

Ilustração: Drawing Hands, de M.C. Escher (1948)

sábado, julho 14, 2007

Em Busca da Beleza Perdida §1: O Álbum da Tia Dulce

Mnemósine foi em tempos amada por Zeus - e o deus amante a protegia e salvaguardava. No dia porém em que Zaratustra desceu da montanha, Zeus morreu como as fadas. E doravante Mnemósine deambulou pedinte num mundo em que a hospitalidade não era mais um valor de glauco e diomedes - e não achou casa. O hedonismo moderno - porque é muito magro, quer na felicidade quer nas vistas - não comporta em si mais que o presente e limpou o passado para o armário de brinquedos onde escondeu toda a desarrumação do quarto na expectativa de que a mamã não o abra. Mas um dia - eram tantas as coisas escondidas! - as portas/o dique rompeu-se, e catapultaram tudo para o chão da sala. E a Memória era como um puzzle de seis mil peças (em que cada peça era um ano) por construir e ninguém sabia mais em que gaveta tinham guardado as instruções de montagem. Os homens perderam o hábito da lembrança no triste ritual del olvido. E as eras dos heróis morreram como leprosos, escondidas e um sino ao pescoço para todos correrem delas. Só mais tarde a humanidade compreendeu que tinha com isso perdido a sua linguagem, que não era feita de letras, mas de nomes, porquanto esses nomes - Heitor, Ulisses, etc. - tinham andado nas bocas antes sequer das letras. E todos se sentiram, subitamente, como uns brutos analfabetos. Carpinteiraram então seu barco e montaram uma expedição de argonautas para irem telémacos em busca dos antepassados. Os anos volveram, os homens não - e, pouco a pouco, todos se esqueceram. Um, porém, desembarcou a nado e de barbas longas correu nu arquimedes pela ilha a proclamar a luz e o engano. A mulher - que entretanto casara com homens mais bonitos - entrou para um convento e fez o marido frei luís, para fugirem ambos da verdade. Escandalizados com as coisas certas e antigas, os habitantes atacaram o odisseu, que levou consigo a maria por quem ninguém se interessava. E no ermo escuro onde se esconderam, maria aprendia fahrenheit 451 as mentiras míticas, que se movem noutra esfera dos seres, em que a beleza é um valor moral superior à verdade. E quando próspero morreu (foi dormir para outro lado), miranda converteu-se em circe e construiu um castelo onde guardou toda a magia de um mundo que não acreditava mais nela. E como um platão inscreveu na fachada do templo guardado por leões: "Não entre aqui quem não souber símbolos". Mas os invasores armaram-se de moli - só eles não sabem que a moli é apenas um outro nome para a planta dos lotófagos. Ai que o conto foi todo mal contado! Pois hermes não se acha na rota para o palácio, está ele sim dentro do palácio: e os afortunados que nele entrarem, desobedecerão às suas ordens e de noite vestidos de velas como psique olharão o seu rosto - e entenderão enfim a hermenêutica do mundo, queimando-se, apenas porque tocaram a luz. E era tão belo o rosto de eros, era tão belo o rosto de todos os deuses! Alas!, até Balder, o mais belo de todos, pereceu. Circe contou-me o caminho para regressar aos infernos e com a sibila de cumas descer lá. Perante Perséfone justifiquei-me, e arranquei do coração dela o consentimento que ela tem. Liderando a procissão dos deuses, que me seguiam, subimos, sob a visão do psicopompo, as escadas que todos eles tinham descido: e eu era a promessa de eles se libertarem. Mas a pandora em mim não resistiu (e a beleza dos deuses era tanta!), que - erro meu, desgraça de todos! - orfeu me voltei e olhei no rosto as mil e uma eurídices que lentamente hades raptou de novo para o ventre da terra que nunca as parirá ao fim de nove meses. Para quando a cesariana desse útero, Hefesto, para que dela saia atena (que é o conhecimento) como de zeus? Enterrastes no solo as minas e os talentos, geração de hipócritas!, e delas não rendestes nada! Mnemósine pedinte precisa do vosso dinheiro. Ontem veio-me essa mulher nua a casa, lavada de chuva. Trouxe-a para dentro, cobria-a a uma manta e dei-lhe um chá quente no bordo da lareira. Olhei-lhe os cabelos longos e castanhos, ondulados com água - e as gotas que lhe corriam pelo corpo eram como as lágrimas de um argo que chorasse os cem olhos ao mesmo tempo, de uma tristeza bruta. Tinha o rosto batido e estava magra dos homens a terem esquecido. As amigas, contou-me, diziam-lhe para esquecer isso: mas ai como?, se ela era a Memória! Conhecia ainda cada um dos seus ex-amantes e não superava essa dor de perda. Nunca mais ninguém lhe escrevera uma carta - mas ela também não tinha uma casa e uma morada para o endereço delas. Perguntei-lhe se queria mais alguma coisa depois de ter bebido a chávena, mas ela abanou a cabeça silenciosa. Era já tarde para ser amanhã (agora era hoje), e fui-lhe buscar uma almofada, deixando-a no longo sofá, dormindo. Deitei-me também eu no quarto, só para acordar horas depois e fazer a barba. Permitia-a dormir até despertar e levei-lhe o pequeno-almoço às pernas. Embrulhada no seu manto, deliciou-se com a torrada e lambeu a manteiga dos dedos. Retardei-me a lavar a louça, como se dalguma forma isso evitasse as coisas acontecerem. Ela já estava de pé, quando enxaguei o prato, encostada ao umbral da porta. Dei-lhe para as mãos um pequeno saco, com provisões. Enquanto falava com ela, neutral (só para esconder uma saudade que deixava cair nalgumas palavras), ela permaneceu cabisbaixa. Abri a porta e ela saiu pela soleira. Então, Mnemósine voltou-se (a Memória é uma deusa que olha para trás, um jano incompleto) e despediu-se - do manto, abrindo os braços témis sem balança ou espada. A sua figura nua desenvolvia-se da pedra da entrada com a natureza de uma flor graciosa, rodopiando as curvas proeminentes e maduras de séculos, na geometria feminina de um manara. E de um golpe, fechou-se sobre mim e beijou-me, com os seus lábios de espuma e algodão. Amámo-nos o dia inteiro - passara muito desde que ela fora amada pela última vez e mil anos de ódio - que é o nome que ela dá ao esquecimento - só se diluem com um amor multiplicado por eles. Quando por fim a noite bateu à nossa porta (e o corvo poe me veio anunciar disso), entendi que para exercer a nova caridade a velha hóspede tinha de sair: uma casa com uma cama é de duas pessoas. «Sine (assim abreviava o seu nome para pecado), eu não te posso guardar em minha casa: sémele não pode ver zeus - e nessa impossibilidade se têm de amar». Ela levantou-se dentre os lençóis, como uma toga imperfeita cobrindo-lhe um peito e uma metade, abrindo a outra à tentação. Nos seus lábios entreabertos e escarlates, incapazes de mentir por serem tão belos, murmurou: «Deixa-me então contar-te uma história antes de partir. Há muitas coisas que aconteceram no esgoto do Tempo sobre as quais tu nem ousas sonhar». Aproximei-me do leito nu e sentei-me, com as pernas e os braços e os troncos e os corpos e os sentidos colados entre nós. E enquanto eu lhe mordia de beijos o pescoço limpo, ela sussurou-me ao ouvido uma estória inteira no rumor baixo com que se sua amor. Quando enfim o corvo se viu substituído pelo galo, e a aurora de dedos róseos chegou, levantei o rosto de espanto e entendi ser agora tarde para soltar de mim Mnemósine. Não, eu não ousava de novo libertá-la em pleno dia e contemplar a sua beleza e resistir-lhe: sucumbiria sempre. Apenas a cobertura da noite podia lutar contra a desvelamento do manto dela. Embalado na narrativa dela, perdera as contas do tempo (que tem uma matemática irregular). Entretanto, ela iniciara já um segundo conto e o meu coração hesitava entre aquilo a que era mais duro e forte resistir: se à sua titânica beleza, se à curiosidade de saber o desfecho do seu encantamento narrativo. Deixei-a ficar para outra noite, em que ela me prometeu concluir o mito. Ela enchia-os de pormenores vívidos, como só Memória ela mesma, a que tudo sabe, porque tudo viu, consegue. Ela pariu o nosso filho pelas pernas, mas nascia as personagens pela boca. E naquela segunda noite, de novo me deixou suspenso na terceira lenda com que me prendia. E, uma vez mais, eu permiti-lhe ficar para o dia seguinte - e assim construí, por noites árabes eternas, a minha Xerazade. Este é o relato das suas estórias.

Ilustração: Mnemosyne, de Ian Marke (2006)

P.S. (póstumo): este era o texto que serviria de abertura ao Em Busca da Beleza Perdida, blogue dos meus amores mitológicos. Hermético, o texto exige um outro, mais explícito: é o post que se segue.

sexta-feira, julho 13, 2007

Primeira Curtada §3: Percepção

Quando jostein gaarder me deu duas chapadas para me acordar da cama da unidade do ser, a primeira teoria que desenvolvi nu e pequeno no laboratório branco do mundo foi descobrir o canto preto debaixo do tapete onde alguém despejou o lixo. Redigi então em microscópio um volume seminal intitulado A Teoria dos Opostos, assaz orgulhoso de ser complexo e total. Hoje percebo como, na realidade, eu ter perdido a minha unidade e terem-me criado alteres no ego não foi mais do que uma consequência da primeira dissolução da unidade do mundo que eu empreendi quando me revelei a existência dos antónimos de todas as coisas vivas e andantes. Aprendicebi-me hoje que, na abundância daqueles que percorrem o L&M, um, contudo, me houvera escapado, pelo menos na sua real forma. Mas, que vos parece? Se um homem tiver cem ovelhas e uma delas se tresmalhar, não deixará as noventa e nove no monte, para ir à procura da tresmalhada? No fundo, em tudo quanto tenho mais pensado do que escrito (naquilo em que melhor se entende a oposição entre a criança e o adulto, porquanto a primeira faz mais do que pensa), vejo agora, com nitidez, que a oposição base tem sido entre as pessoas e a arte - esta última apenas o disfemismo para o meu sonho. Ah!, que eu entendo finalmente a Verdade! Bendita maiêutica da escrita! Só no fim descubrimos o caminho que trilhámos, porquanto quando o percorríamos nem sabíamos ser um caminho. Compreendo por fim a divisão de alma que me assombrou o ano inteiro, ainda não de toda resolvida, porém, agonizante e só insistindo em tardar na morte para poder ditar-me o seu testamento. Este foi o tempo longo em que dentro de mim se digladiaram os dois titãs até ao triunfo do justo. Este é o tempo em que eles inda se combatem - é esta a encruzilhada que eu não quero resolver. No outro dia, fui assaltado de um violento de desejo (como daqueles que nos comem de tomar uma mulher) de largar tudo, de abandonar todos, e um mês resguardar-me da terra no ponto mais perto do céu e na montanha redigir - e no outro dia foi hoje outra vez! E, contudo, hoje ainda eu sentei-me num café e tinha a mesa vazia com o fantasma imaginado - porque era só uma imagem fabricada pelo meu desejo - da companhia que me faltou e com quem eu não partilhei a tosta mista, que, afinal, se mostrou una. Lembro-me de há um mês ter descoberto que não era tímido, mas tão somente sozinho: e fiquei com tanto medo de mim que me escondi num quarto escuro em hikikomori. Apaguei a luz - e nunca mais a voltei a acender. E um dia, os que me queriam bem subiram as persianas - e o sol entrou. De noite, contudo, a luz continua desligada - e a oscilação entre a noite e o dia não é mais do que uma perífrase para a dúvida que me atravessa, sem que eu escolha o lado certo da antinomia, mesmo depois de o ter escolhido. Sei que se escolher a luz ficarei cego (o sol ofusca e cega galileu), mas, porém, de que adianta ver a quem só calcorre os passeios de noite? "Marta, Marta, andas inquieta e perturbada com muitas coisas; mas uma só é necessária. Maria escolheu a melhor parte, que não lhe será tirada." Deus, qual é a melhor parte?!