sábado, julho 14, 2007

Em Busca da Beleza Perdida §1: O Álbum da Tia Dulce

Mnemósine foi em tempos amada por Zeus - e o deus amante a protegia e salvaguardava. No dia porém em que Zaratustra desceu da montanha, Zeus morreu como as fadas. E doravante Mnemósine deambulou pedinte num mundo em que a hospitalidade não era mais um valor de glauco e diomedes - e não achou casa. O hedonismo moderno - porque é muito magro, quer na felicidade quer nas vistas - não comporta em si mais que o presente e limpou o passado para o armário de brinquedos onde escondeu toda a desarrumação do quarto na expectativa de que a mamã não o abra. Mas um dia - eram tantas as coisas escondidas! - as portas/o dique rompeu-se, e catapultaram tudo para o chão da sala. E a Memória era como um puzzle de seis mil peças (em que cada peça era um ano) por construir e ninguém sabia mais em que gaveta tinham guardado as instruções de montagem. Os homens perderam o hábito da lembrança no triste ritual del olvido. E as eras dos heróis morreram como leprosos, escondidas e um sino ao pescoço para todos correrem delas. Só mais tarde a humanidade compreendeu que tinha com isso perdido a sua linguagem, que não era feita de letras, mas de nomes, porquanto esses nomes - Heitor, Ulisses, etc. - tinham andado nas bocas antes sequer das letras. E todos se sentiram, subitamente, como uns brutos analfabetos. Carpinteiraram então seu barco e montaram uma expedição de argonautas para irem telémacos em busca dos antepassados. Os anos volveram, os homens não - e, pouco a pouco, todos se esqueceram. Um, porém, desembarcou a nado e de barbas longas correu nu arquimedes pela ilha a proclamar a luz e o engano. A mulher - que entretanto casara com homens mais bonitos - entrou para um convento e fez o marido frei luís, para fugirem ambos da verdade. Escandalizados com as coisas certas e antigas, os habitantes atacaram o odisseu, que levou consigo a maria por quem ninguém se interessava. E no ermo escuro onde se esconderam, maria aprendia fahrenheit 451 as mentiras míticas, que se movem noutra esfera dos seres, em que a beleza é um valor moral superior à verdade. E quando próspero morreu (foi dormir para outro lado), miranda converteu-se em circe e construiu um castelo onde guardou toda a magia de um mundo que não acreditava mais nela. E como um platão inscreveu na fachada do templo guardado por leões: "Não entre aqui quem não souber símbolos". Mas os invasores armaram-se de moli - só eles não sabem que a moli é apenas um outro nome para a planta dos lotófagos. Ai que o conto foi todo mal contado! Pois hermes não se acha na rota para o palácio, está ele sim dentro do palácio: e os afortunados que nele entrarem, desobedecerão às suas ordens e de noite vestidos de velas como psique olharão o seu rosto - e entenderão enfim a hermenêutica do mundo, queimando-se, apenas porque tocaram a luz. E era tão belo o rosto de eros, era tão belo o rosto de todos os deuses! Alas!, até Balder, o mais belo de todos, pereceu. Circe contou-me o caminho para regressar aos infernos e com a sibila de cumas descer lá. Perante Perséfone justifiquei-me, e arranquei do coração dela o consentimento que ela tem. Liderando a procissão dos deuses, que me seguiam, subimos, sob a visão do psicopompo, as escadas que todos eles tinham descido: e eu era a promessa de eles se libertarem. Mas a pandora em mim não resistiu (e a beleza dos deuses era tanta!), que - erro meu, desgraça de todos! - orfeu me voltei e olhei no rosto as mil e uma eurídices que lentamente hades raptou de novo para o ventre da terra que nunca as parirá ao fim de nove meses. Para quando a cesariana desse útero, Hefesto, para que dela saia atena (que é o conhecimento) como de zeus? Enterrastes no solo as minas e os talentos, geração de hipócritas!, e delas não rendestes nada! Mnemósine pedinte precisa do vosso dinheiro. Ontem veio-me essa mulher nua a casa, lavada de chuva. Trouxe-a para dentro, cobria-a a uma manta e dei-lhe um chá quente no bordo da lareira. Olhei-lhe os cabelos longos e castanhos, ondulados com água - e as gotas que lhe corriam pelo corpo eram como as lágrimas de um argo que chorasse os cem olhos ao mesmo tempo, de uma tristeza bruta. Tinha o rosto batido e estava magra dos homens a terem esquecido. As amigas, contou-me, diziam-lhe para esquecer isso: mas ai como?, se ela era a Memória! Conhecia ainda cada um dos seus ex-amantes e não superava essa dor de perda. Nunca mais ninguém lhe escrevera uma carta - mas ela também não tinha uma casa e uma morada para o endereço delas. Perguntei-lhe se queria mais alguma coisa depois de ter bebido a chávena, mas ela abanou a cabeça silenciosa. Era já tarde para ser amanhã (agora era hoje), e fui-lhe buscar uma almofada, deixando-a no longo sofá, dormindo. Deitei-me também eu no quarto, só para acordar horas depois e fazer a barba. Permitia-a dormir até despertar e levei-lhe o pequeno-almoço às pernas. Embrulhada no seu manto, deliciou-se com a torrada e lambeu a manteiga dos dedos. Retardei-me a lavar a louça, como se dalguma forma isso evitasse as coisas acontecerem. Ela já estava de pé, quando enxaguei o prato, encostada ao umbral da porta. Dei-lhe para as mãos um pequeno saco, com provisões. Enquanto falava com ela, neutral (só para esconder uma saudade que deixava cair nalgumas palavras), ela permaneceu cabisbaixa. Abri a porta e ela saiu pela soleira. Então, Mnemósine voltou-se (a Memória é uma deusa que olha para trás, um jano incompleto) e despediu-se - do manto, abrindo os braços témis sem balança ou espada. A sua figura nua desenvolvia-se da pedra da entrada com a natureza de uma flor graciosa, rodopiando as curvas proeminentes e maduras de séculos, na geometria feminina de um manara. E de um golpe, fechou-se sobre mim e beijou-me, com os seus lábios de espuma e algodão. Amámo-nos o dia inteiro - passara muito desde que ela fora amada pela última vez e mil anos de ódio - que é o nome que ela dá ao esquecimento - só se diluem com um amor multiplicado por eles. Quando por fim a noite bateu à nossa porta (e o corvo poe me veio anunciar disso), entendi que para exercer a nova caridade a velha hóspede tinha de sair: uma casa com uma cama é de duas pessoas. «Sine (assim abreviava o seu nome para pecado), eu não te posso guardar em minha casa: sémele não pode ver zeus - e nessa impossibilidade se têm de amar». Ela levantou-se dentre os lençóis, como uma toga imperfeita cobrindo-lhe um peito e uma metade, abrindo a outra à tentação. Nos seus lábios entreabertos e escarlates, incapazes de mentir por serem tão belos, murmurou: «Deixa-me então contar-te uma história antes de partir. Há muitas coisas que aconteceram no esgoto do Tempo sobre as quais tu nem ousas sonhar». Aproximei-me do leito nu e sentei-me, com as pernas e os braços e os troncos e os corpos e os sentidos colados entre nós. E enquanto eu lhe mordia de beijos o pescoço limpo, ela sussurou-me ao ouvido uma estória inteira no rumor baixo com que se sua amor. Quando enfim o corvo se viu substituído pelo galo, e a aurora de dedos róseos chegou, levantei o rosto de espanto e entendi ser agora tarde para soltar de mim Mnemósine. Não, eu não ousava de novo libertá-la em pleno dia e contemplar a sua beleza e resistir-lhe: sucumbiria sempre. Apenas a cobertura da noite podia lutar contra a desvelamento do manto dela. Embalado na narrativa dela, perdera as contas do tempo (que tem uma matemática irregular). Entretanto, ela iniciara já um segundo conto e o meu coração hesitava entre aquilo a que era mais duro e forte resistir: se à sua titânica beleza, se à curiosidade de saber o desfecho do seu encantamento narrativo. Deixei-a ficar para outra noite, em que ela me prometeu concluir o mito. Ela enchia-os de pormenores vívidos, como só Memória ela mesma, a que tudo sabe, porque tudo viu, consegue. Ela pariu o nosso filho pelas pernas, mas nascia as personagens pela boca. E naquela segunda noite, de novo me deixou suspenso na terceira lenda com que me prendia. E, uma vez mais, eu permiti-lhe ficar para o dia seguinte - e assim construí, por noites árabes eternas, a minha Xerazade. Este é o relato das suas estórias.

Ilustração: Mnemosyne, de Ian Marke (2006)

P.S. (póstumo): este era o texto que serviria de abertura ao Em Busca da Beleza Perdida, blogue dos meus amores mitológicos. Hermético, o texto exige um outro, mais explícito: é o post que se segue.

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