segunda-feira, julho 16, 2007

Em Busca da Beleza Perdida §2: Conveniente

A ideia de possuir a musa é só parcialmente verdadeira, porquanto, não raro, é a musa que nos possui, numa afirmação de feminismo mitológico. A obra de arte só parcialmente é obra do escritor: é muito mais da arte. A noção do texto como uma entidade autónoma, apenas em parte sob a tutela do autor, é, compreende-se, díficil de aceitar por um mundo que varreu de si a crença no sobrenatural (os velhos deuses não eram mais que manifestações dessa inexplicação das coisas). A arte, portanto, é, em primeira instância, um organismo, no sentido etimológico do termo: um corpo cujas partes "executam os diversos processos necessários à vida" (Houaiss); desenvolve-se per se, sem intervenção externa. O papel do falsamente chamado criador podia ser comparado ao dos pais que, não sendo eles que fazem a criança crescer, asseguram que esta dispõe dos meios (alimentos, saúde) para que o possa fazer nas melhores condições. O artista lúcido não teme expôr esta autonomia da arte: assim, Esher compôs a mão que se pinta a si mesma - é outra a mão que pinta, que não a mão do pintor. O símbolo universal desta verdade, a sua manifestação imaginada máxima, é o Livro do Destino - o livro último, que continuamente se escreve e se corrige a si mesmo. É que nem mesmo os deuses são superiores ao destino, para os julgarmos autores dele. Não raro, é precisamente quando o artista, enquanto sujeito e não mais enquanto veículo, se procura impor que a arte enfraquece e cai de cama.

Ontem ou anteontem (num dia qualquer que não foi hoje, e pouco importa qual seja, pois qual seja será sempre irrecuperável), eu queria ter escrito uma introdução breve e formal com o propósito que preside ao Em Busca da Beleza Perdida. Em vez disso, a circe-arte (porquanto o poder da arte é esse mesmo da metamorfose e daí a metáfora ser a sua expressão mais pura e o símbolo a metáfora maior) transformou cila, que era bela e amada, num monstro de seis cabeças, sem um hércules que a matasse. E por isso eu criei um eurípides para matar ésquilo e se desembaraçar da "sua gordura pomposa". Assim achei por bem escrever, armado de uma gravata e um papillon, uma apresentação conveniente para o projecto, entendível ao mortal (de tanto se habitar entre os deuses no olimpo, o homem que ali subiu como belerofonte esquece-se que é mortal, de viver entre os imortais).:

Tenho no andar de baixo, entre livros de todas as áreas, o primeiro volume, na tradução de Pedro Tamen, de Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust. Nunca li o cujo. O nome, porém, conservei-o na estante da memória como uma enciclopédia muito bonita para as visitas verem. Quando surgiu a ideia de criar este blogue, o nome retiniu nos calabouços das lembranças, batendo com uma pedra nos canos da parede da cela - e então eu libertei-o, porque o via já diferente e recuperado. Há coisas belas no passado. Do passado dizia Cícero: "De resto, que te importa que falem de ti os que nascerem depois, se já não falaram os que nasceram antes? Esses homens não foram menos numerosos, e foram certamente melhores". Quando eu era pequeno, acreditava nos dinossauros porque tinham aparecido na televisão em 93 e queria ser um paleontólogo. Hoje, tornei-me um paleontólogo de deuses e heróis e exercito-me nesse meu emprego no curso de clássicas. Quando era criança, eu lia, para me embalar, dicionários de mitologia e o meu herói era o hércules e a xena a princesa guerreira. Os meus amigos imaginários tinham todos séculos de anos. E para mim pronunciar "hermes" era como falar da vizinha de baixo do apartamento. Quando eu fingi que cresci e fui para o secundário, eu queria escolher grego, para ler as autobiografias dos meus amigos, mas as senhoras da secretaria disseram que não, e resmungaram inscrevendo-me em latim, só porque não havia grego (como se isso fosse uma desculpa aceitável). Eventualmente, deixei-me levar por aquela língua áspera, que o tempo se encarregou de suavizar nos romanços. Como um Nietzsche, queria filosofia, mas tornei-me filólogo, pelo amor das palavras que Tolkien me ensinou. E quando entrei no curso, mais e mais descobria, a cada dia, tesouros novos que o tempo escondia e as pessoas esqueciam. E quando comecei a falar na língua das coisas enterradas, percebi que o mundo não percebia. Então cheguei a casa - e chorei muito: não tanto porque não era entendido, mas porque ninguém entendia mais os meus amigos; e ninguém sabia a beleza que perdia. Ai, eu amo em demasia as coisas belas e devia temperar a minha alma desse amor! Não me desconvenci ainda de Dostoievsky: "A beleza salvará o mundo". Montei então uma resolução: cristo ressucitar os lázaros outros deuses. Quantos autores não mais lidos, quantas personagens que há anos que ninguém ama! Porque os deuses antigos não estão mortos, parte de nós (e da nossa civilização) é que morreu por não crer neles. Amemos todos os deuses como um ricardo reis e voltemos a encontrar homero como num conto de borges. Quando assentei nestas coisas, escrevi uma carta a todos os deuses, a convidá-los para virem aqui como a um café e inaugurar o clube dos deuses mortos. Chamei-os de todos os cantos e das épocas passadas e congregei à mesma mesa Loki e Atena, Epona e Ascânio, Artur e Tot, Izanami e Lúcifer, Kali e Quetzalcoatl, D. Sebastião e Zoroastro, vindos da Atlântida, de Mû e de Númenor: as terras mortas dos deuses matados. Gastámos os primeiros tempos a contarmo-nos mutuamente as nossas andanças e comentámos então a situação actual e o que se andava a fazer das nossas figuras, só para nos descubrirmos em livros e filmes e músicas. Foi então que Selene, já cansada de ser, disse precisar de dormir - e isso anunciava o fim da noite. Combinámos um encontro para daqui a mais cem anos, só para matar saudades: e no interlúdio, os deuses encarregaram-me de escrever.

Ilustração: Drawing Hands, de M.C. Escher (1948)

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