terça-feira, setembro 30, 2008

Bristol Memoirs §13: 28, 29 & 30 do Idem - Livro do Sossego

#1
'Well, how are you? retired? how's everything? what have you been doing with yourself?'
'I have been bored!' answered Pechorin with a smile.
Lermontov, A Hero Of Our Time
(tradução inglesa de Vladimir Nabokov & filho)

Resposta genial, sumário todo do romantismo, crónica de nós (a era do vazio é-te muito mais velha, Lipovetsky). A prova máxima da estupidez do nosso sistema de ensino é aprender-se que Os Lusíadas são o épico nacional: é n' Os Maias*, amigos, que está a verdade sobre Portugal (olhar com atenção o subtítulo do livro).

*Os Maias - Episódios da Vida Romântica, de Eça de Queirós,
consûl um pouco por todo o mundo, também em Bristol
e na casa em cima (a dez minutos da minha),
onde escreveu o romance.
/fotos © M./

#2
De sábado para domigo fiquei alojado em casa do casal que o BISC me arranjou, um par de idosos de invulgar simpatia. Há, aparentemente, mais uma rapariga portuguesa em Bristol, para lá de M. Ao que parece, movo-me nas suas peugadas só para não a achar jamais. Das duas vezes que fui ao BISC me avisaram que ela tinha estado lá na noite anterior, a que eu faltara. Não há duas sem três: os Adams (era o nome da família, mas não tinham nenhuma mão sem corpo) tinham-na acolhido algumas noites antes na sua casa. No dia seguinte, domingo, convidaram-me para ir ao service deles. Avisaram-me que não eram católicos e pela descrição tinha percebido que haviam de pertencer a uma qualquer igreja menor. Descobri depois que eram evangélicos. A «missa» causou-me um pouco de confusão. Basicamente, cantava-se cantava-se cantava-se alguém falou cantava-se cantava-se longa reflexão por um dos membros sobre o segundo capítulo dos actos o do pentecostes cantava-se cantava-se cantava-se mais fim. Depois houve meia hora para chit chat, muito agradável: as pessoas da comunidade (coisa pequena, trinta gatos) revelaram-se bons interlocutores. Voltámos a casa dos Adams para um almoço de grupo (juntaram-se-nos vizinhos e membros da igreja), longo mas delicioso. Às três, parti para a minha nova casa. O landlord fez-me percorrer a casa toda, ensinando-me os cantos e os usos. Jantámos todos o meu primeiro jantar vegetariano: se não tivesse a informação, não o adivinhava. Antes, não sabendo a hora certa da refeição (o senhorio tinha dito algo entre as seis e meia e as sete, por ser fim-de-semana), com medo de deixar fugir a comida, interrogando-me se me chamariam ou não (medos parvos, mas que um homem tem), fui-me sentar a ver televisão, no lounge ao lado. A Amy (a filha deles, circa 13 anos) estava a ver o X-Factor, o Ídolos daqui, talvez com mais estilo, mas com a mesma novela e ranho e choro. Despesa do dia de hoje: £0.

#3
Os ingleses não aquecem o leite que bebem. Na pousada, na semana passada, resolvi, para variar, não comer croissants: quis arriscar uma malga de cereais, como em casa de L. Feliz, verti o leite na taça, só para descobrir tarde demais que estava frio como o alaska da palin a fazer tristes figuras nas entrevistas na televisão. Ontem não fui parvo: bebi café com torradas.

#4
As tomadas aqui são diferentes, com três entradas no lugar de duas (porque, como já se disse acima, não há duas sem três). É engraçado reparar que, ao lado de cada tomada, existe um interruptor, que se tem de premir se queremos energia. Não lhe percebo bem o sentido, mas numa nação que bebe leite frio tudo é possível. Chato foi que o meu telemóvel ficou sem bateria e não tinha adaptador à mão nem ao pé (nem a nenhuma outra parte do corpo) para o carregar. Resolvi descer a cidade toda até ao novo centro comercial, o Cabot Circus, inaugurado na semana passada ao lado de outros dois, formando um conjunto impressionante e uniforme. Dizer que só um dos três é um centro comercial normal, fechado: o outro, as Galleries, são ao ar livre, e o Circus é como que uma mistura dos dois formatos, à la Fórum de Aveiro. Faz falta aqui na Inglaterra uma coisa tipo Rádio Popular ou Worten. Lojas dessas são poucas, e os adaptadores estavam esgotados. Acabei por ser direccionado para uma loja no The Mall (o centro comercial fechado) que, pelo nome, era especialista em ferros de engomar. Senti-me um bocado estúpido a entrar ali, mas obedeci. Descobri depois que os homens (aqui a palavra deve ser entedida como referindo-se exclusivamente aos elementos do sexo masculino) salvaram os europeus nas terras de isabel2: os adaptadores ingleses para as fichas das máquinas de barbear, não sendo desenhados para isso, acabam, porém, por servir para qualquer outro aparelho - comprei um e fui-me embora. Cheguei a casa e descobri que havia um deles no meu quarto, afinal. Eu acho que há algo de parábola nisto.
/foto: cabot circus, no dia da inauguração, quinta passada/

#5
"...a language in which the verb "to have" is an intransitive and in which "to be rich" is the same word as "to give"..."
Ursula K. LeGuin, Always Coming Home,
requesitado da biblioteca da faculdade ontem.


#6
Se me perguntarem o que fiz hoje, respondo que nada. Acabei, contudo, por comprar algumas coisas mais (how can money be the root of all evil, if shopping is the cure for all sadness?, perguntava um postal em que tropecei no caminho para casa), como: um dossier, um bloco de folhas a4 pautadas, uma esponja para engraxar os sapatos, duas caixas de deliciosíssimos cookies belgas de manteiga com pepitas de chocolate, e (meu primeiro pecado) o english reference collection da Penguin, completo (são oito livros, com coisas como um dicionário de abreviaturas inglesas, um prontuário ortográfico, um livro de expressões idiomáticas & dicionários, inter alia). Custava isto, no preço original, £62, 92: paguei eu £9.97.

#7
The rain in Spain stays maily in the plain e na Inglaterra é por todo o lado.
Hoje foi o primeiro dia de chuva.
*
- £2.75 (almoço); - £4.17 (engraxador de sapatos + bolachinhas belgas); - £3.98 (dossier + folhas); - £9.97 (the penguin complete english reference collection)
ontem: - £3.99 (adaptador); - £0.99? (lenços); - £3.29 (almoço)

sábado, setembro 27, 2008

Bristol Memoirs §12: 26 & 27 do Idem - There and Back Again

O dia de ontem foi exemplarmente simples; o de hoje, picarescamente complexo. Ontem de manhã fui com o George ao Museu da Cidade. A entrada era gratuita (porque esse é o objectivo de toda a cultura – por isso sou tão liberal no que diz respeito aos downloads ditos ilegais). O museu, dividido em três andares, mesmo junto ao Wills Memorial, a Cabra de Bristol, é curioso pela variedade de colecções que reúne, como um caldeirão de bruxa, com os mais diferentes e extravagantes ingredientes. Junto à modesta, mas muito bem explorada secção do Egipto (museu que se preze tem múmias), uma galeria com animais empalados. No piso de cima, arte vitoriana e porcelana chinesa (as crianças têm em baixo uma secção inteira com dinossauros, incluindo um fémur gigante da Lourinhã). Os ingleses têm coisas absolutamente fascinantes e era já tempo enfim de tropeçar no pudor inglês: na secção egípcia, uma caixa negra, com instruções por cima: “aqui encontram-se as ossadas de um egípcio. Lembra-te de que se trata de um ser humano. Se quiseres vê-las, carrega no botão. Achas que elas deviam ser expostas? Dá a tua opinião.” Na figueira, quando era miúdo, divertia-me a ir ao museu ao lado de casa dos meus avós à secção do paleolítico ver os mortos e brincar aos hamlets com as caveiras – imagino que uma criança inglesa nunca vá ter essas memórias de infância (mesmo se shakespeare que escreveu o príncipe da dinamarca nasceu aqui, mas pronto: dá deus nozes a quem não tem dentes). De tarde fui descobrir um novo parque, mesmo junto à Uni, e passei a tarde deitado na relva com as formigas a ler Os Filhos do Sol à sombra. Boa peça, a lembrar-me, no seu ritmo e diálogos filosóficos, Tarkovsky (isto é tudo gente do mesmo país, afinal). 
Hoje, pelo contrário, a coisa começou toda torta como uma torre de pisa. O senhorio avisou-me de que, afinal, já não tinha quarto. O rapaz que estava lá pretendia continuar e, como o meu contrato podia ser quebrado sem aviso prévio, eles despejavam-me antes sequer de eu me ter mudado para lá (a esta prática chama o povo pôr a carroça à frente dos bois). Subitamente, eis-me de novo na estaca zero (que raio de expressão estúpida como uma galinha). O senhorio, contudo, foi gentil suficiente para me apontar uma casa na mesma rua, mais à frente. Veni, vidi, emi. Amanhã, afinal, sempre me mudo, só que não para onde pensei. Vou ter jantares vegetarianos incluídos na renda e vou ser mais saudável a andar vinte e seis minutos todos os dias até à Uni. Vim passar a noite a casa de um casal que o BISC (o Bristol International Student Centre, aquele dos jantares gratuitos) arranjou para mim: o YHA já estava cheio, bem como os Backpackers, e não tinha onde dormir. Muito british, foram-se deitar às dez e meia (e é meia-noite e eu continuo ao computador). Entretanto, fui à biblioteca devolver Os Filhos do Sol: comigo agora, senhoras e senhores, Um Herói do Nosso Tempo, de Lermontov (a si, leitor, aconselho em língua tuga a boa tradução dos Guerra, esse ainda por condecorar pelo PR casal que muitos serviços tem prestado a favor do enriquecimento cultural das mentes lusitanas). Aqui o escriba vai usar a tradução do Senhor Nabokov, o pai da amada Lolita (e a rapariga italiana ontem era muito bonita e estudava política). 
*
- ₤5 (carregamento telemóvel); - ₤2.73 (detergente em pó); - ₤1.30 (autocarro); - ₤3 (máquina + secagem); - ₤2.30 (autocarro); - ₤3.29 (almoço); - ₤7 (táxi); - ₤2.30 (autocarro); - ₤3.45 (jantar); - ₤7 (táxi)
ontem: -₤4.5 (almoço – a dever ao George); -₤0.4 (chocolate); - ₤2 (jantar)
/gravura: Wills Memorial, com o Museu da Cidade, ao lado/

quinta-feira, setembro 25, 2008

Bristol Memoirs §11: 25 do Idem - Mare Nostrum

O George está ao meu lado a ver uma revista cipriota (revista, esclareça-se, no sentido de espectáculo satírico musical, daquela lisboeta, só que no chipre). Estes dias têm sido uma aprendizagem dupla: tanto vou desbravando a inglaterra como o chipre, via George. Hoje à noite, aqui nos sofás, tivemos companhia internacional (essa a grande beleza de uma pousada): uma alemã, uma espanhola e um italiano, ligeirissimamente mais velhos que nós (tudo isto me faz lembrar tanto o Albergue Espanhol). O George massajou a conversa, com um espectáculo de magia (e fez outra vez o milagre da garrafa de água – e confirmou que irá, se tudo correr bem, andar sobre o Avon, como Cristo). A alemã, talvez já cansada pelas horas (o coche da cinderela já tinha regressado a abóbora), não participou muito ou talvez se tenha apenas sentido discriminada enquanto falávamos sobre o mediterrâneo que nos ligava. Desde o meu verão grego que percebo que a grande divisão na europa não é tanto entre oeste e leste, mas muito mais entre norte e sul (li essa diferença pela primeira vez em Tolkien, no seminal ensaio do pai sobre o Beowulf). George, a pedido do italiano, falou das relações entre os cipriotas gregos e turcos: história desconhecida, que o carteiro da televisão não nos leva a casa, uma pequena palestina (é muito possível que faça a próxima crónica sobre isso). A guerra, amante do voyeurismo, está sempre à espreita. As Nações Unidas, uma vez mais (vezes de mais), mostram-se ineficazes e os EUA parecem proteger os turcos. A tia dele, aquando da invasão turca, foi violada, o tio morto. 1800 pessoas não se sabe onde estão e as mães arrastam as fotos deles para a fronteira e deixam ali em silêncio os facebooks dos filhos perdidos. Isto passa-se num país da União. (a parte interessante do dia de ontem era precisamente sobre o chipre, mas preciso que o George ma repita; como está agora a ver a revista no GoogleVideo, suponho que tenho de adiar a promessa – e eis pois que, mais uma vez na vida, falhei).
Fui hoje à Borders, uma das maiores livrarias da cidade, encravada entre a Uni e a Union: perdição de fnac (algures lá, julgo poder ter descoberto a prenda de natal do meu irmão). Entre a roubalheira geral que são as coisas aqui, sobrevivem, numa ilha à margem, os bens culturais (cds, dvds e livros): as peças completas de Tchékov por apenas ₤12.99, numa edição de capas belíssimas. O cuidado posto na aparência dos livros (que em portugal só acho na Cavalo de Ferro e na Tinta da China) é, aliás, uma das coisas que mais me apaixona na cultura inglesa. O livro ganha aqui um valor estético exterior que acompanha a mestria literária interior (é o ideal da kalokagathia). Passei pela livraria de Humanidades, coisa brobdingnaguiana, em obras de restauração. Secção enorme de escritores russos: roubei Os Filhos do Sol, de Gorki (ainda não fui ao teatro este mês). Melhores notícias: devo-me afinal mudar domingo já. Por enquanto, mudo amanhã de quarto, depois de amanhã de hotel. Já alguém visitou o Chipre?
*
- ₤49 (YHA); - ₤3.29 (almoço); - ₤3.30 (jantar); - ₤2.30 (chá + água + internet)
/foto: bandeira do chipre/

quarta-feira, setembro 24, 2008

Bristol Memoirs §10: 24 do Idem - Há Um Episódio de Friends Em Que a Jennifer Aniston Vai Lavar A Roupa Pela Primeira Vez (É Esse)

Uma coisa irritante em Bristol é que estou sempre a tropeçar. Desconheço a causa dessa frequente aplicação das leis da gravidade: a calçada não é particularmente irregular, mesmo se o meu corpo, esse, está sempre desequilibrado pelo peso do computador, pendendo do ombro e balançando como o pêndulo do relógio velho da minha bisavó. Calculo estar aí a razão para a minha dança macaca pelas ruas da cidade, em passos desequilibrados (como o “filho” do Busbeck, no Jerusalém do Gonçalo). Hoje fui à lavandaria da UBU (=AAC), sexto piso, lavar pela primeira vez na vida as minhas roupas. Encontrei o Meilof, um erasmus da Holanda e deu para falar de tudo (as nossas máquinas também conversaram entre si, nós é que não entendemos nada). Havia cartazes gigantes explicando todos os passos da lavagem para os não-iniciados nessa lide e eu segui as instruções como se montasse um móvel do ikea. De tarde, perdi-me na faculdade e corri o risco de ficar lá trancado: só se entra e sai com código (e eu entrei porque apanhei a boleia de uma rapariga a entrar – o português arranja sempre maneira). Perdi-me, e não descobri o que queria (o Departamento de Clássicas), mesmo se encontrei vários anúncios pedindo poemas e ensaios e mesmo um concurso (roubei os panfletos disso todos, só para que eu acreditasse que era escritor). À noite, visita (sugestão do Meilof) ao Bristol International Student Centre, uma casa gerida por um grupo cristão que dá apoio a estudantes internacionais (aproximadamente 3500, disse-me a responsável); apoio esse, aqui, muito concreto: um jantar gratuito. Já passa da uma da manhã e estão a passar na pousada uma colectânea da pior música do mundo: quer um homem escrever e não o deixam (estou mesmo a ficar louco). O momento melhor do dia não está aqui; fica prometido para amanhã (amanhã já é hoje; amanhã seja então hoje, mas mais tarde no hoje – os dedos do pé do dia).
*
- ₤49 (YHA); - ₤4.14 (detergente); - ₤5 (duas máquinas + uma secagem); - ₤5.4? (almoço)
/para o Mano, que aqui encontra razões para se rir.
foto: eu, frente ao Departamento de Música,
Universidade de Bristol, Queen's Road, Bristol © M./

terça-feira, setembro 23, 2008

Bristol Memoirs §9: 23 do Idem - (Dr.) House

A realidade é mítica (essa é, no fundo, a afirmação-resumo da minha futura tese de mestrado). Quando cheguei, no domingo 14, ao YHA, deram-me o quarto 28 (quinto piso, sem elevador a partir do quarto); vinha então à procura de casa. Hoje que a achei forçaram-me a mudar de quarto: expulsaram-me do terceiro piso para me reencaminhar um tempo mais para o primeiro cenário da minha estação inglesa, o quarto 28. Há, perdoem-me, algo de literário no acaso. Os meus critérios eram mais corriqueiros: tinha dito que tinha de arranjar um quarto ainda com as minhas calças castanhas vestidas; hoje foi o último dia que tinha programado tê-las (amanhã vêm as azuis) – tudo bateu, pois, certo. Acordei cedo, para traçar a pé o caminho do meu departamento (o equivalente ao nosso instituto) até à casa que tinha na mira: vinte e cinco minutos certos (e para a Uni o caminho é a descer). Ao passar pelo Downs (imagino que o central park da grande maçã seja algo assim, mas ainda maior), a visão surpreendente de dois esquilos a namorarem e a escalarem árvores. (acho que nunca na vida, senão talvez na alemanha, em menino & moço, tinha visto um esquilo). O sol esticava-se a toda a latitude (ainda não apanhei chuva – não devia agoirar). Ao longo de todo o caminho, como gasolina independente de bolsas e iraques, vim a escutar no mp3 (na sua primeira utilização inglesa) The Strokes, que cada vez mais me convencem serem uma das melhores bandas surgidas nesta década. Apropriadíssima banda sonora, repleta de alegria marie antoinette (desculpam os que não viram o filme, mas para mim ele já não é, no meu idiolecto, um filme, mas um estado de espírito que se descreve pelo nome da obra de Sofia). Resolvi investigar os transportes para a outra casa possível: muito maus, como um senador palpatine.
Resultado: fui à tarde assinar um contrato para me mudar para novos aposentos dia um de outubro. Depois de me despedir da senhoria, liguei triunfante o mp3 para escutar a música certa: Also Sprach Zaratustra, glorioso, ao som do sol. Resolvi descansar o resto do dia e passei a noite a brincar Black & White que o George me arranjou (mesmo se o que, de momento, tem verdadeiramente debaixo de olho é o outro jogo que ele anda a jogar, Fable – sai sequela já em Outubro). Sei que tinha tanta coisa para escrever. Tive uma ideia para uma micro-narrativa (intitulada Os ladrões de mp3 selectivos). Passeei-me com ₤300 na carteira, para pagar o depósito para o quarto. Cruzei-me com a «praxe» de cá: alguns freshers (tradução: caloiros) em pijama entoando cânticos que ao George fizeram lembrar os tempos de tropa. Hoje, de resto, foi o Open Day da Uni, com milhares de estudantes por todo o lado visitando as instalações e ruas muito cortadas. Descobri que o meu departamento é uma casa pensemos que vitoriana ou georgiana. A Faculdade de Artes (o equivalente local à FLUC) não é um edifício, mas um conjunto de vivendas inglesas, como privat drive. Já tenho o meu cartão e a password para aceder ao meu site pessoal na Uni, o MyBristol: coisa fantástica, de tão bem organizada e rica que é (imagem em baixo: clicar para ampliar).
O que anda a fazer o nosso departamento de informática, o nosso pólo ii? (tenho que perguntar a A., de resto, ele mesmo muito crítico das coisas que lá se passam). Está a dar os patinhos (aqui, se fosse, era o sandman – aquele que inspirou o outro, o Grande): é mister que me deite. (pun para finalizar, que me ocorreu hoje [ler, por favor, em voz alta]: perante Proust, prostemo-nos).
*
- ₤3.90 (autocarro); - ₤1.69 (almoço); - ₤300 (depósito para o quarto); - ₤6.19 (jantar)
ontem: - ₤5 (carregamento telemóvel); - ₤3.90 (autocarro); - ₤21.95 (YHA); - ₤3.95 (almoço, O’Briens); - ₤3.30 (jantar)
/foto: Downs, Bristol © M./

domingo, setembro 21, 2008

Bristol Memoirs §8: 21 do Idem - Fables & Reflexions (do Verbo «Reflectir»)

Cuentan que hace mucho mucho tiempo (desde O Labirinto do Fauno que esse é, para mim, o começo próprio de toda a estória), quando ainda não existiam egípcios e tutankhamuns, os africanos fabricaram um xadrez mágico que ofereceram, por qualquer motivo que o tempo obscureceu, aos povos do norte da frança. Esse xadrez continha o segredo para a imortalidade: em oito jogadas dever-se-ia atingir o xeque-mate. O jogo, porém, não era imediato e a partida levava a vida toda (mas a recompensa era toda a vida). Cada um dos quadrados do tabuleiro significa um dos sessenta e quatro elementos naturais da tabela periódica (na altura desconhecia-se a lista completa dos setenta e dois) e, desse modo, cada jogada era, na realidade, um pedaço da receita para o fabrico do elixir sagrado. As peças eram do tamanho de uma criança de três anos. O xadrez esteve nas mãos de Alexandre Magno, que o jogou ao contrário, para, como aquiles, ter vida breve, mas ganhar fama eterna. Carlos Magno possuiu-o e, para não esquecer a receita do jogo certo, desenhou uma catedral rendilhada de pistas que só os iniciados saberiam ler, como Robespierre e Casanova. Hoje só sobra um cavaleiro branco enorme, guardado no museu de moscovo. O governo americano (o Bureau for Paranormal Research, quiçá) ordenou escavações em busca do resto, mas sem sucesso. A estória, decorada por muitos mais pormenores, encontou-ma George hoje. Os meus olhos brilhavam, seduzido por uma mitologia onírica, lembrando a busca de Corto pela clavícula de salomão em veneza. Acaba aqui a parte interessante da minha crónica.
Acordei e fui em busca de um pequeno almoço, aterrando no Gusto. O café, alas, não me soube particularmente bem (talvez os ingleses sejam simplesmente incompetentes nesta matéria). Ainda me interroguei se o sabor amargo seria um efeito secundário do fairtrade. Eu julgava que a marca era uma criação para o meu exame de alemão, onde todo o teste cirandou em volta disso; inglaterra desenganou-me do erro. Aqui, de resto, há uma grande consciência social e ecológica: Bristol, aliás, tem a maior rede de ciclovias do UK e toda a gente parece holandesa, nas suas bicicletas.
Às 11 a.m. fui à missa, com as malas agarradas. A igreja com muita gente nitidamente estrangeira (talvez das ex-colónias?) e não muito cheia. O rito, curiosamente, não é exactamente igual ao nosso: algures no fim da oração dos fiéis rezou-se a avé-maria e passa-se, genericamente, mais tempo de joelhos. Foi estranho não saber o que dizer e temia muito o momento da paz, mas consegui perceber a tempo o que deveria dizer quando apertasse mãos (já não recordo, porém). Fiquei contente de perceber as leituras, mesmo se muito desiludido por constatar que, afinal, contra a mitologia literária, já não se usa a king james bible com os seus dost e thou e thy & afins.
Alguns telefonemas, ver duas casas. Penso poder começar a estabelecer uma lei (talvez exageradamente): quanto mais organizados os serviços públicos de um país, tanto mais desarrumadas as pessoas são na sua intimidade (e a regra, como o mostra Portugal, funciona também em sentido inverso). Já era o mesmo, em parte, com os alemães, e a regra parece aplicar-se bem também aos ingleses (certo: Gordon Brown perdeu os dados de vários dos seus cidadãos – isso não é propriamente bom serviço público, mas demos ao acidente o benefício da dúvida). A casa que fui visitar em Redland deixava, no campo da arrumação, muito a desejar, mesmo se era boa no demais, com a excepção de me proibir entrada até dia seis. Outra ficava no bairro africano e era até bem fornecida; padece do mesmo problema: não posso move in até início de outubro – e o YHA começa a tornar-se um fardo pesado que faz a carteira leve.
Gastei a noite aqui, nos sofás que já são meus e do George (hoje lembrámo-nos mesmo de sugerir que erguessem ali uma estátua em nossa honra; vá lá, pelo menos uma placa comemorativa). Para não dar ₤2 só pela internet, gastei-as no bar de cá (o que me dá direito a navegar na mesma) com um chá inglês e um pequeno chocolate para acompanhar. Belíssimo chá – e pensar que foi Catarina que o introduziu cá (mas também fomos nós que emprestámos o leque aos espanhóis e ainda se há-de descobrir que as baguettes aos franceses e os chocolates aos suíços). Hoje, uma dezena de páginas de Proust, chá inglês para a alma.
*
- ₤2,50 (pequeno-almoço); - ₤0.20 (missa); - ₤21.95 (YHA); - ₤2.86 (almoço + jantar); - ₤2 (internet + chá & chocolate); - ₤0.50 (água)
/quadro: The Chess Game, de John Singer Sargent/

sábado, setembro 20, 2008

Bristol Memoirs §7: 20 do Idem - Summer In The City

E sábado a cidade fez big bang e explodiu: a multidão – porque é que «a multidão», sendo muita gente, é singular? – invadiu as ruas como um exército russo sobre praga 68 (ou geórgia 08 – escolha o leitor). No dia em que cheguei decorria a meia maratona da cidade; a rapariga simpática que me conduziu a mim e a M. ao YHA logo nos avisou sibila sábia da tendência festivaleira da cidade: e eis hoje a epifania dela. Cruzei-me com uma parada musical, do outro lado do rio montaram um palco de concertos, perto do subway (onde almoçámos de novo) decorria um festival de brincadeiras para crianças – tudo mexe. Bristol parecia um centro comercial português ao domingo. As ruas povoadas de jovens multiplicados hora a hora como coelhos, sentados nos bancos, no cais, nas calçadas, acompanhados de um copo de cerveja. Às seis já havia indivíduos bem consideravelmente alegres, mas no outro dia o George encontrou uns que iam jantar às cinco e um quarto portanto (primeiro estereótipo dos ingleses confirmado: para se divertirem, têm de se embebedar). Uma italiana em erasmus comentava precisamente isso comigo, quando me cruzei com ela e com o alemão de Hanover (comentava isso e que todas as raparigas inglesas se vestem como prostitutas, mas eu discordo desta última verdade, mesmo se encontrei duas mascaradas de Supermulher a fazer compras). O stroll nocturno pela cidade, para ir para o Backpackers (onde durmo hoje, à falta de quarto no YHA), foi, nesse ponto, elucidativo: dois rapazes a urinarem para dentro de um caixote do lixo, outro a mostrar o rabo a umas amigas, uma miúda a gaguejar os passos (e outra a segurá-la para não cair). A cidade, hoje, guarda-se acordada: passei pelas docas depois das onze e, contrariamente a todos os mais dias, aquilo agitava-se de vida, exuberante (e os bares anunciavam que estavam abertos até às 2 a.m., coisa loucamente tardíssima aqui).
Os meus companheiros de quarto (sete guys) surgiram não sei bem a que horas lá, porque dormia já, mas às dez da manhã ainda continuavam todos embalados e eu adormeci ao som do dioniso no bar ao lado do motel. Stokes Croft (a rua do Backpackers) é a rua revoltada, onde as paredes se agasalham de graffitis e posters de concertos underground. Longo caminho, na sua beira garrafas e lixo numa concentração incomum na cidade doutro modo limpa. Não posso deixar de sentir uma empatia natural pelo terreno – onde há rebeldia há uma sem causa paixão por ela em mim (e os punks nasceram na inglaterra). Ao lado do motel, uma imagem do Reservoir Dogs (a fazer brevemente: post Tarantino em Bristol). Bom ver aqui o graffiti reconhecido como arte: ainda há uns dias M. e eu víamos um túnel a ser decorado, perto de uma velha igreja; hoje passei-o completo: belíssima imagem, urbano-clássica.
Antes de ir para o Backpackers dormir, fiquei com o George, a contar-me a história da sua vida cada vez mais fascinante e a fazer-me um milagre: uma moeda a entrar numa garrafa ainda selada, comprada quinze minutos antes na Tesco (o Lidl cá do sítio). It’s a kind of magic. Entretanto, não me deram a casa que esperava. Vi uma nova, em santa clara, por cima de um bar espanhol: bom, mas a cozinha é ridícula. Perto, porém, havia um parque para fazer tempo e paz: quantos jardins esconde a cidade, como cartas ocultas na mão de George? Penso ter descoberto também onde encontrar uma prenda de natal/anos para ‘T (com acento circunflexo). Desenvolvi entretanto para o pai natal um conceito que vou guardar secreto agora – a informação, já dizia o Merovingian, é o bem mais precioso de todos.
*
- ₤16.00 (Full Moon Backpackers); - ₤5 (carregamento telemóvel); - ₤2.60 (almoço); - ₤0.80 (água); - ₤1.44 (jantar); - ₤0.86 (água)
/foto: waterfront at night, Bristol/

sexta-feira, setembro 19, 2008

Bristol Memoirs §6: 19 do Idem - À Espera de Godot (e de Uma Resposta)

Hoje foi o Pirates Dayhoje foi» não devia ser um paradoxo gramatical?). Cinco piratas cruzaram-me na rua, falando mil macacos e marinheiro de água doce com sotaque de jack sparrow. Bristol, de resto, é uma terra espontânea de festivais: começou hoje o igfest – interesting games festival, onde amanhã se joga futebol com binóculos (dizem ser bem mais complicado do que a descrição aparenta). De manhã, ao pequeno-almoço, italianas falavam com um inglês indagando o melhor chá para oferecer à senhoria (Darjeeling recomendado – e eu que pensava que isso era apenas o nome do último do wes anderson). Pelo caminho (ou pelo diálogo), elogios vários ao IKEA, que tem aqui um restaurante (um restaurante?).
Passei a manhã retido no YHA, esperando quatro horas para fazer o check-in às duas da tarde: carregava comigo duas malas pesadíssimas que me proibiam qualquer movimento. Salvou-me o Livro: recuperei o À Sombra das Raparigas em Flor – só lhe tinha lido uma página no avião. Proust restaura-me a alma, apazigua-me; apascenta-me (ainda o irei ler para o Downs). Almocei um falafel e fui ao Accommodation Office aprender a melhor solução a nível de contratos para a casa de ontem. Soube a resposta e mandei ao Mike – o meu wannabe flatmate – um mail com as informações. Estou cansado e a minha esperança está toda e pouca nele: temo a resposta negativa e o recomeço dos pedidos de santuário. Sem muito mais que fazer, fui com M. assinar o contrato dela e ver o quarto. Descobri da sua senhoria (senhora simpaticíssima) que Bristol é em sete colinas como Lisboa e Roma (são estes pormenores que enriquecem uma cidade). Jantámos com o George no subway que merece linhas: tendo-nos dito ele que existia uma subway, muito eu e M. nos admirámos e rejubilámos interiormente, pelo gozo que é um metro. Só hoje à noite soubemos que subway é, na realidade, o nome de uma cadeia de sanduíches de um foot muito alimentícias (mesmo se, claro, inferiores às do O’Briens). O preço também não é o melhor: guardar referência para as refeições domingueiras. Amanhã é dia de emoção forte: importante ter o Proust à mão para consolar o espírito se magoado.
*
- ₤2.70 (autocarro); - ₤41.90 (YHA); - ₤3.60 (almoço); - ₤6.19 (jantar); - ₤0.56 (chocolate); - ₤2 (internet)
/foto: Pero's Bridge (frente ao YHA), ponte em memória do passado sujo de Bristol:
a cidade era um centro de tráfico negreiro © M.
/

quinta-feira, setembro 18, 2008

Bristol Memoirs §5: 18 do Idem - Em Busca do Vale Encantado

É proverbial e mentirosa a frieza dos ingleses e do seu tempo (weather, para evitar confusões). O sol abriu hoje ao meio-dia como uma loja e eu despi o casaco branco de verão. De alguma forma, a simpatia nativa da cidade pega-se a quem a visita: encontro-me a dizer sempre good morning! e thank you! ao condutor de autocarro quando entro e quando saio (hoje comprei finalmente um one day ticket – mal feito: quase não o usei, mas quem adivinhava sem aulas da trelawney?). Voltei hoje ao O’Briens: não há, fique aqui assente, melhor casa de sandes na cidade toda (é urgente postar alguma imagem das sanduíches para eles terem uma ideia que as palavras falham – regista, regista). Estava a fazer tempo para um encontro que tinha, para ver casa, chega uma velhinha aponta-me o dedo diz-me que me viu um doppelgänger em Temple Meads. Com a sabedoria que recolhi d’A Casa Dourada de Samarcanda, disse-lhe ser melhor não me cruzar com ele, pois no acontecimento disso um havia de matar o outro (dita a superstição). Entusiasmou-se a senhora (70 anos) e narrou-me, como uma avó aos netos uma estória, os seus problemas enrolados em coscuvilhice (aborrecimentos de heranças, coisa chatérrima: por isso é que devíamos ser todos um Santo Agostinho da Silva e ter no apartamento só gatos e livros – ninguém fará muita fuss por causa disso depois de mortos). 
O quarto, esse, era pequeno, sim, mas suficiente; a cozinha bem equipada (o micro-ondas tinha-se avariado há pouco tempo, havia que o reparar); a casa-de-banho pequena, mas somos só dois. O guy era descontraído, filho de uma australiana e de um escocês que se conheceram num pub; alertou não haver TV, mas não vimos problema nisso. Pediu-me até sábado para tomar a decisão se me aceita ou não (é como aqueles CDs na loja, que namoramos uma semana inteira, hesitantes entre o desejo e a carteira: decisão morosa como a justiça portuguesa). De manhã tinha visto outra casa, do outro lado do rio, trinta minutos a pé para o centro da cidade, cinco pessoas. Ponderei seriamente assinar o contrato, como um zeus a pensar se dá a tétis o favor de honrar aquiles (e a hera que me vai chatear tanto, eu não suporto aquela mulher caprichosa como a minha avó). Acabei não o fazendo (aí eu e zeus somos diferentes). 
Eu e M. saltámos ainda à pousada, a ver George, a estudar mais truques de magia e a mostrar-nos outros. Ligo a mais senhorios: uns não oferecem contratos de quatro meses apenas; outros, os quartos já estão taken (ou gone – a terminologia usada varia entre os dois verbos). O jantar foi veggie, a lembrar as Amarelas. Nas minha ambulância pela cidade, perto do pino do sol, apercebi-me de quanto há ainda a descobrir. Encontrei, por exemplo, o paraíso: um sítio, na Park Street, com alguns dos melhores filmes de sempre entre ₤ 1-3 e CDs míticos (daqueles que entram no grimmal entre uma entrada dedicada a afrodite e outra a elisa/dido) a ₤5 (algures lá encontrei uma muito possível prenda de natal para ____.). Dei ainda um salto à Waterstone (com todos os livros da Penguin e da Oxford com os textos nórdicos e as eddas): não descobri, contudo, para grande vergonha da livraria, Pessoa (devia saber que a coisa acima da qual nada mais perfeito se pode pensar é Deus – St. Anselmo dixit, no argumento mais estúpido de sempre a favor da existência d’Ele – e não a inglaterra, ao contrário das minhas primeiras impressões). 
(entretanto, coisas importantes: novo CD dos Queen e novos posters do Corto).
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- £3.90 (autocarro); - £3.45 (almoço)
ontem: - £2.64 (almoço); - £1.30 (autocarro); - £1.80 (autocarro); -£1.55 (autocarro)
/foto: um dos melhores graffitis que vi nos últimos tempos, Park Street, Bristol/

terça-feira, setembro 16, 2008

Bristol Memoirs §4: 16 do Idem - W.C.

Todas as portas em inglaterra são portas de incêndio, explicou-me George. Significa isso que, no caminho para sair do edifício, todas as portas são de empurrar e jamais de puxar (actividade longa, própria das situações de um homem descansado). De uma maneira geral, parece existir em inglaterra onde sempre chove (e ainda não choveu) uma paranóia com incêndios: instaram-nos a ler com atenção as medidas de evacuação do edifício em caso de fogo. O George gastou a noite a pensar num truque para nós os três (me, M. e Giulia, a italiana). Insistiu uma vez R. comigo na necessidade de se estender o conceito de arte, de não o ter como um chapéu-de-chuva fechado, mas abri-lo (isto tudo a propósito de um ventríloquo de talento). Marcaram-me muito essas palavras, como ferro em brasa, e desde então meti-as nos fundamentos do meu pensamento da estética. A magia, definitivamente, deveria ser englobada, sem discriminação, no universo das artes, só pela razão de que o é: a forma de George mover as mãos enquanto baralha as cartas atinge o lirismo motor (¡expressão rude!) de uma batuta de orquestra a copiar o mar nos gestos. A magia é uma forma de dançar, Zaratustra.
O house search event era/é/foi (daqui a alguns dias) no Churchill Hall (o primeiro-ministro inglês do v e do charuto foi reitor da Uni). Chegar lá levou-nos a manhã como um ladrão, com a gorjeta do cansaço de subir a pé um monte. Almoço normal, mas estrangeirado (pizza). Distribuíram-nos dossiers vermelhos (não pretos, Allan) com informações e um cartão sim de uma companhia aparentemente imbatível (reflectir agora que gastei mais de uma manhã ontem na busca disso). Desde o princípio, faz quase um ano, quando foi o tempo de escolher a universidade (com o cuidado com que se colhe a primeira rosa a dar à namorada), o site de Bristol, com o seu eficaz design e interface facilmente navegável (e eu sou marinheiro, pelo que estas coisas, naturalmente, contam na minha balança), convenceu-me. Ao longo dos meses fui confirmando a alta eficácia deles, mas nada me podia preparar para o cuidado maternal da Uni em nos fornecer, gratuitamente, um cartão sim com ₤3. Acreditamos de facto que aqui contamos como pessoas – inteiros | próprios | únicos – e que estamos numa dimensão ontológica superior à de uma mera senha numa fila de uma secretaria qualquer que abre umas escassas quatro horas e meia por dia. Coimbra é terceiro-mundista e está doente (não sem razão é a minerva da universidade verde: é o enjoo de tudo aquilo): deixa de acreditar que saltas quando dás soluços – só sobes os ombros. 
Gastámos a tarde a telefonar a landlords&-ladies e a responder/enviar e-mails. Sai-se cansado disso. Três casas a ver amanhã, mas duas não sei se me servem contratos de quatro meses apenas (essa a grande dificuldade). Jantar às seis e meia – devia-me começar a habituar a isso. O sítio está povoado de alemães, com os quais já meti conversa inglesa. Os ingleses domesticados para isso conseguem aparentemente falar um francês quase perfeito, coisa surpreendente. E sim: as italianas são belas (uma rapariga basta para a confirmação da raça toda) e os rapazes delas continuam a reconhecer-se à distância. Expulsaram-me do bar às 11 e às 11:45 mandaram-me para o quarto: ainda tenho de me habituar ao jetlag
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- ₤2.30 (autocarro); - ₤90.00 (house search event)
/foto: Churchill na Universidade de Bristol - reparem no olhar do rapaz da retaguarda: um dia escrevo uma composição sobre ele/

segunda-feira, setembro 15, 2008

Bristol Memoirs §3: 15 do Idem - Dia do Pai

A novidade é sempre veloz desde maratona. Acumulo peripécias como se coleccionam selos ou livros da assimil. Difícil é manter registo de tudo e não gosto dos contabilistas. É já noite lá fora e ainda nem oito cá dentro. Pela porta vejo um carro: os táxis são rather peculiar, com o seu design de semi-autocarros. Hoje a cidade pareceu mais movidamentada (pintou-se ao espelho melhor de manhã ao acordar). Continua, contudo, mais que uma city, uma town. A experiência de um pequeno-almoço inglês em que nos servimos self-service à continental: croissants para provocar o inimigo eterno. Descobri no meu quarto um mágico do chipre. Acorda o escocês entrevista-o; ele engasga-se numa resposta e cospe boca fora dragão um baralho de cartas em vez do fogo. Segue-se um espectáculo privado, que me retém mais tempo do que o que prometi a M. Venho a descobrir que ele estuda também na Uni (informática, George – decorar nome, escreve down escreve down), mas mantém-se dos rendimentos que ganha como mágico de rua e contratos. Tirou o curso de harry potter na califórnia, quatro anos. No final da semana parte para a grécia fazer 3000€ em dez dias. 
Depois do pequeno-almoço (o adjectivo torna-se impróprio nestas bandas), M. e eu fomos ao Mall, o centro comercial da cidade (abre um segundo agora no final do mês e este fecha às seis da tarde). Gastou-se a manhã a explorar operadoras telefónicas para só às três podermos ir almoçar com cartões locais (Orange, tarifário Dolphin – as tarifas têm nomes de zoológico). O sistema é razoavelmente diferente – e mais atrasado – do que em Portugal. Aqui os carregamentos obrigatórios aparentam ser o mais frequente e oferecem-se pacotes de minutos para falar em vez de tarifas mais reduzidas. O meu telemóvel manifestou-se miraculoso desbloqueado por natureza, poupando-me o ₤ de 1. Almoçaram-se umas sandes magníficas, fortissimamente nutritivas, quentes e saudáveis, num sítio de gente sorridente a regressar próximo. Aqui, de resto, todo o mundo se (em)presta a ajudar e abre a conversa espontânea com um sorriso tamanho joker. Vagueámos um pouco, os três: eu, M. e a companheira de quarto dela, uma italiana de nome não lembro (Giulia?). Ela está também em erasmus aqui este primeiro semestre e segue-nos para o house search event amanhã. A cidade parece cada vez mais bonita, como um vinho do porto, que fica melhor na velhice que o cícero elogiava. Hoje conheci enfim de fora alguns dos monumentos mais emblemáticos, entre eles a Uni, coisa neo-gótica bela. No caminho para lá, Christmas Steps, o Quebra-Costas de Bristol. Ao fundo de uma das ruelas, a shop called Shop trazia à memória a velha Popcorn com a sua colecção vintage. Pelo caminho, uma livraria/discoteca (no sentido etimológico) com um cartaz a promover uma feira de livros anarquistas. Perto da Uni, a Blackwell, com algumas das mais belas capas do Oxford World Classics que conheço e a prenda de natal do meu pai (começar a poupar). (acabei de ver um anúncio de um aspirador fascinante). Enriqueci-me de folhetos de todo o jeito. Há que investigar ainda o passe de autocarro: não soa nada rentável. Amanhã começa a busca séria e ninguém me comprou um chapéu ou um norfolk de sherlock holmes. 
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- ₤10 (carregamento telemóvel); - ₤3.99 (almoço); - ₤0.38 (água)
/foto: Christmas Steps, Bristol/

domingo, setembro 14, 2008

Bristol Memoirs §2: 14 de Setembro - Impressionismo

Ainda não são oito e os ingleses estão jantados. As lojas, de resto, por todo o lado estão fechadas; sobrevivem os pubs. Oiço as gaivotas, lá fora, e vem-me ao coração Corto Maltese. Encontrei a casa: os campos são verdes, o céu cinzento, a noite próxima e as casas vermelhas como entranhas despejadas da terra, cesariana do solo chovido. O rio, aqui na waterfront, é uma presença real, morada amena dos homens em barcos, uma forma ontológica de tomar café. Gaivotas, meu Deus. Oiço gaivotas e desprezo Xenofonte: Ποθαμός, ποθαμός! – (Avon’s its name).
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- 80.02€ (viagem); - ₤6 (autocarro aeroporto-rodoviária); - ₤39.90 (YHA – bed & breakfast); - ₤6 (YHA - suplemento); - ₤4.99 (almoço); - ₤4.47 (jantar)

Bristol Memoirs §1: Intro

Li um dia existirem casas amovíveis, daquelas que se pegam e se levam, como um caracol ou um chapéu. Chapéus há muitos, casas dessas nem tanto (o Howl tinha uma). A Varanda, contudo, não me desiludiu na migração que empreendi e veio atrás de mim, segura pela mão, como um balão que a rapariga leva enrolado à volta do pulso para não fugir como o tempo e os filhos. Levei-me para Bristol e resolvi disso manter notícia. Determinei escrever qualquer coisa análoga a um diário e da Varanda passei a lê-lo aos transeuntes como um poema ou um discurso do mussolini. O que se segue não é um monocórdico listar das coisas feitas, mas antes uma narrativa semi-literária das mesmas: que interesse tem ler uma lista de supermercado? (Woody Allen, contudo, escreveu um conto magnífico a partir de listas de lavandaria). Como Thoreau, a cada dia anexei as suas despesas. Leia quem quer e quem ature.       
[foto: graffiti numa parede de Christmas Steps, Bristol]