quarta-feira, janeiro 21, 2009

Moleskines §13: 2008, Segundo Semestre - Balanço Literário

SENHORAS E SENHORES, EI-LOS:












1. Em Busca do Tempo Perdido - Do Lado de Swann, Marcel Proust
(trad.: Pedro Tamen)
2. The Idiot, Dostoiévski
(trad.: David McDuff)

3. A Perna Esquerda de Paris seguido de Roland Barthes e Robert Musil,
Gonçalo M. Tavares


Um homem lê muito, e ainda assim lê pouco. «Tem de haver outra forma de um homem se salvar», suspirava com pavor o grande Almada. Talvez porque em vida isso nos seja impossível Borges cuidou que o paraíso fosse uma biblioteca. Cada vez que um homem descobre um livro que lhe muda a vida tem de se interrogar necessariamente sobre as vidas que anda a perder à custa dos livros que não leu. Isto é apenas outra forma do problema do mal e urge uma teodiceia disto. E porém um livro só age no tempo bom no tempo certo. Mil livros nunca me salvarão por eu os ler no dia errado. O que seria eu se eles me salvassem, eles e não outros, eles e não os que me salvaram? Foi tudo tão acaso - e, simultaneamente, foi tudo providência.
De quanto li no seis meses passados, guardei três monumentos três textos bíblicos três palestinas para regressar no fim da diáspora. Três textos em que cada palavra era acutilante, necessária e fértil; cada palavra um livro ou um verso (se há alguma diferença entre os dois, é um tópico controverso). Assim se escolhem as grandes obras: aquelas que são bibliotecas. Dêem-me uma centena, se as há, destas, e em três dias reconstruo-vos alexandria.

Lembro-me que a primeira vez que ouvi falar de Proust (o nome do autor significar a obra: isto deve ser a coisa mais perto da santidade literária) ter sido a uma colega minha das aulas de alemão, há vários anos atrás. Dizia ela que diziam eles aqueles que tinham lido o livro que depois de ler Proust nada mais se lê, os livros murcham morrem. Relê-se Proust eternamente, e isso basta. Poucas vezes o homem esteve tão perto da verdade. Proust sabe a obra total: e eu li um sétimo da totalidade. Como é que se multiplica o absoluto por sete? Não há matemática para sete infinitos. Desde Corto Maltese que eu não tinha um livro que me amasse tanto e cosesse o coração esborratado. Proust é uma forma de mitologia real, uma arca de noé das coisas todas. A vida não se vive: lê-se (em francês, no original, e o Tamen, a traduzir, é genial).

Eu tinha-me obrigado a ler Dostoiévski antes dos vinte. Era uma vergonha literária que tinha e forçoso era corrigi-la. Eu, porém, tenho o gosto estranho de não começar os autores pelas suas obras maiores e, por isso, descartei logo o Crime & Castigo e deixei em Portugal O Jogador. Mireille sugeriu-me O Idiota e eu roubei-o da biblioteca na novíssima tradução do pinguim. Tomava todos os dias um capítulo como um comprimido antes de ir para a cama. A estrutura da obra é magistral, o mais perto que a prosa pode chegar do teatro. A estória começava num comboio, que é a forma russa de escrever era uma vez. E depois havia eu, e andava por ali, com espasmos de epilepsia, um idiota que sou. Dostoiévski escreveu-me uma biografia possível. Olhei para aquilo como um mapa de mim e onde as duas geografias não concordavam, a do Príncipe e a minha, plagiei mandando: Every valley shall be exalted, and every mountain and hill shall be made low: and the crooked shall be made straight, and the rough places plain (Is. 40.4). Quixote, determinei-me a ser Myshkin, porque já o era.

Repito: se houver um Prémio Nobel da Literatura nos próximos anos para Portugal, irá para Lobo Antunes. Se, porém, o prémio vier só daqui a umas décadas, dão-no ao Gonçalo. Também ajudou ele ter vindo a Coimbra (e o foyer do tagv estava cheio como um metro japonês). Nunca ninguém escreveu português daquela maneira: geométrica, concentrada, violentíssima. Quanto mais perto do haiku, mais próximo da perfeição. O que torna A Perna Esquerda... o melhor dele é o estar sempre a balançar no aforismo. Gonçalo é melhor ao pé coxinho. A Perna Esquerda... é para pegar, abrir ao torto, e colher um verso. Isso basta e dói e esmurra. Gonçalo não usa almofadas. Gonçalo não tem tempo para o que não é necessário: cada palavra é essencial e a cada palavra ele dá a essência toda: daí o peso e a verdade da coisa. Uma frase de Gonçalo substitui um romance inteiro. A coisa mais parecida que eu conheço com isto (diverge apenas no ser mais poética e mais maior) é o Livro do Desassossego. Dele diz Gonçalo: "uma coisa inclassificável e forte", "[cada] frase pode ser vista como um verso, ou como a pequena parte de um romance, ou como coisa que vai a caminho do ensaio ou, simplesmente (voltando ao início), como uma frase", "para qualquer assunto, enfim, encontraremos uma citação vinda do livro." Mas não se poderia dizer tudo isto do próprio minoutauro de Gonçalo, A Perna Esquerda de Paris seguido de Roland Barthes e Robert Musil? Livro-catedral, mas uma catedral saída da cabeça de Mondrian.

OUTROS DE BOA MEMÓRIA:

Maus, Art Spiegelman
Spiegelman ganhou o Pulitzer por isto. Mais que o mereceu. Maus é indizível e ao cruzar três narrativas - o Holocausto segundo o pai de Art, a relação dos dois, e a meta-narrativa sobre a composição do próprio Maus - transforma-se num dos mais revolucionários exercícios criativos da nona arte.

A Hero of Our Time, Mikhail Lermontov
(trad.: Vladimir & Dimitri Nabokov)

A obra-prima de Lermontov é um belíssimo naco do romantismo russo que dá um gozo tremendo a ler (para mais na tradução excelentíssima do Nabokov e filho, mas não há desculpa para os preguiçosos: existe também uma novíssima tradução dos Guerra, os nossos vovós russos, que nos contam as estórias dessa terra distante e grande).

Persepolis, Marjane Satrapi
Persepolis é o Underground do Irão, um mini-épico do país, um Bildungsroman alucinante de uma enorme boa-disposição mas sempre com a tragédia em pano de fundo (assim era também no filme do Kusturica). O Irão é esse país desconhecido de que, contudo, estamos sempre a falar: eis uma boa maneira de acabar com a hipocrisia (a seguir a isto, a Morte na Pérsia: a ler algures este ano).

Symposium, Platão
(trad.: Robin Waterfield, Teresa Schiappa, e minha)
Foi a segunda vez que voltei a estudar, a Grego, o Banquete de Platão, louvado por muitos como quiçá o diálogo mais perfeito do ponto de vista literário. A estrutura da peça roça, de facto, a perfeição, mas são necessárias várias leituras e uma atenção cuidada para que nos apercebamos das múltiplas subtilezas que Platão vai semeando. Platão é o Beethoven da filosofia. Compromisso pessoal para este ano: ler a obra completa do génio (o Aristóteles é um rato comparado com o professor).

BANDE À PART:

Ilíada, Homero
(trad.: Frederico Lourenço)

A Íliada não é um livro. É uma coisa. Isso mesmo: uma coisa. Olhar para aquilo como uma estória é dificil e põe a obra a perder. Aquilo é o mito original, a própria linguagem que falamos a escrever. Sabemos-lhe o final e o meio é cheio de cadáveres em batalhas excessivamente longas e sangue e tripas. Face às obras clássicas e ao homem moderno a questão é: que valor tem isto para mim hoje? E a resposta é: aprender a balbuciar. Como um bebé. A Ilíada é a mamã Homero a ensinar o filho humanidade, a dar-lhe as palavras e apontar-lhe as coisas a que se referem. O que resgata a Ilíada é em cada página existir um verso que redime todos os outros. Vou abrir ao acaso: "A morte chega a quem nada faz e a quem muito alcança" (IX.320), "Eles preocupam-me, embora vão morrer" (XX.21; Zeus, o pai dos imortais, sobre os homens); "e as palavras morderam o espírito de Heitor" (V.493). Por vezes, Homero chega mesmo, como neste último poema (o verso sozinho é um poema inteiro, sim senhor), a ser esquiliano (esclarecimento: Ésquilo é o maior génio das letras gregas). E depois há toda a tragédia. A Ilíada é a tragédia dos que morrem e morrem sem razão, ignorados pelos deuses (há um verso absolutamente terrível em que Atena rejeita as oferendas dos troianos, mostrando bem a arbitrariedade da vontade divina). É a Guerra. Há que substituir as coisas e falar da Ilíada do Iraque, da Tróia Palestino-Israelita. E depois há Helena. E Heitor. E Andrómaca. E Príamo. A Ilíada é como um rascunho a pedir aos escritores de todo o mundo que a peguem e reescrevam: a literatura mundial é isso.

The Wake, Neil Gaiman
Só há uma e uma só razão pela qual The Wake não está na companhia dos três primeiros, no seu lugar devido, que é o dos contos imortais: é que The Wake não existe por si, antes funciona como epílogo a The Kindly Ones, da mesma forma que Worlds' End é o prólogo. O oitavo e o décimo volumes de Sandman, apesar de serem mais do que isso, devem, a meu ver, ser entendidos sobretudo como acompanhantes do nono, esse sim o verdadeiro volume final da série. O nono, porém, já tinha sido lido em Fevereiro passado. Para que, porém, não restem dúvidas, declaração: Sandman, a série, e muito especialmente The Kindly Ones (acolitada do livro antes e do livro depois), é uma das maiores obras-primas do século XX e um texto maior da literatura mundial. Declaração específica: The Wake foi o segundo livro a fazer-me chorar em toda a minha vida. Dito isto, considero todos os esclarecimentos dados.

LIVROS DA ESCOLA DE ATENAS:

1. An Enquiry Concerning Human Understanding,
David Hume

2. The Problems of Philosophy, Bertrand Russell
3. Meditations On First Philosophy, René Descartes
4. Nicomachean Ethics, Aristóteles

Postos todos em fila ao monte não se percebe muito bem, mas Hume está muito acima de qualquer um dos outros. Discordo com Hume em muito do que ele diz, mas é inegável que quer o que ele diz é ainda hoje de uma enorme pertinência filosófica (o famoso problema da indução que ele aqui expõe continua sem resposta), quer a maneira como o diz, com grande clareza, quase humor, e estilo trabalhado, o tornam um dos maiores filósofos de sempre. Para que se veja a dimensão da coisa, diga-se que ponderei seriamente tirar a obra de Hume desta secção e juntá-la aos Outros de Boa Memória, tal é a sua superioridade. Faz favor ler o livro na edição da Oxford Philosophical Texts: dificilmente se arranja edição tão perfeita.
Os outros, então (mais abaixo).


Russell faz um introdução interessante à filosofia, mas infelizmente centra-se sobretudo na epistemologia e metafísica: a filosofia, no entanto, é muito mais que isso. É um livro bom para o leigo, mas tem de ser complementado e as suas falhas corrigidas por mais uns quantos. Descartes não é tão estúpido como parece e, de qualquer forma, devemos-lhe o Matrix. Aristóteles esse sim: é tão estúpido como parece. Escreve um livro inteiro a tentar dizer como levar uma vida boa e mina-o de contradições do princípio ao fim (e eu sei do que estou a falar: tive uma cadeira este semestre só sobre este livro). Resoluções para este ano: ler Kant.

*
Outros livros lidos, por ordem aproximada de qualidade: Água, Cão, Cavalo, Cabeça (Gonçalo M. Tavares), Jerusalém (Gonçalo M. Tavares), A Poesia da Presença (antologia), The Children of the Sun (Maxim Gorky, trad.: Moura Budberg), As Troianas (Eurípides), A Liga dos Cavalheiros Extraordinários II (Alan Moore) e The Tales of Beedle The Bard (J. K. Rowling).

Outros livros de filosofia lidos, bastante bons dentro da sua área: Routledge Philosophy Guidebook to Descartes and the Meditations (Gary Hatfield), Hume's Enlightment Tract: The Unity and Purpose of An Enquiry Concerning Human Understanding (Stephen Buckle), Understanding Philosophy Of Science (James Ladyman).

O pior livro lido (desperdício de tempo e de uma boa premissa): Folk Tale, Fiction and Saga in the Homeric Epics (Rhys Carpenter).

Somatório: 24 livros (na íntegra, naturalmente).
Média: pouquito menos que um por semana.