quarta-feira, abril 12, 2006

Moleskines §4: O Operário em Construção

Presenteio-vos com a genial declamação de Mário Viegas do não menos forte poema de Vinicius, extraído do EP homónimo, O Operário em Construção e 3 Poemas de Brecht (1975). A T. emprestou-me, ' semana antiga, um duplo CD de poesia de Vinícius, cantada pelos ritmos afro-brasileiros da bossa-nova. Ela comprara o disco pela paixão que tem por aquelas cálidas melodias vivas, que só podiam mesmo ter sido inventadas numa praia brasileira. Posso dizer que, antes, nunca ouvira música brasileira, porque trautear Tribalistas ou ver o pai a ouvir Maria Bethania não pode, na acepção mais aceite da palavra, ser considerado válido para aquilo em questão. Foi um prazer natural aquele andamento dançável de Tom Jobim num' A Rapariga do Ipanema. Há beleza e tristeza no samba, como Vinicius ajustadamente exigia que houvesse. Na realidade, a verdadeira beleza é sempre triste; sabemos que é bela, porque é triste. O poeta, ante o que é belo, inevitavelmente, chora - não pode deixar de o fazer. É a súbita consciência da efemeridade de tudo o que se apresenta na proporção e harmonia da alma estética que carpe o homem. Perceber que toda a mulher bonita, há-de morrer - e, em última análise, que a todos nós chegará o dia em que os olhos se fecharão para as coisas belas. Se a beleza é algo de divino, então a beleza é, por maioria de razão, triste, porque Deus tem de ser obviamente Alguém profundamente infeliz. Na realidade, o poeta e o filósofo - ainda que movidos por dois instintos carnivoramente diferentes: sentimento e pensamento - estão ambos condenados a ser, na sua essência, misteriosamente próximos. Resumindo, ambos almejam alcançar a alquimia do mundo - não para a dominarem: a esses chamam-se políticos e demagogos - mas tão somente para a compreenderem. Bem vistas as coisas, o poeta quer tanto como o filósofo saber o mistério do mundo, apenas não se esforça muito para isso, porque, em descoberto o mistério, que resta para que nos espantemos e se escreva versos? O poeta quer - mas o poeta é budista. E anula o desejo. Não o elimina - somente o não concretiza. Ama, por exemplo, mas nunca, de forma efectiva, se lança à rapariga. Na realidade, ele perserva o desejo, pois não se pode desejar o que se tem. O poeta é um desejador, arde-lhe, nietzschianamente, a vontade - mas ele tem o cuidado de a preservar como um animal numa jaula de zoo. Por isso, na época de ouro da poesia como vida - o Romantismo - inevitavelmente a filosofia desse tempo tinha por arauto os profetas da Vontade: Zaratustra e Schopenhauer. O poeta é um desejador. E, depois, há os que desejam ser poetas...

And Viddy Films I Would §3: "V For Vendetta", de James McTeigue (2005)

Em circuitos de culto, V For Vendetta já andava a ser seguido desde há quase um ano, quando as primeiras informações sobre o projecto foram divulgadas. Era o semi-regresso ansiado dos irmãos Wachowski, que, desta feita, tinham a cargo somente o guião (escrito, aliás, antes mesmo da trilogia Matrix), deixando a realização para James McTeigue (assistente de realização na saga que os catapultou para o sucesso devido), mau títere dos irmãos que são, no fundo, a força principal por detrás deste filme que podemos reclamar inteiramente como criação sua.

V For Vendetta (estupidamente traduzido para português V de Vingança, sem preservar, como faz o título inglês, a palavra italiana) decorre numa Inglaterra distópica, num futuro próximo, em que o país seria governado por um regime fascista e conservador, com laivos nazis (não só na simbologia, mas também nas experiências cinetíficas à la Mengele). Evey, uma funcionária da estação estatal - obviamente, a única - é salva, na noite de 4 para 5 de Novembro, dos delatores ao serviço do Governo por um mascarado que sa auto-intitula de V. Pelos olhos de Evey, seguiremos a demanda revolucionária de V pela libertação do seu país do totalitarismo.

O filme é adaptado da BD homónima, da autoria de Alan Moore, reputado escritor da nona arte, e fora concebida nos anos 80 como uma crítica às políticas conservadoras de Thatcher. Na série, politicamente confrontavam-se fascismo e anarquismo. Esta dicotomia foi praticamente omitida pelos irmãos argumentistas, que se concentraram antes no lado terorista da personagem principal. De facto, ainda que não confessado, o guião foi claramente actualizado para servir como uma parábola da época moderna, dos medos e angústias do início de século XXI.

O lado anarquista não foi de todo censurado. Quando, por exemplo, V diz a Evey «A revolution without dancing...is a revolution not worth having!», cita Emma Goldman, conhecida anarquista. Sinteticamente, Finch - o polícia responsável por apanhar V - resume o objectivo do lutador da liberdade «Chaos». Noutro momento ainda, alguém grita «Anarchy in the UK!». Porém, outras referências não se identificam. Como comentaram os puristas, na BD, V lutava, acima de tudo, por algo; no filme, luta apenas contra o regime. V, ao longo de toda a película, não apresenta, de facto, uma única alternativa à ditadura. (Para ulterior desenvolvimento das diferenças entre fita e livro no que diz respeito ao anarquismo, vide A For Anarchy).

Pelo contrário, a palavra "terrorista" ou seus derivados recorrentemente emerge no filme. Este coloca-nos a pergunta incómoda: pode um terrorista ser bom? V, em última análise, enquanto vai eliminando chefes políticos e rebentando com edifícios emblemáticos desabitados, está a contribuir para a construção de um mundo melhor. A definição de terrorista balança na corda bamba na bobina deste filme. Os métodos de V merecem toda a nossa atenção e perguntam-nos constantemente a sua legitimidade: note-se a sua relação com Evey e as questões que emergem.

Porém, V For Vendetta herdou do livro um pormenor com toda a relevância: ao contrário da típica BD, o herói aqui não é tanto V, mas muito mais o povo. Daí constantemente, ao longo da película, irmos, silenciosamente, conhecendo uma série de famílias, pois é a elas que compete a rebelião. Escrevia Brecht num dos seus poemas «De quem depende que a opressão prossiga? De nós./De quem depende que ela acabe? Também de nós.» - é isto que V quer consciencializar a população. Por isso, ele se dirige à nação quando toma a estação televisiva onde trabalha Evey, para acordar as consciências adormecidas. Por isso, ele desabafa «...if you're looking for the guilty, you need only look into a mirror.». Como um crítico apontou, V é todos e ninguém; ninguém porque, sob a máscara e o anonimato, não lhe conhecemos a identidade (nem interessa, pois ele representa uma ideia e, as ideias, como ele diz a Creedy, são à prova de bala); mas é todos, pois, mascarados com a indumentária de V, quando os cidadãos enchem as ruas para levarem a cabo a revolta contra o regime, todos eles são, em última análise, o próprio V. V é, mais que uma pessoa, um símbolo. Não é ele quem faz revolução (a alavanca da mesma é deixada a Evey - a nova geração que verdadeiramente tem de tomar a decisão, como reconhece V), mas sim o povo porque quer.

O filme cruza referências tão diversas como Dickens, Camus, Shakespeare ou O Conde de Monte Cristo e O Fantasma da Ópera, sem esquecer, claro, a pesada herança de 1984 de Orwell. Os irmãos Wachowski, cujo contributo ao argumento já avaliámos, introduziram também no guião algumas das ideias que lhes são mais caras, como se deduz de quando V afirma «I, like God, do not play with dice and do not believe in coincidence.» ou «There is no such thing as coincidence, just the illusion of coincidence.»: retoma-se aqui o tema da relação entre destino, liberdade e coincidência que, filosoficamente, tão profundamente marcaram o segundo capítulo da trilogia Matrix. Os irmãos não se escusaram a alguns jogos subtis, como escolherem para chanceller Suttler o actor John Hurt, que tinha desempenhado o papel do oprimido Winston Smith na adaptação cinematográfica de 1984.

Ainda em termos filosóficos, V For Vendetta é, por fim, um magnífico ensaio sobre o poder da palavra; a palavra como verdade e a verdade como poder. A esse propósito, são ilustrativas algumas frases da própria metragem:

Because while the truncheon may be used in lieu of conversation, words will always retain their power. Words offer the means to meaning, and for those who will listen, the annunciation of truth.

My father was a writer. You'd have liked him. He used to say that artists use lies to tell the truth while politicans use them to cover the truth up.

Vi Veri Vniversum Vivus Vici
(Pelo Poder da Verdade, Eu, Vivo, Conquistei o Universo)

Em termos cinematográficos, o filme tem recebido boa e merecida aclamação, tendo já alcançado o seu lugar entre os 200 melhores filmes de sempre no IMDB. A realização é, bem possivelmente, o aspecto mais negativo da película. Nota-se a imaturidade de McTeigue, cujo trabalho nos passa indiferente. Certo que pegou o touro pelos cornos, ao começar uma carreira com um projecto desta envergadura, e, desse ponto de vista, há que realçar a forma como se aguentou. Um ou outro plano é, de facto, bem apanhado. Estou a pensar particularmente no renascimento espiritual de Evey. A fotografia, a cargo de Adrian Biddle, opressiva e incomodativa a princípio, restringindo-se a uma paleta de negros e vermelhos, resulta, no entanto, eficazmente, sendo memso um dos pontos mais laudatórias do filme. A banda sonora surpreendeu-me, mas não tanto da parte de Dario Marianelli (compositor de Orgulho & Preconceito, justamente nomeado para Óscar), mas muito mais pela música não-original, quer clássicos, como a epíca Abertura 1812 de Tchaikovsky - cujo uso, em termos de relação imagem/som, exclusivamente, pode ser, sem grande erro, equiparado ao da Nona na Laranja Mecânica ou da Cavalgada das Valquírias em Apocalypse Now - ou a Quinta de Beethoven (os fãs de Beethoven saberão por decerto que as notas introdutórias da sinfonia formam, em código Morse, a letra V), quer graças à recuperação de algumas baladas dos anos 50, como Cry Me a River. Os efeitos especiais, vindos da equipa de Joel Silver, são, obviamente, ou não tivessem os Wachowski elevado o patamar nesta área, da mais requintada qualidade bem como as coreografias das lutas. Desenganem-se porém os que vierem em busca de um filme de acção, mesmo que incentivados pelo trailer. A interpretação de Natalie Portman é madura e profissional e exigente pois, como é já lugar-comum, ela teve de rapar o cabelo para V For Vendetta.

Porém, a grande vitória do filme é, par a par com a poderosa narrativa, a personagem de V. V é, simplesmente, uma das mais belas personagens da história do cinema, das mais carismáticas e apaixonantes. E, a causa total disso, é Hugo Weaving, que divinamente veio substituir no papel James Purefoy, ao que consta, porque este não conseguiria utilizar a máscara ao longo de todas as filmagens. Só um actor da craveira imensa como é a de Weaving conseguiria insuflar uma tal vida a uma personagem principal que nunca depõe a sua máscara. A forma como ele pronuncia cada frase, as modulações da sua voz, os gestos, os tiques, os movimentos: em tudo pôs Hugo a sua arte e compôs um dos mais fantásticos papéis da sétima arte a que ninguém sai impune.

O filme não é perfeito, mas é poderoso. 5 estrelas. V estrelas.

sexta-feira, abril 07, 2006

Moleskines §3: Saturno Devorando o Seu Filho, de Goya

Férias nomáticas! Tanta coisa para fazer sem ser que quer que se faça! Tanto encargo deixado para o último tempo, para o Tempo (porque só é Tempo, assim escrito, com maiúscula, aquele que é livre). Na verdade, estar a escrever aqui é uma forma de libertação. Tenho uma lista pendurada no placar com 27 pontos a cumprir e, finda uma semana de férias, ainda só risquei um. Tanta parvoíce que acumulamos! No fundo, estou, como dizia Álvaro de Campos, cansadíssimo íssimo íssimo íssimo... Saturno, Cronos, Tempo!: pára de devorar os teus filhos!

segunda-feira, abril 03, 2006

Moleskines §2: Memória

Erguer um concerto é pesado, mas as coisas pesadas são também as mais ricas - porque muito, carregadas. Montar todo um espectáculo exige um involvimento profundo, uma dedicação de oferta, uma dádiva gratuita para quem assistirá. Erguer andaimes, desenrolar panos, varrer carpetes, ligar cabos, testar som, dispor, conveniente, a iluminação: tudo isso, hercúleo, se junta para fabricar, amálgama de alquimista, uma pedra filosofal de um concerto. Mas quando a obra nasce, esquece-se a mãe. E quantos não admiraram a criança!
Os ExploGen (www.explogenforum.web.pt) conseguiram mais uma vez levar a sua mensagem. Mas só se leva o que se vive - e foi uma prova de unidade toda a preparação deste espectáculo: e uma prova bem superada. As novas músicas envolveram todos, nomeadamente o finalíssimo e incrível - quem sabe, a melhor música de sempre até ao presente (estranho sempre que se resume a uma coisa que quando se afirma já é passada, pois quando digo presente, o que disse é sempre - num sempre este correcto - já passado)? - Happy Ever After. Obrigado: Luis, Adrian, Jota, Teclas!
* * *
Três dias passados no campo. O mundo devia ser um campo grande - a cidade constituiu-se, inevitavelmente, como um retrocesso humano. No ermo de uma grande floresta, corria a cadela e o cãozinho pequenino atrás dela, por entre o laranjal e a erva verde orvalhada. Uma cerca separava duas propriedades. Um nevoeiro de trunda mediterrânea assolava o local. Um sol bocejava em intermitências de claridade. E, constantemente, como fundo, os pássaros, chilreando. Quem ali estava era outro eu, ou o meu outro eu ficou cá quando para lá parti. Ali, não havia responsabilidade senão o presente e o instante imediato e próximo. Trabalhei como poucas vezes trabalhei na vida: o meu trabalho tinha um sentido. Era constante, com a regularidade de um relógio, mas com toda a vontade e energia que faltam à máquina: e por isso o meu labor era humano - porque querido. E, porque assim, vigoroso, com a convicção com que se afirma, em credo, a filosofia de existência. Aquela terra merece bem o epíteto de centro do mundo: ali reside o que o homem, primitivamente, foi - ligado, umbigo, cordão umbilical, à Terra Mãe, ao Irmão Homem, ao Pai Céu.