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quinta-feira, maio 17, 2007

Primeira Curtada §2: Estória


Metáfora:
Quando eu era pequeno, existia um cinema na cidade sem cinema. Na praça jardinada confrontada com a Câmara, havia uma papelaria num edifício que tinha uma entrada. Aí, guardavam cá fora cartazes de filmes. E as pessoas achavam muito estranho que eu lhes dissesse que havia um cinema, que havia, que havia, havia, na cidade onde não. Quando cresci, descobri que era um videoclube. (talvez por isso eu não frequente videoclubes).

Mitologia:
Acredito que fui ver a Pocahontas ao cinema na Covilhã. Ninguém tem memórias disso, muito menos eu. Havia uma parede branca-creme numa subida que seria a fachada do cinema: só que esse cinema nunca existiu. Se eu fui ver a Pocahontas ao cinema, porque tenho o VHS?


Dúvida [Newton/Génesis]:
Um dia, se fui pequeno, vi umas imagens de olhos fechados. Do céu caía uma maçã. Havia uma rapariga também. Era um mercado como uma feira do livro e as bancas estendiam-se paralelas. A cidade tinha a cor de ser cinzenta e a idade de ser barroca. A maçã caiu num monte das irmãs. A rapariga colheu-a e levou-a à boca indiscriminadamente, passado já muito o tempo dela de três anos em que todos levamos a todas bocas todas as coisas na ânsia literal de devorar o mundo. Ela tinha, assumâmo-lo, dezoito anos. Trincar a maçã tornava-a um vampiro. Ia mordendo todas as pessoas no caminho como quem tira inglês o seu chapéu de coco e pergunta o audiudú e as ruas ficavam despovoadas, povoadas de corpos mortos. Por fim, numa rua calcetada, ao lado de uma estrada onde não percebo porque haviam de passar carros que não passavam - por isso, porque estava lá a estrada?, encontrava o namorado. O coração tremia-lhe, como corresse já sangue demais, sangue bebido, que o coração não conseguisse conter, como não se contém uma alegria muito grande. Saudou-o com um beijo como um ponto de exclamação. Tomou-se ele de um desejo e agarrou-a com emoção redobrada com a que dobram os sinos. O amplexo furioso/e o amor é uma virtude de canibalismo humano. Ele sopra-lhe ao pescoço/ela morde-lhe ao pescoço. O corpo cai como uma marionete. Uma lágrima de um olho corre, corre como um fio de sangue da boca.
Nunca soube e hoje não sei, se isto é um sonho meu ou um filme que vi quando era pequeno e os meus pais não souberam que eu o tivesse visto ou que eu era pequeno. Construí-me acreditar que foi um filme, mas, retrospectivamente, o argumento é um pouco fraco.


Trauma:
O meu primeiro VHS foi A Dama e o Vagabundo. Como as crianças da minha idade, fui um mogli e aprendi os valores e as pessoas com as bestas da terra que Walt animava para Disney. Quando me cruzei na rua com um cão, ele começou a ladrar no sítio em que falava e não disse uma palavra e eu não o entendi: assustei-me e fugi. Cheirando-me correr, o cão perseguiu-me e engordei o medo e estendi o passo. O meu pai ao longe gritava-me para parar. Apanhado do cão e do cansaço, segui a ordem e o meu pai eventualmente enxotou o cão como uma vaca. Todos os outros animais, quando cresci, aprendi dos professores de ciências (que se achavam invariavelmente mais espertos que o Walt Disney) que não falavam - ainda assim, os professores de letras insistiam em ensinar as onomatopeias.
(ainda hoje, guardo do cão a distância que a mulher guarda do génesis da serpente)

Biografia:
O primeiro filme que fui ao cinema ver foi o Hércules, na Covilhã, no Monteverde. Não tive na minha infância nenhum salgueiro que cortaram depois que eu emigrei, porque nunca houve nenhum salgueiro e eu não nasci na serra para emigrar daí e na serra, mesmo que eu nascesse, não nascem salgueiros. Mas depois que eu vi o Hércules, já não há hoje Monteverde: construíram o Feira Nova por cima, não como quem empilha caixas, mas as susbstitui de todo.
*
Ia ao cinema quando ia à praia. Uma vez por ano ia ao cinema. E quando eu dizia mar, confundia as duas realidades numa só e poupava o trabalho de dizer mais palavras. Ver um filme era crescer: a sala era no casino da Figueira. Entrávamos adentro do saloon (era só o hall, mas na altura eu não sabia e era feliz porque não sabia e em vez de saber imaginava, como remédio e remendo da ignorância) como fôramos muito adultos e engravatados e soubéssemos jogar poker, tudo não passasse de um western. Recordo de lá dois filmes, na sala para crianças (nunca cheguei a conhecer a outra, a papá, porque morreu e enterraram-na e os meus avós, preocupados comigo, não me deixaram ir ao funeral que não é coisa para tu veres, que é muito triste e soturna, o que é soturna, não interessa): Shreck e Astérix & Obélix, os uns dos dois. Quando ia para a praia de carro, passávamos na rua entre o mercado e o jardim à frente do tribunal e na parede havia um pequeno rebordo de vidro onde semanalmente mudavam o affiche do filme em cartaz, às sextas, quando o cinema ainda era às sextas-feiras (um dia, quando for grande, vou criar um ciclo de filmes na Gulbenkian com este nome). Hoje, o casino expulsou de si, como fosse alguma impureza, o cinema, desde que abriram salas no jumbo. Quando os pássaros no regaço da janela me contaram a notícia, entristeci-me e considerei enfim que o casino nunca amara o cinema, somente o tolerara, desconfortavelmente, como um sofá que foi um erro mas já custou muito dinheiro para ser devolvido e aceitamos. A dor que ainda hoje guardo, secreta, dessa mentira maior da minha infância.!
*


Aqui em casa somos três se eu não contar: o meu pai, a minha mãe e o meu irmão mais novo. Fomos, que eu me possa lembrar, quatro vezes os quatro ao cinema: A.I. - Inteligência Artificial, Harry Potter, À Procura de Nemo e Tróia. O meu pai é um cientista falhado, que por isso se tornou professor de direito. Ele tem uma biblioteca muito grande e, quando eu era pequeno, ajudava-o a catalogar as fotocópias no escritório estreito dele com rótulos que eram travalínguas (ex.: transplantações). Eu ia para a escola repeti-los e o professor, que não sabia o que significavam, chamou a minha mãe porque eu andava a chamar asneiras aos meninos. Eu gostava do Spielberg por causa do Hook que eu não sabia que era Hook e lhe chamava Peter Pan II. (havia, aliás, muitas coisas desse filme que eu não sabia, mas, coitado!, que havia de fazer senão fazer de que sabia?: só há um mês atrás, por exemplo, entendi finalmente a piada dos berlindes). O meu pai, que construía então um frankenstein chamado doutoramento, interessou-se pela premissa de A.I. e levou-nos ao Fórum de Aveiro que era, então, o sítio mais próximo com maior oferta cinematográfica. Fiquei amigo de David e prometi tratar-lhe do urso enquanto ele partia para a aventura de ser humano. As pessoas na rua ficavam a princípio encantadas, como o urso se tratasse de um sapo-príncipe, mas ao assistirem à sua voz adulta desencatavam-se do teddy. Eu gostava dele, ainda assim - eu gostava dele por ser assim. Um dia, ao passar no Cacuacu, o estranho quiosque verde plantado no centro da avenida da minha antiga casa, o urso apontou-me para uma revista magra nas páginas e no preço, Cinemania. A capa tinha o David e, como ambos ansiosos de mais notícias dele, corremos ao meu pai a pedir o dinheiro para o magazine. Pela primeira vez, eu li, com o teddy, cinema: os meus pés ainda não chegavam, sentado na cadeira, ao chão, e eu balançava-os como tivesse uma rapariga num baloiço num campo. Era grande o meu interesse de erudito; lia a revista muito compenetrado. A contracapa, porém, confundiu-me, a mim e ao urso, o meu tigre'hobbes: uns olhos emergindo do escuro, uma mão transversal, nela um anel, e uma legenda sinistra, anunciando o começo da aventura, e o nome O Senhor dos Anéis. Arrumei na gaveta do armário a revista e na gaveta da memória a contracapa. A mulher das limpezas, como sempre, na sua boa vontade, desarruma tudo e a mulher das limpezas foi o Público. Comentando a hype em torno da estreia lisboeta do filme, a jornalista relatava gigantes na multidão que erguiam, ditadores, a mão e o dedo apontando o cartaz erecto e secreto da contracapa reproduzindo. E as duas torres proclamavam: «That's the real thing.» Amuei: o henrique feiticeiro não devia ser assim subvalorizado. Vinquei muito o meu lábio como para fazer muito medo aos colossos da blasfémia: eles aguardaram.
*
Cristo fundou uma igreja e um cinema, que do seu nome bebeu Messias. E como a Igreja caiu em ruínas, assim a casa-paraíso tombou, como se caíssa das escadas, na decrepitude da idade: pena de não haver lares e manicómios para os edifícios! Porém, dita das coisas reerguerem-se. E como a passos leves, como quem vai assaltar qualquer soalho, se restabelece, mais firme que antes, a planta de Cristo (que se convém chamar lírio), assim o Messias, que era carpinteiro, trabalhou nas obras de recrescer a sala de espectáculos olvidada pelos homens e pelo tempo. Por fim, pelo final de dois mil e um, o presidente da câmara (que é como o presidente da república, mas para regiões mais pequeninas: só servem ambos para inaugurar) partiu uma garrafa de champanhe contra as paredes amarelas do sítio. Houve um concerto muito grande e o cinema passou a ser às sextas, sábados, domingos, segundas e, às quartas, os filmes negros do apartheid cinematográfico: a produção independente. Hoje, foram todos colonizados - e já não há quartas-feiras (em compensação, criaram mais uma sessão, à quinta). O cinema-montanha, montanhas de cinema, viera enfim ter a maomé-eu, quando maomé não tinha fundamentalistas nem campos de futebol-execução.
*
Eu desconfiava muito. Mas, de educação cristã, aprendi a não ter prejuízos, que são juízos feitos antes - sacudi o medo, como se fosse um cão todo salpicado de água, e pedi o primeiro volume da trilogia wagneriana porque tem anéis ao meu pai pelo natal. O livro, esgotado, transformou-se, para consolação - e futura bendição, no Hobbit (nome estranho! que será? mistura de reacção de espanto e curiosidade com a agridoce sensação de desapontamento por não ser a coisa que se esperou por godot). Estava na Covilhã - e ainda dizem que não há coincidências. Arranquei os olhos e colei no seu lugar, como se recortasse de uma revista, duas línguas - e assim não via, lia duas vezes ou uma só vez mas duas vezes mais depressa. Fechei o livro: e aprendera o significado da palavra épico. Puxei pela borda da saia da minha mãe, com os meus dedos pequenos e redondos, e pedi um gelado que se chamava cinema. O meu pai correu a buscar o jornal e eu sentei-me para embalarmos o jornal os dois: como um pêndulo, as páginas corriam, virando-se acrobáticas. Ali! O suplemento local. Era nas duas últimas páginas, mas era não ser. Retirei-me, semi-desconsolado, no exercício da virtude da paciência e da espera. Voltamos de carro, porque a pé, entre as duas margens de portugal, cansava e, acima de tudo, íamos carregados, e, sem burro, não era fácil aportar as coisas. Na Mealhada, trobetaram como um arrail por el-rei a data das bodas (bodas, porque havia um anel, como o dos noivos, e havia noivos, ainda que eu não soubesse bem ainda com quem me casava): 9 de Janeiro. O primeiro milagre do Messias foi no casamento de Canaã. Canaã era o nome da sala de cinema. Naquele dia, no altar que não havia, tive o espanto de ser filósofo em ser poeta de ver. E amei, entregue totalmente como uma rapariga indiana de doze anos, o cinema: e o Messias desfechou o cego.
*
Esperando o tempo em que o tempo que corre caia como maratona e morra, de-correu um ano. Voltei-me a sentar na sala, como se nunca tivesse saído de lá. E fiz duas torres, e duas torres eram dois postes, e dois postes eram uma baliza: queria ser realizador de cinema, fruto último da linha que de king kong produzira pedro, e de pedro me criara. Como neo-eureka: Schöpfung!


O Murro:
O dia a seguir ia ser assim de modo impróprio especial, que foi especial antes de ser o dia. O meu pai ia matar o frankenstein e eu ia-me casar comigo própio na senda da cabala aniversária. Há uma solidão premente que se acomoda, sacundindo antes a almofada onde se vai sentar, junto a nós, na véspera espera do dia grande, quase como esperássemos um comboio e inventássemos o jogo de tirarmos fotos um ao outro para passarmos o tempo atrás da máquina da coca-cola que está avariada mas tudo nesta estação também está a cair e tem de se pagar para ir à casa-de-banho são uns ladrões. Não tinha amigos que me organizassem uma festa de despedida de solteiro, pelo que subi ao sofá para ir à estante escolher um dvd para ler. Lembrei-me de uma provocação e de uma curiosidade e tirei o dvd novo, comprado há pouco, a(l)gemeado de outros dois. E assim, ergui Dogville. Não fui interrompido, porque estavam todos muito ocupados a rodos com o frankenstein que ainda insistia em viver (como aquelas pessoas das melhoras da morte que desempalidecem nas três vésperas de não terem amanhã). O filme deu-me um murro e eu chorei, porque mãe aquele moço bateu-me e tu não dizes nada. E eu tive de ligar à minha irmã, que não nasceu do meu pai nem da minha mã', e que nunca vira o filme e nunca levara o murro, a narrar-lhe em solilóquio a solidão e a experiência. E ela na sua sempiterna paciência, escutou-me e escoltou-me, a mim, desfalecido perante o horror humano, como uma pietá o cadáver de um cristo. Mundo-cão.


A Fundação:
Não sei se já tinha começado a morrer, nessa altura. Porém, já tinha sido, por certo, internado. Nesse período da minha vida, tive uma só enfermeira, daquelas jovens, a quem eu, por não ser velho, não mandava piropos e ela, por eu não ser soldado, não queria namorar: por isso nos compreendemos - porque nenhum queria nada do outro, senão a amizade. Quando o sol batia pelo meio-dia na janela, entrava ela, única visitante dos meus dias de doente. Os raios incidiam pelas frestas da persiana, e uma luz etérea emoldurava o quadro da nossa composição. Zelosamente, ela começava por substituir as flores na vasa da mesinha de cabeceira metálica branca, ainda que as flores fossem sempre as mesmas, lírios violeta: ainda assim, o verbo substituir pode-se, com correcção criativa, aplicar. Ela puxava a cadeira de madeira para o sopé de mim, e contava-me coisas consoladoras. Um dia disse-me que eu tinha uma camisola muito bonita, uma camisola azul clara, e eu senti-me o rapaz a quem o avô ensinou a pedalar na bicicleta na quinta grande e verde da infância fabricada. Quando hoje visto a camisola, não sei se hoje ainda visto a camisola, não me lembro da camisola no armário: a camisola passou para o meu irmão. Lembro-me de ser bonito no tempo em que eu vestia a camisola azul clara. Todas as raparigas, que eram Ela, confessavam-me o céu no peito e eu acreditava tomé na fé que me diziam sem nuvens. Hoje, porque não tenho beleza, fugiu-me das mãos também a camisola como quem desliga a luz de um quarto onde não está ninguém. Mas nessoutra altura, eu era ariano na ironia dela ser mulata. Ela praticava o curso de enfermagem de alma na esteira da minha cama; escoltava-me as mãos, escondia-me os medos e adormecia-me os sonhos quando acordava a meio de pesadelos em que o monstro era eu. Eu tinha eu tenho muito medo. E era grande na falta de confiança própria, um alexandre magno. Eu andava, já então, na fisioterapia da alma. Mas a minha alma teimava mole porque era dura: ela tentava corrigi-la e borratava a folha de teste do meu coração e ficava muito feio, tudo riscado e com má apresentação e os professores descontam. A minha alma era uma grande pedra de carvão: e como todas as pedras era casmurra em mudar de forma e estado, e como todo o carvão, ardia - e no arder, se desfazia. E as duas coisas coabitavam com a naturalidade de surgir um arco-íris quando faz chuva ao sol.


Um dia, porém, ela não me trouxe flores e não as cultivou no vaso à minha cabeceira. E eu perguntei-lhe, assustado «Mulher, porque te esqueceste das flores?». Ela voltou o seu rosto para mim, sorriu, e abriu-me as mãos dela: e no lugar dos estigmas, estavam flores. Levou a mão esquerda ao peito esquerdo, tirou a veste, mostrou o seio: e no meio, onde a lança a trespassara, florescia uma magnólia magnífica. E eu percebi finalmente que ela não vestia de branco porque fosse enfermeira, mas porque eram os lençóis do leito da sua convalescência. E imperatriz senhora ordenou-me: «Levanta-te, pega na tua enxerga e anda!». E eu, envolto ainda na mortalha (que só tombaria alguns anos-semanas depois), ergui-me e compactuei e enterrei a espada que guardava debaixo da almofada em mim mesmo e de cesariana pari, nado morto, a raposa espartana do medo que me comia debaixo da minha capa que deixava entrar o frio na mesma. A raposa era feia e era um dragão e acertei-a no coração. Ela deu-me a mão no tempo inicial: sabia que eu custava-me ainda de pé. A cama ficou lá, e nela estendida a minha cobardia, até ao dia em que a for render, até ao dia em que me render a ela. Um fantasma nunca morre.

Variedades:
A minha promiscuidade mental diletante escreveu o meu nome na lista de passageiros de todos os navios do cais e eu ainda não decidi em qual vou embarcar, porque já partiram todos.


Moralidade & Resumo:
Quando saímos da Arquitectura - há aí um certo claustro, que os monges, depois da expulsão da república, largaram de cuidar e apadreceu até ser verde. No meu calão imaginário, chamo-lhe central park, porquanto fica no centro do edifício. A Esfinge de Olhos Azuis tem enigmas para um Édipo. Escuto a rapariga, que guarda uma cidade e uma mulher. Ela promente-me vitória e aliacia-me: a Esfinge de Olhos Azuis praticou cardiomancia, e sabe-me o sonho e o amor. Mas, ai!, ela desconhece-me o temor, que me cala os lábios na presença das mulheres que amei sozinho. Eu já fui, ah!, em tempos (lembras-te, criança em mim, criança sou, quando ainda não éramos e éramos infinito pela inexistência?), um grande Alexandre, nos monólogos de Hamlets que converso comigo. Mas Alexandre ainda construiu um império, e os dois Hamlets ainda mataram, um Polónio, o outro o Tio. Eu concebo tudo isso - e na minha imaginação já fui até, num breve lapso de sonho, feliz - mas invariavelmente quando acordo não tenho ao meu lado uma flor azul. Os meus sonhos são as amadas dos contos de Poe enterradas vivas. Porque eu, ai eu!, nunca firmo nada, do medo de me ferir. Tenho uma lança na areia da praia deserta e não cacei a besta com medo de cravar a lança em mim e morrer. Morri na mesma - mas de fome. E a Esfinge de Olhos Azuis, quando me fazia a proposta, recebeu de mim (que, no meu íntimo, temia já ficar cego) a negação que é só a fuga. Eu desci as escadas depressa, envergonhado de mentir a verdade.

*
A cara ardia. A deusa-jovem dera-me uma bofetada como um murro. O rosto de perfil pelas leis cinéticas do embate e o lado e a orelha consternados de vermelho. Hebe não me serviu à mesa, na arrogância de uma matrona. Erguendo o cálix santo gral, desvelando a visão dele, borbulhante do leite de hera, sua mãe, que ela levava ao marido (que sou só eu, noutra encarnação), proclamou, solene, as palavras: «Não beberás deste copo enquanto não o quiseres.» De joelhos, ante a visão irada da mulher, respondi religioso: «Meu Pai, se é possível, afaste-se de mim este cálice. No entanto, seja como eu quero.» E eu bebi o cálice e Hebe mandou-me a tebas de volta, ela que sabia que tebas existia. E eu peguei na minha lança na praia e espetei-a no coração da esfinge que soltou um urro e fugiu para o egipto. Num momento de lucidez de ícaro entendera que édipo ficar cego era um preço menor de ver o sol, por paradoxal que pareça. Deram-me a mão de minha mãe, que é a rainha: e a aliança foi reconhecida pelas testemunhas. Um peso impende sobre mim: fazer-lhe filhos deste casamento. Temo de mim para mim a prole deficiente do incesto. Que descendência empresto? Só os irmãos que se Caim. Eu sou a minha própria descendência e a minha obra é-me afim: 'homicídio incestuoso! Porque é que temos de nos matar sempre? Deus, ai Deus!, livrai-nos de ter de haver uma antígona! No fio da sua inexistência, trapezisto a minha esperança. Não me a tires, Senhor!: é tudo o que tenho contra o medo!.; Não me atires, Senhor: é disso que tenho medo!

17-2/17-5 (2007)

domingo, abril 29, 2007

And Viddy Films I Would §11: Quinta Interrupção da Despedida Para Anúncio

Norman McLaren no TAGV
Dias 14, 15 e 16 de Maio, 2007 (21:30)
Em Baixo: "Neighbours" (1952) (8'10'')

segunda-feira, abril 16, 2007

And Viddy Films I Would §10: "300", de Zack Snyder (2007)

O seguinte texto é uma versão preliminar de um artigo para o Boletim de Estudos Clássicos. Está feito para um público específico (o da revista, ou seja, os classicistas), mas houve uma certa preocupação de, no geral, fazer um texto aberto a qualquer leitor. Peço desculpa por esta contigência e pelo tamanho da review, que aborda vários pontos. Optei por não esperar pela versão final do artigo, corrigida pela minha professora, para reactivar o re-bobina no qual há algum tempo que não posto, para grande pena minha, pois tenho visto filmes que bem mereceriam antes o espaço e a atenção que 300 lhes está a roubar.

300, segunda obra do realizador Zack Snyder, que se estreou com O Renascer dos Mortos (2004) – aclamado remake do filme homónimo de George Romero – revisita a Batalha de Termópilas em jeito de hagiografia de Leónidas e dos seus guerreiros com base na banda desenhada de 1998 de Frank Miller, um dos mais originais artistas da nona arte. O filme, blockbuster fora de época, rapidamente se tornou num dos mais vistos este ano nos EUA. Desde a sua apresentação no Festival de Berlim, 300 tem sido alvo de polémicas leituras políticas. O Irão classificou o filme como propaganda americana, numa altura de reconhecida tensão diplomática entre os dois países. O próprio presidente, Mahmoud Ahmadinejad, criticou a representação dos Persas na película.

Este género de ataques, lamentavelmente, não é novo. Recordamos os casos de Apocalypto (2007), de Mel Gibson, ou Alexandre (2004), de Oliver Stone. Subjacente a todos eles encontramos um anacrónico nacionalismo cego da parte dos queixosos e uma incapacidade de compreender os pressupostos do ofício artístico. Concedemos, eventualmente, que 300 seja pró-ocidental, na forma como, fiel à mentalidade helénica, transpôs para o ecrã a firme oposição entre gregos e bárbaros. Porém, que se procure fazer equivaler Leónidas a Bush e os espartanos aos marines é simplesmente risível. A este propósito, seja-nos permitido citar as palavras de Vasco Baptista Marques, crítico do Expresso: “Que alguém acredite que este paroxismo de boçalidade faça parte de uma guerra psicológica leva-me a crer que os EUA estão perto de conquistar o mundo pela estupidez”.

Outros, contudo, têm visto em 300 uma peça de propaganda fascista. Se Esparta era, a nosso ver, um estado protototalitário – mau grado o anacronismo que o termo possa conter, de forma alguma reconhecemos no filme uma apologia das práticas eugenistas da Lacónia ou da suposta superioridade da inventada raça ariana. Vários críticos têm evocado nos seus textos o díptico Olympia (1938), da amaldiçoada Leni Riefensthal, esquecendo que a inspiração directa da jovem realizadora para a sua sinfonia de corpos em Berlim foi o ideal grego da kalokagathia. Os próprios alemães reconhecem que 300 apenas retrata o modus vivendi espartano, sendo exagerado entendê-lo como propaganda neonazi. O filme é puro entertainment inócuo: 300 não é V de Vingança (2005).

O debate em torno destas questões mediáticas tem, em parte da crítica, substituído a discussão sobre o mérito cinematográfico da obra. Esta, na esteira de experiências como Sky Captain e o Mundo de Amanhã (2004), de Kerry Conran, ou Sin City (2005), de Roberto Rodriguez, impõe-se como acontecimento cinematográfico pela construção a computador da totalidade dos cenários, procurando, por esse meio, capturar o visual tão próprio da banda desenhada mãe no grande ecrã. Tal técnica, não sendo já inédita, não pode, contudo, deixar de gerar uma certa expectativa e curiosidade no cinéfilo. Vinheta por vinheta, o novela gráfica de Miller é decalcada e, graças ao hercúleo trabalho do departamento de efeitos especiais, constrói-se um ambiente que Zack Snyder acertadamente definiu como “surreal”, com um tratamento heterodoxo da cor e da imagem.

É inevitável traçar uma comparação entre 300 e Sin City – igual técnica, mesmo autor. Contudo, o primeiro sai claramente desfavorecido quando comparado com o fresco e violento film noir de Rodriguez, possivelmente o melhor que nos foi concedido ver no seu ano. Especulamos que tal se justificará, por uma lado, pela mais óbvia diferença entre ambas as películas, a saber, a paleta cromática – Sin City é, pela própria exigência do género, a preto e branco; por outro, pela natureza do argumento. De facto, satisfeita a natural curiosidade pela sua inovação plástica, 300 esgota-se. O filme conserva uma certa faceta épica, mas reduz-se, na sua essência, a um mero action flick. Dos personagens, espera-se somente que lutem em coreografias sanguinolentas, herdeiras de Matrix – registe-se o ambundante recurso ao bullet time ao som de faixas de industrial rock. Não obstante os dramas menores que Zack Snyder criou para a versão cinematográfica da opus de Miller, estes limitam-se a abrandar a acção, sem gerarem no espectador verdadeiro interesse pelo destino das personagens. Neste aspecto, a banda desenhada capturava mais o drama interno de Leónidas.

A Gerald Butler, actor quase-revelação, reconheça-se o mérito de conferir uma certa espessura psicológica a Leónidas, encarnando bem a figura de Miller na obra original. Zack Snyder merece menção pela sua ousadia em avançar com um projecto desta natureza, mas o seu mérito enquanto realizador dissolve-se em parte por detrás das vinhetas da novela gráfica das quais se serviu como storyboard, sem que, por isso, juntasse, como fez Rodriguez em Sin City, o nome de Miller ao seu nos créditos. Os verdadeiros elogios devem recair sobre os diversos departamentos responsáveis pela pós-produção do filme. Para além da louvada secção de efeitos especiais, especial destaque para o design de som. Snyder recomenda apropriadamente um alto volume nas projecções.

Certos críticos têm afirmado que 300 redefiniu os peplums, mas trata-se de uma hipérbole dizê-lo. Pelo contrário, a película, por exemplo, pede emprestado a Gladiador (2000), de Ridley Scott – o verdadeiro refundador do género épico-histórico de fundo greco-romano – o conhecido motivo da seara desse filme. Inclusive em certos trechos da banda sonora tem-se reconhecido linhas melódicas de Hans Zimmer para Gladiador. Será, porventura, mais verdadeiro, considerar, modestamente, 300 um filme interessante enquanto objecto estético que, proporcionando aos que isso procuram acção de qualidade, não consegue, contudo, existir para lá de um primeiro visionamento. Exercício de estilo, encontra-se desprovido de substância maior. Num projecto cujo único nome de peso era Frank Miller convém pois que fique explícito: 300 não é Sin City.

O filme, ingratamente, só pode ser, de facto, comentado em comparação, por um lado, com a película de Rodriguez em que se filia, por outro, com a obra de Miller que adapta. Quanto a esta última, confesse-se que 300 é de sobremaneira fiel à BD. O maior desvio a esta consiste ainda em todo um enredo menor envolvendo a esposa de Leónidas, Gorgo, e uma câmara indistinta que é a tempos a Gerusia e a Apella. Gorgo procura obter junto de um dos seus membros uma audiência perante o Conselho – designaremos assim, neutralmente, tal órgão – para convencer os espartanos a enviarem reforços a seu esposo. A Assembleia, porém, é controlada por Theron, político ambicioso. O confronto final entre este e a rainha de Esparta constói-se, em jeito de clímax, paralelamente ao último dia da Batalha de Termópilas. Este enredo com Gorgo visa apenas conferir maior protagonismo à personagem feminina e introduzir, desse modo, uma intriga amorosa, segundo os padrões do politicamente correcto de Hollywood, que, com este estratagema, procura atrair o público feminino. Nisto se confirma o carácter apolítico de 300, obediente ao establishment, o qual é, por definição, avesso à controvérsia e à polémica. A mesma técnica observamos, por exemplo, n'O Senhor dos Anéis, onde também a principal alteração relativamente à obra de Tolkien foi o desenvolvimento da romance entre Aragon e Arwen.

De resto, em 300, refira-se ainda, como alterações a nível do argumento, o drama menor do capitão que vê o filho tombar, decapitado, em batalha, e a introdução de três criaturas fantásticas, a saber, um gigante disforme membro dos Imortais, um rinoceronte excepcionalmente grande e um carrasco mutante semihumano. Mencione-se igualmente o aparecimento de uma espécie de granadas avant-la-lettre e uma curta cena a caminho de Termópilas, em que o exército passa por uma cidade arrasada por um grupo de batedores. São, a bem dizer, acrescentos inócuos, que em nada traem o espírito da BD – de resto, Frank Miller foi consultor executivo do filme. Aliás, as melhores falas e sequências são precisamente as mais fiéis à novela gráfica, como aquela para que remete o título do nosso artigo – uma das nossas preferidas – inteligentemente adaptada para a tela.

Esta semelhança com a obra original significa que 300 herda directamente dela tanto as suas potencialidades para o classicista enquanto objecto didáctico, como também os vários erros históricos, estes, diríamos, mais a nível da representação do mundo antigo e seus personagens do que propriamente no que respeita à sucessão de eventos, em que Miller e Snyer se mantêm, grosso modo, próximos de Heródoto. O realizador, inclusive, exageradamente, chegou a afirmar que noventa por cento do filme era historicamente correcto.

Particularmente feliz é o retrato da agogê, nos seus múltiplos pormenores. Em Esparta, esta culminava num ritual de passagem – a krypteia – em que os melhores jovens, em pequenos grupos, eram enviados para os campos a fim de, pela calada, assassinarem alguns hilotas (Plu. Lyc. 28, 3-7). Necessariamente, numa narrativa dualista que apresenta os espartanos como bastião único da liberdade contra a tirania persa, a krypteia é representada em moldes diferentes – não há, de resto, em todo o filme, qualquer menção à hilotia. Assim, em 300, Leónidas parte solitário para defrontar um temível lobo, regressando, em evocação de Hércules, coberto da pele da besta e sendo aclamado rei. Ora Heródoto (7.204) diz-nos que Leónidas só subiu ao trono após a morte do irmão, Cleómenes I. Todo um conjunto de anedotas e ditos espartanos, naquela sua apaixonante ironia lacónica, encontram o seu espaço no filme, com especial destaque para o inteligente reaproveitamento, aquando do diálogo com o enviado persa, de uma resposta de Gorgo transcrita por Plutarco (Lyc. 14). É igualmente curioso notar como 300, explicitamente, por meio da narração de Dílio, acusa Xerxes de hybris, recuperando a “teologia” esquiliana presente n' Os Persas. O maior valor da fita para o classicista residirá ainda, porém, na materialização perfeita do espírito espartano que 300 tão acutilantemente fixada, com as suas vincadas noções de dever, coragem e sacrifício. A tagline do filme exclamava apropriadamente: “Prepare For Glory!”.

Por outro lado, há, todavia, vários erros, e não apenas históricos. Assim, convém esclarecer o espectador comum que Termópilas não se traduz, como nas legendas portuguesas, por «Portas do Inferno», mas «Portas Quentes» (como no original, «Hot Gates»). Para tristeza de alguns, mais inflamados de espanto com o facto falso, os espartanos não combatiam desprotegidos, mas armados de hoplon. Saliente-se, porém, a excelente representação da técnica da hoplitia e da indumentária. Sendo verdade que os 300 tombaram honradamente sobre as fatais flechas persas, aguentando o desfiladeiro (quase) solitários, foram apoiados por um exército maior que reunia não só arcádios como gregos de outras póleis (H. 7.202), isto antes da traição de Efialtes – o qual, não era, evidentemente, um corcunda disforme, sendo apenas este um artifício narrativo que permite abordar a questão do eugenismo espartano.

Ao contrário da reconstituição digital, Esparta não era uma cidade perfeitamente organizada, mas um sinecismo nunca completado de quatro (mais uma) localidades (Th. 1.10.2). Os éforos, obviamente, não habitavam um remoto templo no topo de uma montanha nem constituíam uma casta sacerdotal de leprosos, de forma alguma explorando sexualmente uma oráculo que Esparta nunca conheceu. Podemos, contudo, rebuscadamente, tentar ler na resposta negativa da oráculo um eco da posição de Delfos. Porém, é rigoroso o retrato dos éforos como encarnações humanas da Lei, superiores mesmo ao rei. Outras instituições políticas espartanas são retratadas incorrectamente. Assim, particularmente confuso é o Conselho («Council», no original) a que Gorgo se dirige. De facto, tal órgão, na forma como nos é mostrado, por certo era desconhecido dos espartanos. Se o restrito número de membros e as calvas e cãs de vários dentre eles fariam adivinhar a Gerusia, a presença de outros relativamente novos desmente esta possibilidade, parecendo apontar para a Assembleia (Apella). Esta, porém, deveria reunir todo o corpo de cidadãos espartano, o que, claramente, não sucede na película. O próprio local de reunião da Câmara também, supomos, não deveria ser num edifício em jeito de Cúria do Senado como nos é apresentado, mas antes ao ar livre, como era próprio dos gregos. É interessante verificar como os dois enredos menores introduzidos pelo realizador não resistem a uma análise histórica, pois também o supramencionado drama do pai capitão seria impossível registar-se visto os trezentos terem todos descendentes, e o seu filho morto ainda não conhecera mulher. Fora estas duas alterações, os demais erros são inerentes à própria BD mas, pessoalmente, não nos chocam, porquanto se trata de uma obra de ficção.

Igualmente do lado dos persas se encontram várias incorrecções históricas. Em Termópilas não foram utilizados elefantes ou rinocerentes e o exército persa não continha nas suas fileiras monstros que foram nitidamente acrescentados para aumentar o lado fantástico da acção. Nas palavras de Zack Snyder, Dílio (corresponde ao Aristodemos de Heródoto: 7.229-31), o narrador da história, “is a guy who knows how not to wreck a good story with truth”. O que se destaca do lado dos persas é, precisamente, por um lado, esta anormalidade física, como o exército fora uma daquelas trupes ambulantes da Idade Média que corriam as aldeias a mostrarem os deficientes, e, por outro, o óbvio luxo, a desmedida opulência, apresentadas em jeito quase caricatural, do qual o andrógino Xerxes será o paradigma. Porquê este exagero? Parece-nos que ele reflecte uma visão do Oriente profundamente inscrita na mentalidade ocidental. O ouro era um elemento essencial na caracterização dos persas pelos gregos (cf. Lycurg. Leocr. 108-109). Toda o celeuma em torno desta caracterização nitidamente exagerada revela-se, de novo, infundado, porque nos encontramos perante mais uma reelaboração – neste caso, fortemente estilizada – do estereótipo do persa na ficção ocidental. Mais problemática será proventura a representação dos Persas como, maioritariamente, de cor. Julgamos tratar-se de um artifício para acentuar, uma vez mais, a alteridade dos persas, opondo-os aos “arianos” espartanos. O exagero que preside à representação dos persas como uma bizarra horda demoníaca é, no fundo, o mesmo que justifica a ausência de hoplon na caracterização dos espartanos – procura-se vincar o carácter épico da narrativa.

300, em resumo, apresenta-se como a mais recente manifestação do filão de Termópilas no imaginário colectivo e a confirmação da perpetuidade do episódio. De facto, foi em criança que Miller viu o filme Os 300 Espartanos (1962), de Rudolph Maté, que o inspiraria mais tarde a desenhar e escrever a novela gráfica que, por sua vez, estimulou a criatividade de Zack Snyder. Quem pode adivinhar a continuação desta corrente?


P.S. (póstumo): Não fora o tempo investido no artigo, possivelmente não o teria carregado do re-bobina para o Varanda. Preguiçoso, podia ter gozado o ensejo para pôr a versão final e corrigida do artigo: em vez disso, resolvi eliminar as notas bibliográficas, que, importadas do Wordpress, não funcionavam no Blogger. Se alguém quiser mesmo muito ter o artigo sem falhas e com rodapés, deixe no comentário o peditório.

segunda-feira, março 05, 2007

And Viddy Films I Would §9: "Il Vangelo Secondo Matteo", de Pier Paolo Pasolini (1964)

Não tem sentido fazer mais filmes narrativos sobre Cristo depois de Zeffirelli (1977). Consequentemente, todos os que, desde então, têm procurado essa abordagem, mau grado os artifícios que laborem, caíram. Assim, resta ao realizador duas possibilidades: de um lado, a reelaboração, pela utilização de fontes alternativas, da História (The Last Temptation Of Christ/A Última Tentação de Cristo, de Scorsese (1988) e The Passion Of The Christ/A Paixão de Cristo (2004), de Gibson); do outro, uma abordagem cinematográfica nova e inviolavelmente pessoal. Porque a narratividade da vida de Cristo está esgotada e filmes que a releiam são raros e distam, é tísica a vontade espontânea de ver uma outra variação sobre Cristo. Porém, a película de Pasolini gravita exteriormente a essas falácias banais: e constrói de fundação uma visão nunca vista.

Il Vangelo Secondo Matteo segue fielmente o evangelho homónimo e, todavia, apresenta uma interpretação única e, por isso, distante da insipidez das adaptações murchas narrativas anteriormente criticadas. A película impõe-se como objecto, pela sua plasticidade, o seu carácter visual e estético, diferenciando-a: ela percorre o caminho sagrado e magro - como o caminho dos ricos pelo buraco da agulha que conduz ao reino de deus - que chamámos de terceiro: o da composição material nova da história espiritual velha. Não me interessa, até porque não foi, de modo nenhum, um caracter do filme que se salientasse no meu espírito no decurso do seu visionamento, analisar aqui a representação de Cristo como um proto-marxista. O filme - que, repetimos, copia o evangelho à letra - não pode dizer nada que, em última análise, não estivesse já contido, pelo menos em embrião, no texto-base. As ligações entre o cristianismo primitivo e o comunismo são, além disso, relativamente conhecidas. Centrar a exagese da opus de Pasolini nesse aspecto é, a meu ver, perder o novelo que ariadne deixou a teseu para se guiar no labirinto do minotauro. Por isso, despreocupadamente, como quem arruma um assunto menor e incómodo, como uma dor de cabeça, largo aqui, abandonada numa ilha deserta, essa questão.

Pasolini compôs uma sinfonia de rostos: assim chamarei na escuridão, como quem grita pela mãe, o filme. Uma sinfonia desta natureza assenta, como facilmente se compreende, em dois vértices primeiros: de um lado, uma proliferação abundante, como se fosse uma coelha a dar à luz, de close-ups, grandes planos do rosto e, menos frequentemente, mas não menos significativo ou belo, dos olhos; do outro, uma poderosa expressividade das caras dos actores, que, em elogio das pessoas, confesse-se serem todos amadores: Cristo, e.g., era um estudante de dezanove anos que se encontrara com Pasolini depois de fazer um trabalho sobre os primeiros filmes do realizador. O filme abre com a imagem do rosto de Maria jovem (vide imagem de Margherita Caruso, a actriz, com Pasolini, abaixo).

Maria não diz uma única frase ao longo de todo o filme (só isto, per se, seria o suficiente para tornar Il Vangelo... numa adaptação sui generis do evangelho): Maria diz tudo ao longo do filme. Maria fala pelos olhos tristes, por aquela boca baixa, por aquele rosto grave - e dulce. Caruso é Maria. Todo esse início da metragem é uma orquestração de silêncios, de expressões, de olhares, de subentendidos. Na realidade, não é só Maria a muda (muda porque diz tudo e fica sem nada para dizer), mas também os apóstolos, os quais, se, de cabeça, me recordo, não têm mais que duas a três linhas de diálogo. E, no entanto, os grandes planos dos seus rostos, sempre embasbacados, admiradores - hipnotizados seria o termo certo - ocupam uma parte substancial da película. São homens do povo, longe de qualquer estereótipo de beleza: os actores foram colhidos da gente normal: José era um advogado, Simão Pedro um camionista. Isto confere ao filme, bem como o trabalho de câmara ao jeito do cinema verité, uma impressão de quasi-documentário, como se Pasolini se tivesse passeado pela Palestina (passeou-se, e há até um filme dele disso: Sopralluoghi in Palestina per Il Vangelo Secondo Matteo (1965)) no tempo de Cristo, observador entre os discípulos d'Ele. Simptomático desta perspectiva é a cena da condenação de Cristo por Pilatos, a qual é vista pelos olhos de um dos discípulos, o que reduz Cristo a uma figura menor na tela, obstruído que está pelas cabeças do resto da multidão popular que assiste ao julgamento. A nível de realização, destaque ainda para a diluição espácio-temporal, essencialmente a dois tempos: num primeiro, a sucessão de imagens de Cristo pregando (sempre close-ups do rosto) em que só o cenário, mais ou menos perceptivelmente, se vai alterando (em parte faz lembrar, salvaguardadas as diferenças, aquela cena de Citizen Kane/O Mundo A Seus Pés (1941) em que Kane conversa à mesa do pequeno-almoço com a mulher); num segundo, quando Cristo, em não mais que dois ou três sítios diferentes, em não mais que dois ou três aparentes dias, prega todas as parábolas que Mateus narra no seu texto, confundindo a nossa percepção dos três anos de pregação de Cristo. Estas brincadeiras roçam o filme na anormalidade genial, a bizarria fantástica. Admito-me: quero ver mais Pasolini.

O filme, todavia, enferma, a meu ver, de três tendões de aquiles, um fora do domínio do realizador, contudo. Assim, começando por este último, é nitido a falta de dinheiro de Pasolini: o baixo orçamento é responsável pelas caricaturas grosseiras das armaduras (e os chapéus) romanas ou das roupas (e os chapéus) dos fariseus. Aliás, um observador atento percebe que a cena em que Cristo foi filmado a caminhar sobre a água foi realizada sem recurso a efeitos especiais, ou seja, Pasolini filmou-a - pelo menos assim me pareceu - toda à beira-mar, montando-a, porém, de uma maneira que ilude inteligentemente esse artifício de pé-descalço. Com um budget superior, o filme teria ganhado alguma precisão documental - e já referimos como o filme se aproxima dessa estética. Por outro lado, sou forçado a salientar, pelo lado negativo, dois pormenores: primeiro, o corte abrupto entre muitas das cenas, de que é exemplificativa a sequência final na qual, após Cristo pronunciar a sua última palavra, imediatamente o ecrã se enche com o fine. Estes cortes, quase amadores, não suponho que, eventualmente, não tenham sido propositados - porém, não posso alinhar neles, pela minha sensibilidade pessoal. Perdoem-me os entendidos de cinema: o ignorante não é só ignorante - é agreste de sentidos. Mais consensual parece-me ser a censura da algumas transições (ou a ausência delas) entre as músicas utilizadas: mais uma vez, remeto para uma das cenas finais, a da Ressurreição. A melodia triste e baixa que acompanha o velório de Maria e dos discípulos é interrompida, de forma totalmente abrupta, para dar espaço ao tema festivo que já acompanhara outras cenas antes. Escrito, pouco significará o que escrevo; contudo, um visionador perceberá excessivamente bem o que descrevo. Note-se que não critico as faixas escolhidas, as quais, aliás, são de reconhecida qualidade e acerto, mas antes as transições entre elas, num ou noutro ponto do filme.

Não obstante as imperfeições apontadas neste último parágrafo, Il Vangelo Secondo Matteo constitui-se como uma obra imprescindível, quer pelo milagre que opera na reconversão de um tema tão definhado pelos tempos, quer pela inerente qualidade estética por meio da qual o consegue. Cruza-se a mensagem de Deus e a arte do Homem: a obra-prima, afrodite da espuma, emerge.

segunda-feira, fevereiro 19, 2007

And Viddy Films I Would §8: "Sunrise: A Song Of Two Humans", de F.W. Murnau (1927)

O mesmo impulso que me levou a M (1931) e a Underground/Era Uma Vez Um País (1995), arrastou-me ou deixei-me arrastar a Sunrise/Aurora (1927). O conselho dos sábios é geralmente atento e atendido: segu(i)ndo o top 10 do outro rosto e outra mão deste blogue, vi a peça de Murnau, desfalecida em domínio público. Como alguém diz de um carro: «foi o meu primeiro mercedes», também eu digo: «foi o meu primeiro murnau» com o mesmo orgulho. De Sunrise/Aurora pouco mais conhecia que a célebre afirmação de Truffaut, segundo o qual este seria "o mais belo filme de sempre" (como um grego, faço a citação de cabeça: perdoem-me a inexactidão possível). Não sei se o é, de facto; certo, porém, é ser um dos mais. Há uma imensa beleza, de ordem cinematográfica e emocional - mais!, espiritual, que preenche este filme. Como uma pedra que cai num poço e ecoa multitempos até se devorar na água, ressoou, no ver do filme, na minha cabeça A Felicidade Conjugal de Tolstoi, por um certo sentimento de associação entre as duas obras que não sei totalmente esclarecer.

Na tecelagem do panegírico de Aurora, é missão sempre discriminadora decidir por onde começar. Colocaria talvez a ênfase no fabuloso casting e performances dos três personagens principais: o Homem (George O'Brien), a Esposa (Janet Gaynor) e a Mulher da Cidade (Margaret Livingston). A presença de O'Brien é a tempos ameaçadora e terna, gigante e humilde, agreste e nova. Livingston foi trabalhada para a interpretação da serpente na reconstituição do Éden primeiro de Aurora. O cigarro, os salt'altos, a roupa preta: tudo se consolida na criação física da personagem. Porém, indubitavelmente, mau grado todo o grande mérito que reconheço a O'Brien, foi Gaynor quem me apaixonou. Gaynor tem o corpo louro de uma criatura mitológica, ariano e nórdico, belo e frágil, donzela rapunzela. Os seus olhos e cabelo concentram uma invulgar força dramática e a sua representação (bem como a de O'Brien) é de sobremaneira natural, tendo em conta tratar-se de um filme mudo (ainda que Aurora se situe na transição entre as duas eras, a silenciosa e a sonora). Gaynor imprime ao papel uma expressividade que só uma mulher pode. Anjo engando, anjo que sofre, anjo que redime. Em grande medida, as emoções do espectador confundem-se com os sentimentos, de alegria ou tristeza, da Esposa: Gaynor tem-nos na mão o coração.

A estória abarca várias temáticas, como um chapéu-de-chuva. Por um lado, há toda uma reflexão sobre a relação conjugal, o adultério, o homem, a mulher e o amor. A Esposa representa o paradigma romântico da mulher-anjo; a Mulher da Cidade o da mulher-demónio. A ambivalência do feminino tem sido e é um dos temas de maior fascínio dos artistas masculinos. O casamento aparece como um gesto diário: daí o segundo casamento metafórico - ninguém se casa, vai-se casando, visto o amor necessitar de constante alimento, ou não fosse ele como aqueles pequenos peixes de aquário que, sem memória, se esquecem que comeram e querem mais e querem mais. A sequência da cidade é a mais importante no âmbito desta meditação lírica sobre as relações humanas, com o passeio da Esposa e do Homem a ilustrar a novidade toda do amor. Por outro lado, um dos temas mais evidentes é o confronto campo/cidade. Este, contudo, é um tanto ao quanto ambíguo. Se é a Mulher da Cidade que vai envenenar o Homem, este e a Esposa redescobrem o amor e passeiam-no na cidade: ela, enquanto sítio, diria, aparece como algo tendencialmente positivo, rico de ofertas ao novo casal. Contudo, no que respeita às pessoas, talvez desse ponto de vista já não fique, no ver de Murnau, tão bem cotada. As pessoas da cidade aparecem invariavelmente conotadas com a sexualidade: a Mulher da Cidade, o homem na barbearia e a manicure ou o cómico e erótico "casal" do salão de baile. O campo aparece como o refúgio da justiça e moralidade, lugar do trabalho e dedicação. Parece-me significativo o episódio do porco: tratava-se de um jogo popular entre os nobres dos séculos mortos. Que a nova classe aristocrata, a burguesa, tema o pequeno animal e tenha de ser o Homem, trabalhador rural, a dominar as forças da natureza, como que o eleva, a ele, à nobreza também, uma nobreza que, cremos, será sobretudo de ordem moral.

Fale-se de Murnau. O filme tem efeitos de montagem, nomeadamente as várias sobreposições de planos, que, sinceramente, me impressionaram, tanto mais tendo em conta o tempo remoto da opus. A cena em que , sentado na sua cama, o Homem evoca a Mulher da Cidade é simplesmente magnífica em termos de construção da imagem. Talvez o que mais sobressaia, contudo, ao espectador seja aquilo que, talvez incorrectamente, chamarei aqui de interpolações. Refiro-me à forma como Murnau intromete entre, direi mesmo, dentro o mesmo title (o ecrã preto usado nos filmes mudos para as falas das personagens) toda uma sequência - analepse ou prolepse, ou tempo psicológico - que esse mesmo title invoca. Algo análogo, mas não igual, sucede quando o casal se beija no meio da estrada, impedindo o trânsito. É fenomenal a forma como Murnau brinca mesmo com os titles, como quando se enuncia o plano do afogamento ou se fala das dívidas contraídas pelo Homem e a tristeza da Esposa, duas informações que aparecem a tempos diferentes no mesmo title. Em retrospectiva à queima-roupa, tenho de reconhecer que, no que toca a aspectos meramente cinematográficos, foi, por certo, a montagem o que mais me impressionou. Permita-se-me evocar aqui a belíssima e profundamente trágica cena em que se intercalam os planos do abraço do Homem e a Mulher da Cidade e o plano do abraço entre a Esposa e o seu filho pequeno: pungente. Também a fotografia merece uma nota especial de louvor. Murnau alcança um obra de um encantador lirismo, algo de que os filmes mudos beneficiam per natura, mas que em Aurora foi puxado ao limite: primeiro filme mudo que vejo na íntegra, Aurora desmentiu-me de todo a assumpção arrogante da inferioridade inocente do cinema do silêncio.

Aurora é a aurora de um homem (como, repito o paralelo dos autores, o é a Ressureição de Tolstoi), recuperado da sua longa noite: não é por acaso que os encontros adúlteros são no escuro e no preto se movem os cabelos da Mulher da Cidade, contrários à luminosidade loira da Esposa. Murnau fez uma obra-prima, rechunchuda de simbolismos, emoções e beleza. Poesia de filme!

sábado, fevereiro 10, 2007

And Viddy Films I Would §7: "Perfume: The Story Of A Murderer", de Tom Tykwer (2006)

Kubrick disse deste filme que era irrealizável: como o disse d'O Senhor Dos Anéis - e todos sabemos as óperas que Jackson esculpiu dos livros de Tolkien. Igual sucede com O Perfume, de Tom Tykwer, conhecido por Lola Rennt (1998), que, infelizmente, ainda não tive oportunidade de ver: este foi, assim, o meu primeiro contacto com o realizador. Não escrevo à queima-roupa: cerca de um mês passou desde que vi o filme nas salas. Deste modo, quanto escrevo é pensado, mas quanto não escrevo foi porque já caiu esquecido.

O Perfume foi uma opus que vi essencialmente pelo buzz que a rodeou - um pouco como vi Marie Antoinette (2006) pela hype que dançava em torno a ela, corte cortejando-a. É curioso que a sorte me tenha levado a, no decurso da review, associar na mesma frase os dois filmes, pois, agora que os tenho lado a lado no pensamento e na memória, vejo como partilham outras duas características importantes: ambos se constituíram como uma surpresa para mim e são, maioritariamente, experiências visuais e, mais genericamente (num genericamente que visa muito particularmente incluir a sua vertente sonora), experiências estéticas. Agora que reconheço o parelelo intentado antes entre as duas fitas entendo porque tão longamente se digladiaram pelo terceiro lugar no meu top pessoal de 2006.

A obra de Tykwer é uma fascinante viagem visual, o que, no filme que é, não deixa de ser paradoxal: Süskind escreveu um livro sobre o sentido olfacto, o filme transforma a experiência olfactiva numa experiência visual, alterando o sentido estimulado. Certamente, como tem sido amplamente referido, durante o visionamento da película praticamente cheiramos, pavlovianamente, os aromas evocados: porém, tal sucede apenas pelo poder total das imagens apresentadas. As cores fortes e a fotografia concordante são um dos trunfos e triunfos do filme: a isso contribui, por exemplo, o violentíssimo ruivo de Rachel Hurd-Wood, a actriz que interpreta Laura, a personagem feminina principal. Não creio que o casting ignorasse já o plano total e compreensivo do filme, contribuindo para o seu impacto estético. A multidão colorida e viva de tons imprime os frames de uma força e beleza que nos faz partilhar, ainda que por meios diferentes, a emoção e admiração de Grenouille pela multiplicidade dos cheiros humanos.

Na construção deste sentimento não é de subestimar, mas sim de relevar e revelar, a importância da banda sonora, a qual me cativou, a mim apreciador delas, profundamente a atenção, pela forma como fez integralmente parte da mise-en-scène, contribuindo decisivamente para o ambiente do filme. Aliás, a este propósito é de escrever dois factos: o realizador Tkywer é também o compositor (lembrando Roberto Rodriguez). Em consequência, num gesto assaz inédito ou, pelo menos, raro, a banda sonora, ou os seus esquissos, foram compostos mesmo antes do filme, o que possibilitou que durante a rodagem de algumas cenas a banda sonora estivesse directamente a passar em fundo. Tal julgo que ilustra bem o papel primordial da música em O Perfume, que, narrando uma experiência olfactiva - incapaz de transmitir pela própria natureza do cinema, metamorfosei-a, contudo, numa experiência, repetimos, visual e, acrescentamos, auditiva.

Em termos de actores, não obstante a boa presença de Dustin Hoffman e Alan Rickman, ambos conhecidos do público cinéfilo, a atenção desvia-se completamente para o relativamente estreante Ben Whishaw (no qual futuramente atentaremos mais com a estreia do bizarro I'm Not There), no papel principal de Jean-Baptiste Grenouille, numa performance suberba, de entrega física a que subjaz, sempre, uma psicológica. O actor captura toda a ambivalência da personagem, dando-lhe corpo e substância: não sem razão muitos leitores do livro têm confessado preferir a personagem na adaptação cinematográfica. Porém, seria incorrecto da minha parte, só porque não aparece na tela, esquecer um dos outros grandes actores do ensemble: John Hurt, o narrador - e quem viu Dogville, saberá a desnecessidade de acrescentar o mais que seja, saberá a obrigação de nos curvarmos - e deliciarmos.

Por fim, no que respeita à estória em si, só posso constatar duas verdades: por um lado, pelo visionamento do filme, compreendi facilmente o porquê de o livro ser dito de culto; por outro, cresceu, como grávido de um alien que depois irrompe pela barriga, o desejo de ler o mesmo livro. De facto, a narrativa, na sua forma quase de um proto-policial, é, na sua essência, uma reflexão sobre um sentido em que pouco pensamos e sobre a forma como ele determina a nossa vida, manipulando-a. Mais filosoficamente, podemos deslindir meditações sobre a efemeridade das coisas, a eternidade, o amor.

O Perfume, em síntese, é um excelente filme, dos melhoríssimos que cruzaram as nossas salas no ano corrido, fiel e dignificante do livro. Uma obra esplendidamente visual e luxuriante mesmo, como alguém o ousou classificar. Sensual, no sentido dos sentidos. Cheira-me a obra-de-arte.

terça-feira, janeiro 30, 2007

Speakers' Corner §5: Ensaio Sobre a Recepção dos Filmes

Poucas leituras tenho que fundamentem curricularmente a minha sabedoria para falar de teoria do cinema. O que pois se segue é essencialmente uma meditação de um filocinéfilo (aquele que ama amar cinema), intrigado pelo ofício de amador de crítico de cinema. Reflectindo sobre a essência da crítica percebi que, antes, havia que me debruçar sobre a questão da própria recepção dos filmes, isto é, de que modo o espectador recebe a obra de arte no seu espírito, o que o afecta e move (no sentido anglosaxónico do verbo to move, insuficientemente traduzível para português por co-mover).

A obra cinematográfica, que aqui nos ocupa, e respectiva recepção constituem-se como uma experiência, a qual pode ser de diferentes ordens: e aqui se inicia a nossa peregrinação de filósofo, amante da sabedoria, e cinéfilo, amante do cinema. Há, a nosso ver, dois grandes tipos de experiência cinematográfica: uma épica, outra estética.

O termo épico vem do étimo grego epos, que significa «palavra», «discurso». Foi baseando-se nesta etimologia que Brecht designou o seu teatro de épico, e da mesma nos servimos para designar o tipo de experiência cinematográfica em que a obra age sobre o espectador em virtude do seu argumento. Isto é, o espectador fica impressionado, em primeira análise, pela obra cinematográfica graças ao poder da história que esta narra. A maioria dos filmes e, de um maneira abusivamente geral, os americanos ou american-like, actuam sobre o público desta forma. Podemos classificá-los genericamente de plot-driven, servido-se estes das mais variadas técnicas que a narratologia tem vindo a estudar e aperfeiçoar ao longo dos séculos para alcançar o seu efeito. Trata-se da aplicação ao cinema do pilar fundamental da literatura em prosa, que leva o leitor a recolher prazer e satisfação de um conto de Poe, de uma novela das Brontë ou de um romance de Nabokov. Falamos, no fundo, da arte mais antiga do mundo: a arte de contar uma estória.

Múltiplos são, como já afirmámos, porque constituem a maioria, os exemplos que aqui poderia evocar para ilustrar um filme que actue primordialmente ao nível épico. Escolhemos Memento (2000), de Christopher Nolan, por ter sido o filme que mais fundamentalmente revolucionou, a nosso ver, as técnicas narrativas depois de Pulp Fiction (1994), de Tarantino. Memento prende o espectador claramente pela sua estrutura narrativa, labiríntica e anacrónica. É a singularidade da história narrada e dos personagens que a povoam que confere ao filme o estatuto de culto.

Outros exemplos de filmes que, para nós que escrevemos, enquanto espectadores, actuaram essencialmente enquanto experiências no domínio do épico, foram, por exemplo, os vários filmes de Hitchcock, os quais clara e abundantemente funcionam a este nível, como, de resto, praticamente todos os policias e thrillers, géneros cinematográficos cuja força e impacto residem, sobretudo, no argumento. Por razões que se nos afiguram relativamente transparentes, filmes com poderosos twists finais agem sobre o espectador essencialmente pela sua vertente épica. Ilustram-no The Game/O Jogo (1997), de Fincher; The Sixth Sense/O Sexto Sentido (1999), de Shyamalan; ou Saw (2004), de James Wan. Porém, filmes de matéria e qualidade tão diversa como Dead Poets Society/O Clube dos Poetas Mortos (1989), de Weir, Schindler's List/A Lista de Schindler (1993), de Spielberg, The Lord Of The Rings/O Senhor dos Anéis (2001-3), de P. Jackson, Star Wars/A Guerra das Estrelas (1977-83), de Lucas ou o amontoado indistinguível de comédias românticas e teen movies «unleashed» por Hollywood anualmente; todos estes, dizíamos, funcionam à base do seu sentido épico e aí fundam o seu sucesso ou desgraça, consoante a qualidade de base do argumento e a arte e craft do realizador para o materializar.

Poucas obras prescindem da experiência épica - qual é o filme que, em última análise, não conta uma qualquer história?, apenas esta pode não ser a mais significativa nelas, como veremos.

Dentro da experiência épica, há uma outra experiência muito própria que merece ser designada à parte, que, estando dependente da história (e por isso a apresentamos com um subgénero da épica), garante, ainda assim, uma legítima independência, pelo que a apresentamos também, paralelamente, como um paragénero (do prefixo grego para-, significando «ao lado de»). Refiro-me à experiência ética. Designamos deste modo o tipo de experiência cinematográfica em que a obra age sobre o espectador em virtude das questões filosóficas/morais que levanta. O espectador é impressionado pelo filme porque este ou o incomoda, ao confrontá-lo com uma reflexão que ele não queria empreender ou se sente incapaz de satisfatoriamente concluir - e dái um sentimento de desamparo axiológico; ou, pelo contrário, renova a sua mundividência, que os alemães chamam de Weltanschauung, isto é, a forma como vê o mundo. No fundo, se na experiência épica pura o que move o espectador é a história (ou com o entretenimento - lato sensu, ou com a catarse aristotélica que proporciona, dependendo do ser, respectivamente, de acordo com as definições clássicas, uma comédia ou uma tragédia, conforme acabe bem ou mal), na experiência ética falamos de algo mais elevado, como se se processe a uma transferência do epicentro da experiência cinematográfica do coração para a razão. Procurando explicar de forma mais simples, o filme actua já não tanto a um nível emocional, de identificação com os personagens, mas sim a um nível intelectual, de questionamento das próprias atitudes do protagonista.

Ao contrário do que, a uma primeira leitura, possamos pensar, há uma colecção variada de filmes que, se se inscreveram no nosso espírito, foi precisamente por terem actuado maioritariamente sobre ele pela sua vertante ética. Um exemplo ilustrativo e recente é Munich/Munique (2005), de Spielberg, o melhor filme, a nosso ver, estreado em salas nacionais no ano passado. A obra recusa qualquer maniqueísmo, constituindo-se como uma vigorosa reflexão sobre o Bem e o Mal e os efeitos da violência no homem que a mesma violência desumaniza. Ao consciencializar-nos da nossa impotência face ao problema global que fotografa, perturba-nos. Ao libertar-nos das balizas morais que construímos, inquieta-nos, ajoelhando-nos a uma reflexão que faz obrigatória.

Outros filmes éticos que somos obrigados a referir incluem Breaking The Waves/Ondas de Paixão (1996) e Dogville (2003), ambos do «pequeno cavaleiro» Lars von Trier. Tratam-se de obras que agiram sobre nós, que aqui escrevemos, sobretudo pela profunda desorientação moral que deixaram em nós - que deixam ainda hoje em nós, em perguntas que permanecem uma busca, mais do que uma resposta. Lidam com o choque dos absolutos, o Bem e o Mal, um pelo maniqueísmo, outro pela anulação surpreendente desse maniqueísmo. Como exemplo dos filmes éticos que revolucionaram a nossa visão do mundo - a mencionada Weltanschauung, referiria Fight Club/Clube de Combate (1999), de Fincher, uma satírica análise da sociedade finissecular.

Ao contrário da experiência épica, um filme pode susbsistir inteiramente sem uma experiência ética, a qual, no entanto, nitidamente o valoriza. Outros há que, prevalecendo sobre a experiência ética outras experiências que abaixo estudaremos, encontram nela uma mais-valia. Esse género de filmes são o material sobre o qual trabalham os filósofos, dando origem à escrita de obras curiosas como O Que Diria Sócrates A Woody Allen, de J. Antonio Rivera (Tenacitas, Coimbra, 2006). Dois paradigmas desta espécie de filmes que, possuindo uma forte componente ética, agem, contudo, primariamente, sobre o espectador de outro ponto de vista cinematográfico, são Clockwork Orange/Laranja Mecânica (1971), de Kubrick, e The Matrix/Matrix (1999), dos irmãos Wachowski.

O termo estético vem do grego, significando «perceptível pelos sentidos, sensível». A etimologia do vocábulo remete-nos pois para aquilo que é material. A experiência estética é assim o tipo de experiência cinematográfica em que a obra age sobre o espectador em virtude do sua beleza plástica. De facto, todo o cinema, a priori, é estético, mais que não seja porque, enquanto arte, é por definição, uma arte plástica, visual. Esquivamo-nos aqui a debruçarmo-nos sobre a essência do Belo, problemática filha de uma filosofia de cem anos e com Platão por pai. Neste ponto, cientes da nossa ignorância - a qual, essa, não se restringe só a este aspecto, preferimos não enveredar, enquanto não nos cultivarmos mais nessas matérias e discussões. Porém, ainda que não saibamos deslindar racionalmente a construção do Belo, sabemos, emocionalmente, constatá-lo. E é sobre essa constatação e a certeza de estarmos certos nela, por ser algo de tão íntimo, que avançamos. O Belo, quando ocorre no ecrã, é um espanto que nos percorre, um deslumbramento, um assombro: e o Belo mais profundo arranca as lágrimas, não por ser dramático (isso pertence ao âmbito do épico), mas por se insuportavelmente Belo, como um Zeus que se mostra a uma Sémele que na realidade não o pode ver em toda a sua magnificência sem morrer. Esteja claro que beleza não se refere aqui à beleza da história (isso, repetimos e sublinhamos, é da esfera do épico), mas há beleza da imagem, a algo material, sensível - que é, como vimos, o significado do termo estético.

O exemplo mais conseguido e inultrapassado e provavelmente inultrapassável de uma experiência estética cinematográfica é a opus de Kubrick, 2001: A Space Odyssey/2001: Odisseia no Espaço (1968). O filme é uma valsa - para remeter para a metáfora da utilização do Danúbio Azul de Strauss - de sequências que funcionam per se, isto é: o impacto de uma cena, podendo ser ampliado pelas que a precederam ou se seguirão, é, no entanto, independente delas. Tal singularidade resulta do facto de cada frame se constituir como um verdadeiro quadro de beleza. Tome-se como exemplo a sequência final: a imagem abaixo contém o poder da fotografia, a saber, o de, sem diálogos, sem prefácios ou epilógos, causar naquele que a observa naquele instante um sentimento de espanto infantil, de deslumbramento perante uma magia. Se mostrássemos a cena final completa, ao som de Richard Strauss, Assim Falava Zaratustra, a alguém que desconhecesse o filme, tal facto em nada afectaria o seu encantamento, spellbound, perante a sequência da star-child. Isto mesmo o parece afirmar Spielberg, no documentário que acompanha o DVD de Eyes Wide Shut, em homenagem a Kubrick, pouco depois da sua morte. Spielberg, entrevistado, critica aqueles que consideram Kubrick excessivamente frio e racional e relata como, para comprovar a uns amigos a mentira desses adjectivos, os convidou a verem a cena final de Paths Of Glory/Horizontes de Glória (1957), filme que desconheciam. O realizador descreve então como todos se comoveram. Se isto aqui narramos é apenas para que, de forma mais ilustrada, se entenda o carácter da experiência estética.

A experiência estética opõe-se directamente à experiência épica. Primeiro, porque a experiência cinematográfica ou é maioritariamente épica ou maioritariamente estética. Segundo, porque, tendencialmente, quanto mais estético, menos épico. Assim, 2001: Odisseia no Espaço tem um número reduzido de diálogos para a sua longa duração. Poder-se-á argumentar, e correctamente, que a narratologia não se resume a diálogos: isso mesmo o afirmava Kubrick (vide a entrevista, aquando do The Shining, com Michel Ciment, em que o realizador propõe uma reconstrução das técnicas narrativas com base na narratologia dos filmes mudos). Porém, pouco de épico terá a terceira e última parte de 2001 e todos os acontecimentos, de um modo geral, demoram-se mais do que o necessário numa narrativa épica escorreita, porquanto valorizam a parte estética: daqui resulta a acusação frequente feita a Kubrick de que os seus filmes pecam pelo seu slow pace. Os que assim falam obviamente confundem experiência épica com estética, mais, revelam-se insensíveis a esta última. Note-se, porém, que dizer que a experiência estética se opõe à épica não significa que ambas se excluam - leitura errada das minhas afirmações. Pelo contrário, elas suportam-se mutuamente e o bom filme, de uma maneira geral, é aquele que funda a sua qualidade e força nas duas, ainda que, irremediavelmente, uma tenda sempre para se sobrepor à outra, dependendo do realizador e do espectador.

Os filmes de Kubrick são excelentes ilustrações de experiências estéticas. À parte do já referido 2001, é-nos obrigatório referir Clockwork Orange/Laranja Mecânica (1971), Barry Lyndon (1975), The Shining (1980) ou Eyes Wide Shut/De Olhos Bem Fechados (1999). Porém, em nome de uma maior diversidade, somos levados a mencionar THX 1138 (1971), de Lucas, Elephant (2003), de Gus van Sant, The Village/A Vila (2004), de Shyamalan ou o recentíssimo Marie Antoinette(2006), de Sofia Coppola. Todos são obras de arte - aqui não no sentido de serem geniais, que também o são, mas no sentido em que são isso: arte.

Paralelamente à experiência estética encontramos a experiência técnica, numa relação entre as duas semelhante àquela que une e separa a experiência ética da épica. Por experiência técnica designamos o tipo de experiência cinematográfica em que a obra age sobre o espectador em virtude da sua técnica ou craft - desculpe-se a redundância. São filmes que afectam o espectador pela sua impecável qualidade, o meticulismo dos pormenores, a coordenação dos departamentos, a mise-en-scène e toda a panóplia técnica que o futuro realizador aprende na escola de cinema. Aí, não aprende o talento de um Kaufman (épica) ou a beleza de um Kubrick (estética); porém, lecciona-se afincadamente a tal técnica: é esta que, neste tipo de experiência cinematográfica homónima, move o movie-goer. Ainda que se possa estudar, requere mestria e presença para se atingir.

Como protótipo pessoal deste género de experiência, escolhemos Citizen Kane/O Mundo A Seus Pés (1941), de Orson Welles. Do filme, escreve Manuel Cintra Ferreira, crítico do Público, em Quem é Quem no Cinema e no Vídeo (Difusão Cultural, 1991):

"Costuma dizer-se que há, até hoje, três saltos qualitativos na história do cinema. Momentos em que a acumulação de experiências passadas se materializa num filme ou num autor que vem transformar radicalmente a linguagem e o conceito de cinema. O primeiro foi em 1914 com Nascimento de uma Nação de Griffith. O segundo em 1941 com O Mundo A Seus Pés de Orson Welles, e o terceiro em 1959 com O Acossado de Godard."

Visto o filme, facilmente se compreende a afirmação. É, de facto, essencialmente pela parte técnica que Welles consquista o espectador: permanentemente, criança, deixava soltar uma exclamação de espanto perante a forma como, desprevenido, o realizador me surpreendia, com um ângulo de câmara inopinado, um equilíbrio de volumes louvável, uma fotografia ainda hoje inovadora. A cena-resumo do primeiro casamento ou a sequência de consulta do arquivo da biblioteca figuram entre as mais veneráveis da metragem, incitando ao desejo de tirar o chapéu que não se utiliza.

Tipicamente, os filmes dos primórdios do cinema tendem a entusiasmar-nos enquanto, precisamente, experiências técnicas, pela consciência que temos, em visionando a obra, que estamos perante algo revolucionário. Só este tipo de experiência justifica uma certa emoção perante La Sortie des Usines Lumière/A Saída dos Operários da Fábrica Lumière (1895), dos irmãos Lumière. Porém, será incorrecto reduzir a experiência técnica a estes primeiros filmes: outro exemplo que se poderia avançar é The Matrix/Matrix (1999), que, se é vencedor na sua fusão de acção (épica) com filosofia (ética), é, sobretudo a quem o contempla pela primeira vez, uma incredulidade visual, pelo que representa em termos de evolução dos efeitos especiais: a cena inicial com Trinity é um murro no estômago e nos olhos, cuspindo nos limites do possível.

Afirmou-se anteriormente que épica e estética, no compromisso entre si, desequilibram-se, isto é, uma sobrepõe-se sempre a outra. Há, todavia, uma excepção a esta verdade, caso peculiar. Refiro-me a The Godfather/O Padrinho (1972), de Francis Ford Coppola. Por isso chamamos este filme de perfeito, o que não significa que seja necessariamente o melhor ou o favorito - ainda que, como se constata de uma leitura do nosso top 10, ele seja um dos melhores e um dos favoritos. É perfeito porque alcança o equilíbrio nessa balança problemática que de um lado tem a épica e do outro a estética. Determinar qual é mais revelante para o sucesso e mérito do filme parece-nos uma discussão bizantina, visto que, coisa única, neste filme os dois lados são gémeos.

Muitos são os filmes em que não destrinçamos claramente qual dos dois pratos mais pesa e qualquer tentativa de classificação da recepção cinematográfica desse filme nos parece traidora. A existência de filmes assim - por exemplo, Apocalypse Now (1979), também de Coppola - não invalida que uma das experiências cinematográficas se tenha, ipso facto, sobreposto à outra. Simplesmente, não conseguimos, pela imensidão da experiência, determinar qual delas. De facto, uma situação destas apenas se regista com grandes obras do cinema, as quais tendem para o equilíbrio, como PH7, encarnado pelo The Godfather/O Padrinho. Isto não significa que um filme não possa ser uma obra-prima se não se situar neste território de ambiguidade: filmes de carácter estético (e, alguns, de carácter ético) tendem a afirmar-se com bastante convicção, sem que isso de forma alguma lhes retire mérito: muitas vezes, pelo contrário, acrescentando-lhes. Tal é bem mais difícil de suceder com filmes marcadamente épicos (por muito interessante e bem conseguida que seja uma história, dificilmente ganhará pódio na história do cinema sem um trabalho afinado de estética por detrás) ou técnicos (por muito requintada a técnica, sem beleza ou história será oca - e murcha).

Urge referir a singularidade de um outro filme, Hiroshima Mon Amour/Hiroshima Meu Amor (1959), de Alain Resnais. Tendo visto o filme recentemente - fez ontem uma semana, apercebi-me que estamos perante uma experiência estética da épica, isto é, o poder e majestade do filme resultam, maioritariamente, do argumento de Marguerite Duras, escritora, que o aspergiu de uma sensibilidade lírica única e, para nós, nova no cinema. O seu visionamento foi, indubitavelmente, uma experiência estética, mas esta decorria directamente não tanto (ainda que também), como seria de esperar, da plasticidade (o carácter visual) do filme, mas sim das palavras, da épica. Quiçá, no futuro, com a revisão do passado, encontraremos mais exemplos de opus assim.

Perceba-se: as categorias de recepção da experiência cinematográfica aqui enumeradas não são, nem pretendem ser, monolíticas. Primeiro, um filme ser rotulado ou como estético ou como épico não exclui a outra dimensão: o que afirmamos é que há uma destas duas esferas que actua mais sobre nós, revelando-se preponderante no nosso espírito, gerando o fascínio ou a repulsa. Quanto mais vezes um filme é visto, tanto melhor o espectador se apercebe das suas várias camadas de experiências: um filme jamais se resume a uma camada e seria uma leitura propositadamente errada do nosso ensaio deduzir isso. Aliás, quantas mais experiências um filme comporta, tanto mais rico ele é. Para que uma experiência seja maioritária basta para isso reunir, na estranha matemática do espírito, 50%+1 da nossa atenção. Um filme como Dogville, que anteriormente pusemos como ilustração da experiência ética, é igualmente revolucionário em termos técnicos (com a sua mise-en-place brechtiana) e possui, como outra coisa, de resto, não seria de esperar da pena de von Trier, um lado épico arrebatador. Barry Lyndon, um dos mais acabados exemplos de uma experiência estética, é simultaneamente um perfeito desenvolvimento do típico tema da ascenção e queda de um homem, brilhando - e por isso co-movendo - também do ponto de vista épico. Com estes exemplos esperamos ter dissolvido as dúvidas sobre o carácter não monolítico das categorias de recepção cinematográfica apresentadas.

Esclareça-se que uma dada experiência não é de forma alguma inerente a um filme, mas inerente ao visionamente desse filme por parte de um dado espectador. Nenhum filme, per se, é épico ou estético. Assim, quando digo que um filme é épico estou a dizer que é épico na minha experiência pessoal e intransmissível de recepção dele. Sobre por que é que as pessoas vivem diferentes experiências ao ver o mesmo filme, isso, é questão que não nos ocupa agora neste ensaio, mas é, logicamente, o próximo passo a dar para uma análise dos fundamentos (ou falta deles) do ofício da crítica cinematográfica.