Não tem sentido fazer mais filmes narrativos sobre Cristo depois de Zeffirelli (1977). Consequentemente, todos os que, desde então, têm procurado essa abordagem, mau grado os artifícios que laborem, caíram. Assim, resta ao realizador duas possibilidades: de um lado, a reelaboração, pela utilização de fontes alternativas, da História (The Last Temptation Of Christ/A Última Tentação de Cristo, de Scorsese (1988) e The Passion Of The Christ/A Paixão de Cristo (2004), de Gibson); do outro, uma abordagem cinematográfica nova e inviolavelmente pessoal. Porque a narratividade da vida de Cristo está esgotada e filmes que a releiam são raros e distam, é tísica a vontade espontânea de ver uma outra variação sobre Cristo. Porém, a película de Pasolini gravita exteriormente a essas falácias banais: e constrói de fundação uma visão nunca vista.
Il Vangelo Secondo Matteo segue fielmente o evangelho homónimo e, todavia, apresenta uma interpretação única e, por isso, distante da insipidez das adaptações murchas narrativas anteriormente criticadas. A película impõe-se como objecto, pela sua plasticidade, o seu carácter visual e estético, diferenciando-a: ela percorre o caminho sagrado e magro - como o caminho dos ricos pelo buraco da agulha que conduz ao reino de deus - que chamámos de terceiro: o da composição material nova da história espiritual velha. Não me interessa, até porque não foi, de modo nenhum, um caracter do filme que se salientasse no meu espírito no decurso do seu visionamento, analisar aqui a representação de Cristo como um proto-marxista. O filme - que, repetimos, copia o evangelho à letra - não pode dizer nada que, em última análise, não estivesse já contido, pelo menos em embrião, no texto-base. As ligações entre o cristianismo primitivo e o comunismo são, além disso, relativamente conhecidas. Centrar a exagese da opus de Pasolini nesse aspecto é, a meu ver, perder o novelo que ariadne deixou a teseu para se guiar no labirinto do minotauro. Por isso, despreocupadamente, como quem arruma um assunto menor e incómodo, como uma dor de cabeça, largo aqui, abandonada numa ilha deserta, essa questão.
Pasolini compôs uma sinfonia de rostos: assim chamarei na escuridão, como quem grita pela mãe, o filme. Uma sinfonia desta natureza assenta, como facilmente se compreende, em dois vértices primeiros: de um lado, uma proliferação abundante, como se fosse uma coelha a dar à luz, de close-ups, grandes planos do rosto e, menos frequentemente, mas não menos significativo ou belo, dos olhos; do outro, uma poderosa expressividade das caras dos actores, que, em elogio das pessoas, confesse-se serem todos amadores: Cristo, e.g., era um estudante de dezanove anos que se encontrara com Pasolini depois de fazer um trabalho sobre os primeiros filmes do realizador. O filme abre com a imagem do rosto de Maria jovem (vide imagem de Margherita Caruso, a actriz, com Pasolini, abaixo).
Maria não diz uma única frase ao longo de todo o filme (só isto, per se, seria o suficiente para tornar Il Vangelo... numa adaptação sui generis do evangelho): Maria diz tudo ao longo do filme. Maria fala pelos olhos tristes, por aquela boca baixa, por aquele rosto grave - e dulce. Caruso é Maria. Todo esse início da metragem é uma orquestração de silêncios, de expressões, de olhares, de subentendidos. Na realidade, não é só Maria a muda (muda porque diz tudo e fica sem nada para dizer), mas também os apóstolos, os quais, se, de cabeça, me recordo, não têm mais que duas a três linhas de diálogo. E, no entanto, os grandes planos dos seus rostos, sempre embasbacados, admiradores - hipnotizados seria o termo certo - ocupam uma parte substancial da película. São homens do povo, longe de qualquer estereótipo de beleza: os actores foram colhidos da gente normal: José era um advogado, Simão Pedro um camionista. Isto confere ao filme, bem como o trabalho de câmara ao jeito do cinema verité, uma impressão de quasi-documentário, como se Pasolini se tivesse passeado pela Palestina (passeou-se, e há até um filme dele disso: Sopralluoghi in Palestina per Il Vangelo Secondo Matteo (1965)) no tempo de Cristo, observador entre os discípulos d'Ele. Simptomático desta perspectiva é a cena da condenação de Cristo por Pilatos, a qual é vista pelos olhos de um dos discípulos, o que reduz Cristo a uma figura menor na tela, obstruído que está pelas cabeças do resto da multidão popular que assiste ao julgamento. A nível de realização, destaque ainda para a diluição espácio-temporal, essencialmente a dois tempos: num primeiro, a sucessão de imagens de Cristo pregando (sempre close-ups do rosto) em que só o cenário, mais ou menos perceptivelmente, se vai alterando (em parte faz lembrar, salvaguardadas as diferenças, aquela cena de Citizen Kane/O Mundo A Seus Pés (1941) em que Kane conversa à mesa do pequeno-almoço com a mulher); num segundo, quando Cristo, em não mais que dois ou três sítios diferentes, em não mais que dois ou três aparentes dias, prega todas as parábolas que Mateus narra no seu texto, confundindo a nossa percepção dos três anos de pregação de Cristo. Estas brincadeiras roçam o filme na anormalidade genial, a bizarria fantástica. Admito-me: quero ver mais Pasolini.
O filme, todavia, enferma, a meu ver, de três tendões de aquiles, um fora do domínio do realizador, contudo. Assim, começando por este último, é nitido a falta de dinheiro de Pasolini: o baixo orçamento é responsável pelas caricaturas grosseiras das armaduras (e os chapéus) romanas ou das roupas (e os chapéus) dos fariseus. Aliás, um observador atento percebe que a cena em que Cristo foi filmado a caminhar sobre a água foi realizada sem recurso a efeitos especiais, ou seja, Pasolini filmou-a - pelo menos assim me pareceu - toda à beira-mar, montando-a, porém, de uma maneira que ilude inteligentemente esse artifício de pé-descalço. Com um budget superior, o filme teria ganhado alguma precisão documental - e já referimos como o filme se aproxima dessa estética. Por outro lado, sou forçado a salientar, pelo lado negativo, dois pormenores: primeiro, o corte abrupto entre muitas das cenas, de que é exemplificativa a sequência final na qual, após Cristo pronunciar a sua última palavra, imediatamente o ecrã se enche com o fine. Estes cortes, quase amadores, não suponho que, eventualmente, não tenham sido propositados - porém, não posso alinhar neles, pela minha sensibilidade pessoal. Perdoem-me os entendidos de cinema: o ignorante não é só ignorante - é agreste de sentidos. Mais consensual parece-me ser a censura da algumas transições (ou a ausência delas) entre as músicas utilizadas: mais uma vez, remeto para uma das cenas finais, a da Ressurreição. A melodia triste e baixa que acompanha o velório de Maria e dos discípulos é interrompida, de forma totalmente abrupta, para dar espaço ao tema festivo que já acompanhara outras cenas antes. Escrito, pouco significará o que escrevo; contudo, um visionador perceberá excessivamente bem o que descrevo. Note-se que não critico as faixas escolhidas, as quais, aliás, são de reconhecida qualidade e acerto, mas antes as transições entre elas, num ou noutro ponto do filme.
Não obstante as imperfeições apontadas neste último parágrafo, Il Vangelo Secondo Matteo constitui-se como uma obra imprescindível, quer pelo milagre que opera na reconversão de um tema tão definhado pelos tempos, quer pela inerente qualidade estética por meio da qual o consegue. Cruza-se a mensagem de Deus e a arte do Homem: a obra-prima, afrodite da espuma, emerge.
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