quinta-feira, maio 17, 2007

Primeira Curtada §2: Estória


Metáfora:
Quando eu era pequeno, existia um cinema na cidade sem cinema. Na praça jardinada confrontada com a Câmara, havia uma papelaria num edifício que tinha uma entrada. Aí, guardavam cá fora cartazes de filmes. E as pessoas achavam muito estranho que eu lhes dissesse que havia um cinema, que havia, que havia, havia, na cidade onde não. Quando cresci, descobri que era um videoclube. (talvez por isso eu não frequente videoclubes).

Mitologia:
Acredito que fui ver a Pocahontas ao cinema na Covilhã. Ninguém tem memórias disso, muito menos eu. Havia uma parede branca-creme numa subida que seria a fachada do cinema: só que esse cinema nunca existiu. Se eu fui ver a Pocahontas ao cinema, porque tenho o VHS?


Dúvida [Newton/Génesis]:
Um dia, se fui pequeno, vi umas imagens de olhos fechados. Do céu caía uma maçã. Havia uma rapariga também. Era um mercado como uma feira do livro e as bancas estendiam-se paralelas. A cidade tinha a cor de ser cinzenta e a idade de ser barroca. A maçã caiu num monte das irmãs. A rapariga colheu-a e levou-a à boca indiscriminadamente, passado já muito o tempo dela de três anos em que todos levamos a todas bocas todas as coisas na ânsia literal de devorar o mundo. Ela tinha, assumâmo-lo, dezoito anos. Trincar a maçã tornava-a um vampiro. Ia mordendo todas as pessoas no caminho como quem tira inglês o seu chapéu de coco e pergunta o audiudú e as ruas ficavam despovoadas, povoadas de corpos mortos. Por fim, numa rua calcetada, ao lado de uma estrada onde não percebo porque haviam de passar carros que não passavam - por isso, porque estava lá a estrada?, encontrava o namorado. O coração tremia-lhe, como corresse já sangue demais, sangue bebido, que o coração não conseguisse conter, como não se contém uma alegria muito grande. Saudou-o com um beijo como um ponto de exclamação. Tomou-se ele de um desejo e agarrou-a com emoção redobrada com a que dobram os sinos. O amplexo furioso/e o amor é uma virtude de canibalismo humano. Ele sopra-lhe ao pescoço/ela morde-lhe ao pescoço. O corpo cai como uma marionete. Uma lágrima de um olho corre, corre como um fio de sangue da boca.
Nunca soube e hoje não sei, se isto é um sonho meu ou um filme que vi quando era pequeno e os meus pais não souberam que eu o tivesse visto ou que eu era pequeno. Construí-me acreditar que foi um filme, mas, retrospectivamente, o argumento é um pouco fraco.


Trauma:
O meu primeiro VHS foi A Dama e o Vagabundo. Como as crianças da minha idade, fui um mogli e aprendi os valores e as pessoas com as bestas da terra que Walt animava para Disney. Quando me cruzei na rua com um cão, ele começou a ladrar no sítio em que falava e não disse uma palavra e eu não o entendi: assustei-me e fugi. Cheirando-me correr, o cão perseguiu-me e engordei o medo e estendi o passo. O meu pai ao longe gritava-me para parar. Apanhado do cão e do cansaço, segui a ordem e o meu pai eventualmente enxotou o cão como uma vaca. Todos os outros animais, quando cresci, aprendi dos professores de ciências (que se achavam invariavelmente mais espertos que o Walt Disney) que não falavam - ainda assim, os professores de letras insistiam em ensinar as onomatopeias.
(ainda hoje, guardo do cão a distância que a mulher guarda do génesis da serpente)

Biografia:
O primeiro filme que fui ao cinema ver foi o Hércules, na Covilhã, no Monteverde. Não tive na minha infância nenhum salgueiro que cortaram depois que eu emigrei, porque nunca houve nenhum salgueiro e eu não nasci na serra para emigrar daí e na serra, mesmo que eu nascesse, não nascem salgueiros. Mas depois que eu vi o Hércules, já não há hoje Monteverde: construíram o Feira Nova por cima, não como quem empilha caixas, mas as susbstitui de todo.
*
Ia ao cinema quando ia à praia. Uma vez por ano ia ao cinema. E quando eu dizia mar, confundia as duas realidades numa só e poupava o trabalho de dizer mais palavras. Ver um filme era crescer: a sala era no casino da Figueira. Entrávamos adentro do saloon (era só o hall, mas na altura eu não sabia e era feliz porque não sabia e em vez de saber imaginava, como remédio e remendo da ignorância) como fôramos muito adultos e engravatados e soubéssemos jogar poker, tudo não passasse de um western. Recordo de lá dois filmes, na sala para crianças (nunca cheguei a conhecer a outra, a papá, porque morreu e enterraram-na e os meus avós, preocupados comigo, não me deixaram ir ao funeral que não é coisa para tu veres, que é muito triste e soturna, o que é soturna, não interessa): Shreck e Astérix & Obélix, os uns dos dois. Quando ia para a praia de carro, passávamos na rua entre o mercado e o jardim à frente do tribunal e na parede havia um pequeno rebordo de vidro onde semanalmente mudavam o affiche do filme em cartaz, às sextas, quando o cinema ainda era às sextas-feiras (um dia, quando for grande, vou criar um ciclo de filmes na Gulbenkian com este nome). Hoje, o casino expulsou de si, como fosse alguma impureza, o cinema, desde que abriram salas no jumbo. Quando os pássaros no regaço da janela me contaram a notícia, entristeci-me e considerei enfim que o casino nunca amara o cinema, somente o tolerara, desconfortavelmente, como um sofá que foi um erro mas já custou muito dinheiro para ser devolvido e aceitamos. A dor que ainda hoje guardo, secreta, dessa mentira maior da minha infância.!
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Aqui em casa somos três se eu não contar: o meu pai, a minha mãe e o meu irmão mais novo. Fomos, que eu me possa lembrar, quatro vezes os quatro ao cinema: A.I. - Inteligência Artificial, Harry Potter, À Procura de Nemo e Tróia. O meu pai é um cientista falhado, que por isso se tornou professor de direito. Ele tem uma biblioteca muito grande e, quando eu era pequeno, ajudava-o a catalogar as fotocópias no escritório estreito dele com rótulos que eram travalínguas (ex.: transplantações). Eu ia para a escola repeti-los e o professor, que não sabia o que significavam, chamou a minha mãe porque eu andava a chamar asneiras aos meninos. Eu gostava do Spielberg por causa do Hook que eu não sabia que era Hook e lhe chamava Peter Pan II. (havia, aliás, muitas coisas desse filme que eu não sabia, mas, coitado!, que havia de fazer senão fazer de que sabia?: só há um mês atrás, por exemplo, entendi finalmente a piada dos berlindes). O meu pai, que construía então um frankenstein chamado doutoramento, interessou-se pela premissa de A.I. e levou-nos ao Fórum de Aveiro que era, então, o sítio mais próximo com maior oferta cinematográfica. Fiquei amigo de David e prometi tratar-lhe do urso enquanto ele partia para a aventura de ser humano. As pessoas na rua ficavam a princípio encantadas, como o urso se tratasse de um sapo-príncipe, mas ao assistirem à sua voz adulta desencatavam-se do teddy. Eu gostava dele, ainda assim - eu gostava dele por ser assim. Um dia, ao passar no Cacuacu, o estranho quiosque verde plantado no centro da avenida da minha antiga casa, o urso apontou-me para uma revista magra nas páginas e no preço, Cinemania. A capa tinha o David e, como ambos ansiosos de mais notícias dele, corremos ao meu pai a pedir o dinheiro para o magazine. Pela primeira vez, eu li, com o teddy, cinema: os meus pés ainda não chegavam, sentado na cadeira, ao chão, e eu balançava-os como tivesse uma rapariga num baloiço num campo. Era grande o meu interesse de erudito; lia a revista muito compenetrado. A contracapa, porém, confundiu-me, a mim e ao urso, o meu tigre'hobbes: uns olhos emergindo do escuro, uma mão transversal, nela um anel, e uma legenda sinistra, anunciando o começo da aventura, e o nome O Senhor dos Anéis. Arrumei na gaveta do armário a revista e na gaveta da memória a contracapa. A mulher das limpezas, como sempre, na sua boa vontade, desarruma tudo e a mulher das limpezas foi o Público. Comentando a hype em torno da estreia lisboeta do filme, a jornalista relatava gigantes na multidão que erguiam, ditadores, a mão e o dedo apontando o cartaz erecto e secreto da contracapa reproduzindo. E as duas torres proclamavam: «That's the real thing.» Amuei: o henrique feiticeiro não devia ser assim subvalorizado. Vinquei muito o meu lábio como para fazer muito medo aos colossos da blasfémia: eles aguardaram.
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Cristo fundou uma igreja e um cinema, que do seu nome bebeu Messias. E como a Igreja caiu em ruínas, assim a casa-paraíso tombou, como se caíssa das escadas, na decrepitude da idade: pena de não haver lares e manicómios para os edifícios! Porém, dita das coisas reerguerem-se. E como a passos leves, como quem vai assaltar qualquer soalho, se restabelece, mais firme que antes, a planta de Cristo (que se convém chamar lírio), assim o Messias, que era carpinteiro, trabalhou nas obras de recrescer a sala de espectáculos olvidada pelos homens e pelo tempo. Por fim, pelo final de dois mil e um, o presidente da câmara (que é como o presidente da república, mas para regiões mais pequeninas: só servem ambos para inaugurar) partiu uma garrafa de champanhe contra as paredes amarelas do sítio. Houve um concerto muito grande e o cinema passou a ser às sextas, sábados, domingos, segundas e, às quartas, os filmes negros do apartheid cinematográfico: a produção independente. Hoje, foram todos colonizados - e já não há quartas-feiras (em compensação, criaram mais uma sessão, à quinta). O cinema-montanha, montanhas de cinema, viera enfim ter a maomé-eu, quando maomé não tinha fundamentalistas nem campos de futebol-execução.
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Eu desconfiava muito. Mas, de educação cristã, aprendi a não ter prejuízos, que são juízos feitos antes - sacudi o medo, como se fosse um cão todo salpicado de água, e pedi o primeiro volume da trilogia wagneriana porque tem anéis ao meu pai pelo natal. O livro, esgotado, transformou-se, para consolação - e futura bendição, no Hobbit (nome estranho! que será? mistura de reacção de espanto e curiosidade com a agridoce sensação de desapontamento por não ser a coisa que se esperou por godot). Estava na Covilhã - e ainda dizem que não há coincidências. Arranquei os olhos e colei no seu lugar, como se recortasse de uma revista, duas línguas - e assim não via, lia duas vezes ou uma só vez mas duas vezes mais depressa. Fechei o livro: e aprendera o significado da palavra épico. Puxei pela borda da saia da minha mãe, com os meus dedos pequenos e redondos, e pedi um gelado que se chamava cinema. O meu pai correu a buscar o jornal e eu sentei-me para embalarmos o jornal os dois: como um pêndulo, as páginas corriam, virando-se acrobáticas. Ali! O suplemento local. Era nas duas últimas páginas, mas era não ser. Retirei-me, semi-desconsolado, no exercício da virtude da paciência e da espera. Voltamos de carro, porque a pé, entre as duas margens de portugal, cansava e, acima de tudo, íamos carregados, e, sem burro, não era fácil aportar as coisas. Na Mealhada, trobetaram como um arrail por el-rei a data das bodas (bodas, porque havia um anel, como o dos noivos, e havia noivos, ainda que eu não soubesse bem ainda com quem me casava): 9 de Janeiro. O primeiro milagre do Messias foi no casamento de Canaã. Canaã era o nome da sala de cinema. Naquele dia, no altar que não havia, tive o espanto de ser filósofo em ser poeta de ver. E amei, entregue totalmente como uma rapariga indiana de doze anos, o cinema: e o Messias desfechou o cego.
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Esperando o tempo em que o tempo que corre caia como maratona e morra, de-correu um ano. Voltei-me a sentar na sala, como se nunca tivesse saído de lá. E fiz duas torres, e duas torres eram dois postes, e dois postes eram uma baliza: queria ser realizador de cinema, fruto último da linha que de king kong produzira pedro, e de pedro me criara. Como neo-eureka: Schöpfung!


O Murro:
O dia a seguir ia ser assim de modo impróprio especial, que foi especial antes de ser o dia. O meu pai ia matar o frankenstein e eu ia-me casar comigo própio na senda da cabala aniversária. Há uma solidão premente que se acomoda, sacundindo antes a almofada onde se vai sentar, junto a nós, na véspera espera do dia grande, quase como esperássemos um comboio e inventássemos o jogo de tirarmos fotos um ao outro para passarmos o tempo atrás da máquina da coca-cola que está avariada mas tudo nesta estação também está a cair e tem de se pagar para ir à casa-de-banho são uns ladrões. Não tinha amigos que me organizassem uma festa de despedida de solteiro, pelo que subi ao sofá para ir à estante escolher um dvd para ler. Lembrei-me de uma provocação e de uma curiosidade e tirei o dvd novo, comprado há pouco, a(l)gemeado de outros dois. E assim, ergui Dogville. Não fui interrompido, porque estavam todos muito ocupados a rodos com o frankenstein que ainda insistia em viver (como aquelas pessoas das melhoras da morte que desempalidecem nas três vésperas de não terem amanhã). O filme deu-me um murro e eu chorei, porque mãe aquele moço bateu-me e tu não dizes nada. E eu tive de ligar à minha irmã, que não nasceu do meu pai nem da minha mã', e que nunca vira o filme e nunca levara o murro, a narrar-lhe em solilóquio a solidão e a experiência. E ela na sua sempiterna paciência, escutou-me e escoltou-me, a mim, desfalecido perante o horror humano, como uma pietá o cadáver de um cristo. Mundo-cão.


A Fundação:
Não sei se já tinha começado a morrer, nessa altura. Porém, já tinha sido, por certo, internado. Nesse período da minha vida, tive uma só enfermeira, daquelas jovens, a quem eu, por não ser velho, não mandava piropos e ela, por eu não ser soldado, não queria namorar: por isso nos compreendemos - porque nenhum queria nada do outro, senão a amizade. Quando o sol batia pelo meio-dia na janela, entrava ela, única visitante dos meus dias de doente. Os raios incidiam pelas frestas da persiana, e uma luz etérea emoldurava o quadro da nossa composição. Zelosamente, ela começava por substituir as flores na vasa da mesinha de cabeceira metálica branca, ainda que as flores fossem sempre as mesmas, lírios violeta: ainda assim, o verbo substituir pode-se, com correcção criativa, aplicar. Ela puxava a cadeira de madeira para o sopé de mim, e contava-me coisas consoladoras. Um dia disse-me que eu tinha uma camisola muito bonita, uma camisola azul clara, e eu senti-me o rapaz a quem o avô ensinou a pedalar na bicicleta na quinta grande e verde da infância fabricada. Quando hoje visto a camisola, não sei se hoje ainda visto a camisola, não me lembro da camisola no armário: a camisola passou para o meu irmão. Lembro-me de ser bonito no tempo em que eu vestia a camisola azul clara. Todas as raparigas, que eram Ela, confessavam-me o céu no peito e eu acreditava tomé na fé que me diziam sem nuvens. Hoje, porque não tenho beleza, fugiu-me das mãos também a camisola como quem desliga a luz de um quarto onde não está ninguém. Mas nessoutra altura, eu era ariano na ironia dela ser mulata. Ela praticava o curso de enfermagem de alma na esteira da minha cama; escoltava-me as mãos, escondia-me os medos e adormecia-me os sonhos quando acordava a meio de pesadelos em que o monstro era eu. Eu tinha eu tenho muito medo. E era grande na falta de confiança própria, um alexandre magno. Eu andava, já então, na fisioterapia da alma. Mas a minha alma teimava mole porque era dura: ela tentava corrigi-la e borratava a folha de teste do meu coração e ficava muito feio, tudo riscado e com má apresentação e os professores descontam. A minha alma era uma grande pedra de carvão: e como todas as pedras era casmurra em mudar de forma e estado, e como todo o carvão, ardia - e no arder, se desfazia. E as duas coisas coabitavam com a naturalidade de surgir um arco-íris quando faz chuva ao sol.


Um dia, porém, ela não me trouxe flores e não as cultivou no vaso à minha cabeceira. E eu perguntei-lhe, assustado «Mulher, porque te esqueceste das flores?». Ela voltou o seu rosto para mim, sorriu, e abriu-me as mãos dela: e no lugar dos estigmas, estavam flores. Levou a mão esquerda ao peito esquerdo, tirou a veste, mostrou o seio: e no meio, onde a lança a trespassara, florescia uma magnólia magnífica. E eu percebi finalmente que ela não vestia de branco porque fosse enfermeira, mas porque eram os lençóis do leito da sua convalescência. E imperatriz senhora ordenou-me: «Levanta-te, pega na tua enxerga e anda!». E eu, envolto ainda na mortalha (que só tombaria alguns anos-semanas depois), ergui-me e compactuei e enterrei a espada que guardava debaixo da almofada em mim mesmo e de cesariana pari, nado morto, a raposa espartana do medo que me comia debaixo da minha capa que deixava entrar o frio na mesma. A raposa era feia e era um dragão e acertei-a no coração. Ela deu-me a mão no tempo inicial: sabia que eu custava-me ainda de pé. A cama ficou lá, e nela estendida a minha cobardia, até ao dia em que a for render, até ao dia em que me render a ela. Um fantasma nunca morre.

Variedades:
A minha promiscuidade mental diletante escreveu o meu nome na lista de passageiros de todos os navios do cais e eu ainda não decidi em qual vou embarcar, porque já partiram todos.


Moralidade & Resumo:
Quando saímos da Arquitectura - há aí um certo claustro, que os monges, depois da expulsão da república, largaram de cuidar e apadreceu até ser verde. No meu calão imaginário, chamo-lhe central park, porquanto fica no centro do edifício. A Esfinge de Olhos Azuis tem enigmas para um Édipo. Escuto a rapariga, que guarda uma cidade e uma mulher. Ela promente-me vitória e aliacia-me: a Esfinge de Olhos Azuis praticou cardiomancia, e sabe-me o sonho e o amor. Mas, ai!, ela desconhece-me o temor, que me cala os lábios na presença das mulheres que amei sozinho. Eu já fui, ah!, em tempos (lembras-te, criança em mim, criança sou, quando ainda não éramos e éramos infinito pela inexistência?), um grande Alexandre, nos monólogos de Hamlets que converso comigo. Mas Alexandre ainda construiu um império, e os dois Hamlets ainda mataram, um Polónio, o outro o Tio. Eu concebo tudo isso - e na minha imaginação já fui até, num breve lapso de sonho, feliz - mas invariavelmente quando acordo não tenho ao meu lado uma flor azul. Os meus sonhos são as amadas dos contos de Poe enterradas vivas. Porque eu, ai eu!, nunca firmo nada, do medo de me ferir. Tenho uma lança na areia da praia deserta e não cacei a besta com medo de cravar a lança em mim e morrer. Morri na mesma - mas de fome. E a Esfinge de Olhos Azuis, quando me fazia a proposta, recebeu de mim (que, no meu íntimo, temia já ficar cego) a negação que é só a fuga. Eu desci as escadas depressa, envergonhado de mentir a verdade.

*
A cara ardia. A deusa-jovem dera-me uma bofetada como um murro. O rosto de perfil pelas leis cinéticas do embate e o lado e a orelha consternados de vermelho. Hebe não me serviu à mesa, na arrogância de uma matrona. Erguendo o cálix santo gral, desvelando a visão dele, borbulhante do leite de hera, sua mãe, que ela levava ao marido (que sou só eu, noutra encarnação), proclamou, solene, as palavras: «Não beberás deste copo enquanto não o quiseres.» De joelhos, ante a visão irada da mulher, respondi religioso: «Meu Pai, se é possível, afaste-se de mim este cálice. No entanto, seja como eu quero.» E eu bebi o cálice e Hebe mandou-me a tebas de volta, ela que sabia que tebas existia. E eu peguei na minha lança na praia e espetei-a no coração da esfinge que soltou um urro e fugiu para o egipto. Num momento de lucidez de ícaro entendera que édipo ficar cego era um preço menor de ver o sol, por paradoxal que pareça. Deram-me a mão de minha mãe, que é a rainha: e a aliança foi reconhecida pelas testemunhas. Um peso impende sobre mim: fazer-lhe filhos deste casamento. Temo de mim para mim a prole deficiente do incesto. Que descendência empresto? Só os irmãos que se Caim. Eu sou a minha própria descendência e a minha obra é-me afim: 'homicídio incestuoso! Porque é que temos de nos matar sempre? Deus, ai Deus!, livrai-nos de ter de haver uma antígona! No fio da sua inexistência, trapezisto a minha esperança. Não me a tires, Senhor!: é tudo o que tenho contra o medo!.; Não me atires, Senhor: é disso que tenho medo!

17-2/17-5 (2007)