quarta-feira, setembro 26, 2007

Em Busca da Beleza Perdida §4: Carta A Meu Pai

Pai, se eu tivesse sido pequeno, ter-me-ias escrito também cartas do pólo norte e eu talvez tivesse acreditado no pai natal enquanto não descobri na despensa a prenda que recebi quinze dias depois. Hoje, que eu sou criança (finalmente, depois de ter sido velho), é que leio as cartas antes de abrir os presentes todos os natais: são sempre as mesmas (não mandas mais) - que importa?, são suficientes. Mas Pai, não chores santa mónica pelo meu ateísmo em nicolau. Não imagino mesmo como tu sejas a chorar: recordo-te sempre (nas fotografias antigas que a mãe guardou tuas) a sorrires sem estrépito e contente de um segredo, a boca desdobrando-se, como se fosse próprio da anatomia (um sinal de nascença, por exemplo), no cachimbo. Não lamentes, Pai, a minha infância ser uma construção minha enquanto jovem, e eu, como atena, ter crescido pronto-inteiro logo quando hefesto moderno quebrou minha mãe. Aprendi assim, Pai, coisas que os outros se esqueceram de sonhar (Hamlet). Quando tu me contavas, para me embalar (e encarnavas sandman), as estórias de aragorn e éowyn, eu saboreava a melodia de dizer imladris e galadriel para me adormecer como quem conta cordeiros. Tu não te apercebias: eu só o fazia quando tu já tinhas deixado o quarto e abandonado a luz. Dos teus contos, estudei o apêndice E cuidadoso e em segredo, aprendendo a fala primeira do mundo (porquanto arda veio antes de nós). Era aquela a língua pura e pela insistência em me rodear da beleza dos teus mitos permeou-me a beleza dos teus idiomas. Subitamente, as palavras eram como as mulheres: existia-as belas, indiferentes e feias. Redigi uma furiosa catilinária contra os doutores da linguística, e proclamei-lhes o seu erro fundamental: a língua era, mais que um meio de comunicação, um exercício de arte. (Que, de resto, a língua não nasceu para comunicar, mas sim para cortejar as mulheres, já mo tinha ensinado o professor keating na escola). Antes, Pai, eu usava as palavras como quem se serve de uma mulher disponível. Foste tu que me mostraste a falha fundamental disso e me ensinaste a comer as palavras como pêssegos e a deixar os beiços húmidos delas. E em cada fruto de palavra descobri a semente da verdade. Reparei como Deus tinha moldado o mundo pelo império do verbo e sentia cócegas quando me contavas, Pai, os amores das palavras como os amores dos deuses e a sua progenitura. Quis praticar a quiromancia delas e fui penteando o meu quarto com quadros de palavras. As pessoas, quando entravam, interrogavam-me pela razão daquilo e não lhe achavam arte alguma: pobres!, que não sabem olhar por baixo da saia das palavras virgens! E, Pai, quando tu viste quanto eu amava as palavras, criaste mil e uma para mim, uma por cada noite - e chamaste ao conjunto quenya. Resolvi imitar antes do tempo, aulë impaciente, o teu ofício, e construí para mim uma língua e um mundo sobre os teus ensinamentos: para os deuses reservei o celeste c e e, aos ciclopes deixei o f e o v, para as sereias guardei o l, o i e o u, embrulhados de nasais. Pai, nisso fui como o filho pródigo, que te pediu demaisiado cedo a herança sem a saber gerir! Contudo, não me arrependo: tu ficaste feliz, como um pai que aprecia naturalmente os incipientes esforços de um filho para andar. Quis ser arqueólogo da língua e falar indo-europeu para ser entendido por todos. Pai, foste tu que me tornaste filólogo. Um ano depois do gaarder me ter ensinado a filosofar, tu fizeste-me soletrar a genealogia das palavras. Contigo, recuperei algo grego dentre os destroços do tempo: o sentido de beleza, a beleza omnipenetrante e omnipresente. Hoje, que soluço grego, reconheço a sua grandeza como uma mulher nua (pensar no latim, tão áspero, como uma velha). O próprio verbo há-de ser belo, há-de ser límpido, há-de ser puro. Dele transborda a verdade e só a bebem os galahads. Foste tu, Pai, que me ensinaste a apreciar tudo isto e a retirar daqui um prazer pastorício. Hoje (penso que ficarias feliz de o saber), estou inscrito num curso para aprender de vez o fabrico das palavras: e foste tu, Pai, que me levaste até aqui, com o teu sorriso fumado. Obrigado.

In token of my admiration for his genius,

the following philological series is inscribed to


P.S. (póstumo): a dedicatória, roubada a melville, mente. A série nunca foi redigida. A carta, essa, cada dia aumenta de verdade.

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