No vinho de que bebiam pôs uma droga que causava
A anulação da dor e da ira e o olvido de todos os males.
Quem quer que ingerisse esta droga misturada na taça,
No decurso desse dia, lágrima alguma não verteria:
Nem que mortos jazessem à sua frente a mãe e o pai;
Nem que na sua presença o irmão ou o filho amado
Perante seus próprios olhos fossem chacinados pelo bronze.
Tais drogas para a mente tinha a filha de Zeus..."
Odisseia, IV, 219-227 (trad. Frederico Lourenço, Cotovia, 2003)
Comecei enfim na semana passada a ler a bendita bem-escrita Odisseia. Hoje, retido por doença em casa como uma suu kyi por uma junta de assassinos, aproveitei o tempo breve para avançar alguns cantos, encerrando a primeira parte do poema, conhecida pelos classicistas como telemaquia, por se centrar na busca de telémaco por seu pai, ulisses. Relembro mal a Íliada. Da Odisseia, porém, desprende-se uma ligeireza e agradabilidade, um sentimento encantatório e simples que consola o leitor como uma bebida de helena. Estranho que a droga da princesa de tróia não tenha ficado proverbial, e dessa realidade não tenha o tempo forjado (cronos é um hefesto) uma expressão como "calcanhar de aquiles" ou "canto das sereias". Não sabia que a filha de zeus se disfarçava de circe e só na fonte primeira, o pai homero, pude beber essa poção. Taça deliciosa! Não cabe em nós receá-la. Ela oferece o mesmo poder que o sonho: sem eliminar a memória, suspende-a. Espantalho efémero da tristeza.
Helena encantou-me. Desconhecia que a "tripla cadela" (como lhe chamou penso que Hesíodo) pudesse ser tão rica de mistérios e simbolismos. Ocorre-me escrever um longo texto sobre ela: subitamente, também eu caio, venerando, perante a mulher que nasceu do ovo. Não nego que a figura de Helena nunca foi das que mais me atraiu: tendia rapidamente a esquecer, ao ler as aventuras dos heróis de tróia, que a guerra era toda por aquela mulher de bela cintura. Hoje, confesso-me do meu pecado, e agradeço a afrodite não me ter punido pelo meu desrespeito perante a beleza. Ao ler as suas palavras naquele canto quarto, sinto a nobreza e a elevação - na forma como se descreve, a tragédia de ter sido um instrumento. Dalguma forma, o episódio doze da primeira temporada de Xena, "Beware Of Greeks Bearing Gifts", já me tinha aberto para as possibilidades alternativas de leitura trágica da figura de Helena. Erro meu, presunção minha!, a de acreditar que haja uma figura só, na hélade, que não seja intrinsicamente trágica! Se até na arcádia, ego sum... Percebo enfim tudo, atravessado por uma seta afiada de lucidez: o que sempre me levou a menorizar Helena, o ela ser sempre apenas um pretexto, um instrumento, é precisamente a sua grande tragédia, porquanto ela é uma pessoa. Lembro a Helena de fausto, de goethe: hei-de chegar a ela, no meu estudo (que pode demorar o mesmo tempo a emergir que eu demorei a perceber a verdade de Helena). Helena é desejada, mas nunca amada. O que durante tanto tempo eu julguei um defeito da sua figura, o ela só ser conhecida pela sua beleza, vejo agora ser o seu grande drama, mulher reduzida a uma só dimensão, expurgada da sua complexidade humana, resumida a uma face única (ai!, e o ser humano é um jano com tanto mais do que dois lados!). Aquiles é corajoso, intempestivo, irritável, desmedido, mas também bom orador; Heitor é bom pai, esposo, filho, cidadão, guerreiro: mas, ai!, Helena é só bela! - ou isso os homens pensam dela apenas! Bastou-me descobrir uma outra faceta dela, apenas, para reequacioná-la completamente. Doravante, Helena, não te tratarei mais com desrespeito. Perdoa as minhas falhas passadas e celebremos, celebremos a nossa união com um brinde da tua droga.
Imagem: Scarlett Johansson, tradução de Helena hoje.
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