quarta-feira, outubro 24, 2007

Em Busca da Beleza Perdida §6: O Erro de Virgílio

Sentei-me à secretária e abri as folhas. As palavras do poema encravavam-se entre os apontamentos manuscritos das aulas anteriores. Olhei os versos novos a traduzir. Bucólica Quarta, Virgílio: a falsa profecia cristã, em que se previu o Menino ("... modo nascenti puero, quo ferrea primum/desinet ac toto surget gens aurea mundo": "...ao menino que vai nascer em breve, com cujo nascimento/acabará a geração do Ferro e surgirá em todo o mundo a do Ouro") - que não era senão, coisa banal!, o filho do mecenas de Virgílio, Asínio Polião. Fiz o sésamo do dicionário (mesmo sem ser ali babá) e inicei a versão. O homero romano, fervoroso, enunciava como uma lista de supermercado as coisas grandes da idade do ouro, cuja vinda acompanharia o nascimento da criança mágica. E tudo seria, na sua descrição exultante, uma ilha dos amores (menos erótica, porém - isso, foi invenção sábia e boa de camões). Foi então que li os versos errados (cujo início, de resto, lembra aquela linha má de Cícero, quando este pensou infamemente que era poeta): "cedet et ipse mari uector, nec nautica pinus/mutabit merces: omnis feret omnia tellus" - "O próprio armador renunciará ao mar, nem o pinheiro naval (=navio)/há-de transportar as mercadorias: toda a terra há-de produzir tudo" (na tradução bela e latina do Pai-Santo Agostinho da Silva: "Ninguém mais haverá de marinheiro/e nave alguma transportará cargas/pois toda a terra tudo nos dará"). Virgílio, Virgílio!, que loucura foi essa que te tomou? Atou-te a trapaceira Ate (Aτή), (na trapaça só se compara a Eros: os dois - poucos o sabem - são gémeos falsos), a deusa do Erro, a de delicados pés que caminha "sobre as cabeças dos homens" (Il. XIX, 93, trad.: F. Lourenço). Virgílio, que damásio para o teu erro? Reli os versos, verifiquei a tradução e confirmei a insensatez: queria Virgílio um mundo sem mar!. Ponderei nas razões disso ser. Como um truman show, o pai dele devia ter-se afogado sob o olhar impotente do filho: doravante, não mais Virgílio foi capaz de construir castelos de areia, pelo receio das marés. Não raramente lembrava aos seus amigos, quando, em conversas de café, gozavam divertidos com a sua fobia, que a atlântida tinha morrido submersa (ele não sabia que, de todos eles, só mesmo asínio polião acreditava em platão). Depois o magister deu-lhe a ler hesíodo - e ele convenceu-se definitivamente da maldade do mar. Gastava as tardes livres no atelier a desenhar mapas do mundo e a requintar de monstros os mares vários (os cartógrafos medievais, de facto, pouco outro fizeram senão copiar meticulosamente as quimeras aquáticas do amedrontado Virgílio). Um dia, porém, Virgílio apaixonou-se: e a rapariga eleita nascera, como uma afrodite, do mar. Morava numa pequena cidade costeira, onde guardava uma uilla. Virgílio amou-a: mas ela amava o mar. Quando já sabiam contar dois meses de namoro, convidou-o para ir a casa dos pais dela, almoçar e conhecê-los. Ele assentiu. Quando a comida já estava encerrada, ela resgatou-o e levou-o para fora de casa com o egoísmo de o ter só para ela. Calado e amado, ele seguia-a. Foram ter à praia. Num gesto só, Virgílio apertou-lhe a mãe com força, como dois namorados. Ela, porém, não podia compreender que Virgílio procurava somente segurança, como uma criança à mãe. E, vendo naquilo um anel de noivado, Júlia, filha de Júlio (assim se chamava ela), encardiu os lábios dele com um primeiro beijo. Como uma abelha soltando-se da flor, desapertou os seus lábios dos dele e tingiu-os num sorriso. Nos olhos, apascentava o amor. Como quem se livra de algo incómodo, um peso aborrecido, desprendeu o vestido e deixou o pano mostrá-la. Abaixou-se e libertou as sandálias. Virgílio contemplava-a e via-lhe o corpo, delgado, vincado, em graça. Ela sussurrou-lhe ao ouvido, oferecendo-se-lhe inteira. E então correu para o mar, os pés descalços e pequenos sobre a areia que a corrida levantava como um aplauso, o corpo nu contra as ondas - mergulhou. Virgílio apoquentou-se, primeiro porque ela não aparecia; depois que ela emergiu, porque lhe pedia o mesmo compromisso e dar razão a Tales, fazendo toda a vida nascer na água. Virgílio sentia o desejo - e sentia o medo. E, como sempre que esta balança se organiza para os cobardes, triunfou o último. Sem voltar costas, Virgílio começou a recuar, até correr depois como um judas a quem os sacerdotes não aceitam a devolução das trinta moedas. No mar, a filha de Julho fez-se inverno - e chorou, incompreendendo. Apolo, deus mau, vendo-a então nua, e desprotegida de Virgílio, desceu dos ceús, consumido pela pulsão baixa, o libido. Deus parvo, atirou-se à água e nadou furiosamente para ela, para a tomar. Nos olhos dele ela reconheceu o seu perigo. Aflita, nadou mais e mais para dentro de água, mas o deus, como um cão perseguindo uma rapariga pequena, aproximava-se também mais e mais dela. Quando, enfim, apolo, o deus mínimo, estava prestes a agarrá-la, Zeus, compadecido, com o consentimento de ovídio, deixou crescer à rapariga uma cauda de peixe, para que fosse mais célere que febo bárbaro, e se mantivesse pura: assim nasceu a primeira sereia (a mesma por quem, muitos séculos depois, hans christian andersen se apaixonou). Virgílio jamais a recuperou, e o mar ficou-lhe a dever o pai e a amante. Furioso, o poeta mandou erguer uma torre altíssima, com o limite, contudo, de do seu topo não se conseguir ver o mar. Aí se fechou, imerso no elemento aéreo, longe do seu inimigo (porém, por respeito para com o deus, todos os dias, para não julgar o nume que ele o ofendia, oferecia hecatombes a posídon). De acordo com um testemunho oral de um escravo de Virgílio, a torre era também toda ela desprovida de janelas, para que jamais sucedesse o poeta contemplar sequer a chuva, que engorda os rios e engravida o mar. Assim, na ira, morava Virgílio - e, movido por esse ódio, escreveu as severas palavras da Bucólica, proclamando o mundo do mar dispensável, esquecido de que, no início, o espírito de Deus se movia sobre as águas. Por fim, Virgílio morreu, e foi para o Hades, onde o encontrou Dante. Ai, Virgílio, Virgílio! Viveste já tantos séculos entre o fogo: deixa-me mostrar-te a água eterna! Um dos grandes mistérios da humanidade (como stonehenge) é saber como Beethoven, o Grande, compôs a Nona Sinfonia, sem jamais, na sua vida, ter algum dia contemplado o mar. Frequentemente acho-me na Varanda a meditar sobre esse puzzle. Conheces, Virgílio, aquele quadro do David Friedrich, Monge à Beira-Mar? Creio ser das coisas mais belas que o romantismo pintou. O mar, Virgílio, é a forma material da metafísica; ali, derrama-se a transcendência, liquefeita. "Toda a terra tudo nos dará": quem te plantou esse engano: Nietzsche? O próprio engano, nota, é uma coisa da terra, que é opaca e enlameada; não do mar, transparente e limpo, onde não há hipocrisia. Sabes, Virgílio, em última análise (deixa-me confessar-te este segredo), se a Odisseia triunfou sobre a Ilíada, foi pelo seu cheiro a sal (e o sal, diz-se, é um condimento indispensável para qualquer receita). Virgílio, tu nunca poderias ter descoberto a índia e inventado o preste joão. Vou-te narrar uma estória e, como esopo, dela tirarás a moral: Júlio Verne quis, quando jovem, partir para o porto e embarcar, para conhecer o mundo - o pai, porém, apanhou-o e proibiu-lhe expressamente algum dia fazer-se marinheiro. Desgostoso disso, estudou afincadamente, lendo as revistas da netional geographic, as curvas do mundo (o mundo, enganam-se os que dizem ele ter cantos: é feito, sem dúvida, de curvas - parecem-se esquecer da verdade fundamental: o mundo é uma mulher). Foi assim que viajou sem barcos e escreveu tais livros que os homens todos quiseram acreditar que ele necessariamente tinha visitado quanto descrevia - mesmo se esse crença deles era uma mentira. Mas, Virgílio!, tu nem desejo tens de conhecer a solidão do mar! Já Ismael, o escriba da aventura da baleia branca, dizia que, sempre que tinha vontade de se matar, em vez de o fazer, embarcava num navio para afastar esse vento nefasto. Olha, Virgílio, o exemplo do marinheiro de Malta: ele é livre e belo - de facto, o mar é possivelmente, como ele nos ensina, o último reduto para os românticos, a planície ainda não conspurcada pelo homem e pelas máquinas, o território, arejado e anarquista, sem estado. (Corto, Corto!: quando poderei ser tu? empresta-me ser-te pelo menos umas décadas, só até eu morrer de morte). Os sonhos, formam-se no mar: lê o quinto volume do Sandman. Não é a despropósito (na língua, tudo é ponderado) que mar parece a etimologia de amar. Tétis, senhora dás águas, não esqueças!, deus à luz aquiles: grandes e poderosas coisas obra o mar! A minha primeira lição de grego, foi, crê-me!, à beira-mar. Virgílio, Virgílio: vês agora, manifesto, o teu erro?

Escuta!, ouves?, o grito verdadeiro: Θάλασσα, Θάλασσα!

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