quarta-feira, setembro 06, 2006

Moleskines §5: E.L.E.N.D. [ouvindo]

E
A criança calara-se, súbita. Assim: no meio de uma conversação, normal, corrente, agitada e habitada. A família anciana ocupava olimpiamente a mesa. Discutia-se a manchete. O pai discursava, politicamente, expondo as pespectivas da razão. A mãe, adocicadamente, elevava o garfo castanho à boca e mastigava como chiquelete. «Muda de assunto: a criança está calada.» Tapava-a o desinteresse óbvio da matéria e a mãe, mediocramente perspicaz, aprendera-o. «Conta: como foi a escola?». A criança ergueu-se do seu lugar, ascendendo aérea, antigravitacional, numa iluminura budista. Contornou, misteriosamente, a távola, à altura do tampo até olhar a matrona. Tocou-lhe, contacto, com a ponta do dedo, extraterrasterialmente. A mãe pegou-a, precisamente, e levantou-a ao seu colo carnudo, aconchegando-a. A criança pousada, pousadamente, rodou o olhar para a mulher. «Dá-me um beijinho.» Mímica à acopolagem de uma nave, a mãe beijou-lhe, madonna, a fronte élfica. E a criança calou-se - para nunca mais falar. «Querias um beijinho da mamã?», perguntou, ternurante ternurenta. A criança, grave, deslizou, aeronâutica, numa linha de produção inexistente, afastando-se à velocidade de um produto. A mãe contemplou-a com estranheza e incompreensão temida. A criança surreal desceu da banda de montagem e montou, no mesmo passo, à cadeira original. Não comeu mais. «Filho, o que é que tens?», interrogou, paranormalmente, a senhora. O Horror. A criança ergueu o rosto, descomposto de aflitiva anagnórise, visão de são paulo, reconhecimento. A mãe levantou-se intempestiva e correu a recuperar o filho. Um espírito morto habitava a criança. «Rápido! temos de o levar ao hospital!» O pai arrancou o guardanapo, varreu o bigode, abriu a gaveta e procurou a chave. «Acende a luz!». A mãe comprimiu a criança vivamente contra si, embalando-a acidentada. Acendeu o interruptor. Um barulho esquizofrénico de chaves e moedas misturdas a chocalhar monte abaixo. A mulher trocava para sapatos altos, segurando, por cima do ombro, nascituramente, o filho. A criança, pacífica, assistia a tudo, como um menino jesus no templo. eureka em português. o pai correu para a porta, saíram para o elevador, entraram no carro (a mãe na parte de trás com a criança) e arrancaram. A criança guardava o aspecto circunspecto, embriagado de neutralidade impassiva, muito triste. A mãe, sistemicamente, coçava-lhe de festas a cabeça e reclinava-se para o beijar, colibri. Podiam ter sido felizes.

L
O médico voltou-se incompreendendo para os pais «O vosso filho não tem qualquer doença. Analisei-o e ele não manifesta quaisquer sintomas» pousou «mas concordo manifestamente que algo não está bem com aquela criança» olhou de soslaio para o paciente, sentado, doente, no bordo da cama cirúrgica «é como se, de um momento para o outro, pudesse começar a derreter e víssemos a pele dele descer, larga, cera, pelo corpo todo, nu» A mãe, violentamente, olhou o médico, violada. O pai, mais temperado, perguntou «O que nos aconselha a fazer?» «Procurem um psicólogo.» A criança continuava, branca, alheada, autista - e a mãe mordia os lábios para dentro.

E
Pôs-lhe, controlado, uma folha de papel à frente e uma caneta ao lado. Amarrou as mãos, avançou-se na espinha dorsal, pisamente, como uma placa metálica metícula guindastamente encostada. «Se quiseres, em vez de falar, escrever - está à vontade». A criança não pegou no utensílio. A criança não se mexia de todo. Olhava para o homem, testa tremilitantemente franzida, como quem sofresse demasiado solicitando eutanásia. O psicólogo concentrava-se, mascaradamente, no chão. Imóvel, pediu «Escreve na folha o que te atormenta, senão, nem eu, nem os teus pais te poderemos ajudar». A criança baixou os ombros, desconsolada, e abriu as mãos, lady macbeth mostrando o sangue. Na face, contorcida, a incredulidade, a desfiguração. «Raios, miúdo, diz alguma coisa!» ergueu-se, proteu acordado, anjo do diabo, o -analista. A criança, cristo chagado, recolheu os estigmas e pousou as palmas sobre o peito, deixando cair, desfeito, o coração à perna. Começou a chorar adultamente. A besta amansou-se e o psicólogo mirou-o, celebratório. A reacção chamara ao quarto os pais exteriorizados. E a mãe, conquistadora, gávea, exclamou, exultante (e o menino saltou-lhe de alegria no seio - lc 1,41): «Ele chora!», numa ascenção dos nomes até ao berro. E uma gargalhada, um riso puro, éclatante, iluminou o quarto. «Ele chora!» confirmou, alegre, transformada grega. E Apolo cresceu frondosamente naquela ilha de Leda. O pai encarou a mãe e jubilou, abraçando-a, com uma mão espetada carnívora numa nádega erótica e a outra serpenteando a costa até ao ombro de Pélops, agarrando-o como quem deseja desfazer. Altivos, beijaram-se encaixadamente, atemporais. O psicólogo, celebrante, exclamava ahah! no mesmo tom sucessivas vezes. Os três reuniram-se em torno da cadeira condenatória do protestante e, marias sanguinolentas, dançaram três vezes no sentido contrário ao dos ponteiros em volta do herege, festejando, entoando os cânticos com que cristo foi recebido na entrada de jerusalém. E era grande a alegria no mundo - porque a criança tinha chorado. A mãe reconfortava-se com a certeza da vivência do filho, da capacidade de expressar emoções, da humanidade do que antes era um boneco animado de Hoffman. O filho rompera a máscara imutável e rígida e ferreira - era o fim do carnaval de veneza. O pai revibrava os ecos de entusiasmo da mãe numa discussão com o psicólogo para marcação de posteriores consultas. Efusivamente, a mãe erguia a criança nos braços e no ar e apresentava «Meu filho!» «Meu filho!» «Meu filho!» ia repetindo na marcha circunstancial que abandonava o consultório, seguida dos dois. «Meu filho!», mostrava, e os outros pacientes prostravam-se, genuflectiam, e voltavam o rosto para o chão na passagem da rainha e do filho. O pai, por detrás, lançava, esfuziantemente, notas como grãos de arroz casados. Tombavam como pétalas oficiais no caminho da marcha. O psicólogo, oficial, formal, com botas, fechava o Triunfo. E as buzinas dos carros, audíveis do exterior, salutavam, trombetas, a procissão, anunciando o regresso do filho pródigo. E, no topo, recém-nascido, a criança chorava calada, mansamente - porque sozinha.

N
A criança percebera tudo. A criança sempre fora muito inteligente. Lia avidamente desde a mais tenra terna infância e as grandes obras do mundo contava-as amigas. A criança entendera, pois, toda a circunstância, como se endormecesse debaixo de uma figueira. Aos pais perturbava, inquietando, sua tristeza mais que seu silêncio. Hume, não compreendiam a união científica das coisas pelas causas no universo. E a criança tomou uma decisão: ia ser hipócrita. Saiu do seu quarto e apresentou-se na sala. Os pais, no sofá, observavam televisão. A mãe, primeira, viu-o. A criança vestia um sorriso fechado, mas largo, como os lábios constituíssem uma cicatriz. As bochechas curvavam-se em covinhas waltdisneianas e, como um produto japonês, os olhos luziam, inchados. A mãe ajoelhou-se e agarrou-o. A criança sorria como um boneco de palhaço. O pai, serenamente, levantou-se e, de pé, passou a mão, cigarreiramente, pelos cabelos do filho, rebolando-os. Ele olhou para cima e piscou os olhos, rápido. Acomodou o sorriso a proporções menores, pelo cansaço gerando pelo esforço muscular. «Senta-te aqui a ver este filme connosco.», convidou, sentando-o, a mãe. Ele fechou os olhos e sorriu mais expansivamente, no movimento #42 da sua lista de hipocrisias planeadas. A mãe puxou-o para si e ele respondeu agarrando-a também (#34). Finalmente, os pais estavam, genuinamente, felizes. Haviam aceite a mudez dele como um um acidente, como partisse um braço ou diagnosticassem dislexia: mais estranha, mais bizarra - mas facilmente co-vivenciável. A criança, cansada do fingimento, fingiu adormecer. A esposa sorriu ao marido, consolada.

D
Ai!, a criança dionisíaca vira mais longe do que eles todos! Ostracizada à hipocrisia pela sociabilidade, rindo eternamente, era palhaço: mas chamava-se Pierrot.! A criança templária, culta, vasta, sábia,! percebera tão simplesmente que não havia mais nada para dizer. Tudo o que possivelmente podia ainda restar a um novo homem para dizer quando crescesse, tudo,! fora extirpado pelo tempo anterior. E a criança, tão jovem!, tão inocente!, (coitada!) tivera de lidar com esta súbita verdade, demasiado imensa, imensamente enorme! para poder haver quem a pudesse. Não havia mais nada para dizer - não havia mais nada para ler. A análise humana, a exagese da alma, o entendimento do mundo: concluíram-se nos séculos passados. Fukuyama, a criança proclamou, resoluta, o fim da literatura. Não havia nada mais a escrever. Tudo o que interessava, verdadeiramente, ao homem: estava declarado. Alcançara-se o positivismo. Tudo perdia o sentido doravante, porque tudo não acrescentava nada. E a criança calou-se. Faltara-lhe a força para não pedir (pobre!, era só uma criança!) um último beijo à mãe! Era o saber isto tudo, como de resto é o saber qualquer coisa que seja, que perturbava a criança, kurtz, visionadora do horror. O horror da alma humana, totalmente, conclusivamente, desvelada. O horror da morte da palavra. O Horror!


"The rest is silence."
Hamlet, Shakespeare

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