quinta-feira, dezembro 10, 2009

Ἀντιγόνη

Quando eu era criança, encenaram a Antígona na escola e, porque sabiam como gostava de teatro, convidaram-me para o coro. Lembro-me que fomos todos vestidos de preto e descalços e levávamos umas capinhas feitas de cartolina porque era barato em cujo bojo escondíamos as nossas falas, lidas a metrónomo. Recordo vagamente o cenário, um pano gigante com a fachada de um templo, e penso ainda saber quem foi a protagonista (hoje, se acerto, no curso de jornalismo). Desde então, creio, nunca mais li a peça, que o meu pai tinha numa edição da Inquérito, tradução de Fernando Melro, e na edição alemã bilingue da Reclam, comprada por — diz o autocolante na contracapa — dois euros, apenas. Quando entrei para Clássicas, deram-me ainda uma terceira cópia, um libreto feito para acompanhar a encenação do Thíasos, com a tradução de Maria Helena da Rocha Pereira. Antígona, porém, discreta, permanecera junto a mim: amei uma mulher que a interpretou — porque dizia Schelley que quem noutra vida amou Antígona não pode amar outra mulher — e, já no início deste ano, o meu instinto primeiro para treinar o grego foi tomar da estante o livrinho laranja da Reclam e dobrar o grego em português (não fui além do primeiro verso: hora talvez hoje de recomeçar). Procurando um projecto para mestrado, surgiu-me uma tese sobre a peça de Sófocles e os blocos bélicos nela. Levou-me isso às Antigones de Steiner, o livro último sobre a fortuna do mito e da mulher, que leio, ainda. Foi na vontade de partilhar com o Alvenel uma descoberta aí — que Orff escreva uma ópera sobre a versão de Hölderlin — que encontrei a versão teatral de Don Taylor para a BBC, de 1984 — ano feliz para uma peça sobre o indíviduo contra o Estado — com Juliet Stevenson como Antígona e John Shrapnel no papel de Creonte. Não era essa a minha intenção, porque o tempo era pouco e o trabalho até muito, mas acabei por ver, desarmado, toda a peça. Não houve qualquer anagnórise: as memórias da representação do meu sétimo ano estavam já demasiado enterradas, não como Polinices. Ver Antígona foi um encontro, uma manifestação, um pouco como Heidegger diz ser a verdade (ἀλήθεια). Que coisa é este texto que quase dois milénios e meio depois de ter sido escrito me faz ainda chorar o tempo quase inteiro? É preciso encontrar a peça viva para nos lembrarmos da profunda mentira que é o acto de ler teatro. A tradução de Taylor, mesmo se com alterações ao original (exemplo óbvio: o uso da palavra «terrorists» ou «hotel»), é um prodígio de força, longe do formalismo estanque e estranhizante — no pior sentido do termo — da tradução árida, ainda que correcta, de Rocha Pereira. Todo o outro trabalho, certo: o cenário, os actores, a banda sonora. O coro, a tempos, nomeadamente nos primeiros estásimos, falha em convencer o espectador a aceitá-lo, como seria normal, mas é usado com verdadeira mestria nos episódios e dança uma coreografia lenta subtil firme. Não tenho agora o θυμός de pensar a peça, de objectivar em discurso a emoção ainda quente. Deixo o kommós: aquela gargalhada de Antígona não tem verbo.



escultura: Antígona, em bronze, de George Anthonisen.

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