quarta-feira, setembro 26, 2007

Em Busca da Beleza Perdida §4: Carta A Meu Pai

Pai, se eu tivesse sido pequeno, ter-me-ias escrito também cartas do pólo norte e eu talvez tivesse acreditado no pai natal enquanto não descobri na despensa a prenda que recebi quinze dias depois. Hoje, que eu sou criança (finalmente, depois de ter sido velho), é que leio as cartas antes de abrir os presentes todos os natais: são sempre as mesmas (não mandas mais) - que importa?, são suficientes. Mas Pai, não chores santa mónica pelo meu ateísmo em nicolau. Não imagino mesmo como tu sejas a chorar: recordo-te sempre (nas fotografias antigas que a mãe guardou tuas) a sorrires sem estrépito e contente de um segredo, a boca desdobrando-se, como se fosse próprio da anatomia (um sinal de nascença, por exemplo), no cachimbo. Não lamentes, Pai, a minha infância ser uma construção minha enquanto jovem, e eu, como atena, ter crescido pronto-inteiro logo quando hefesto moderno quebrou minha mãe. Aprendi assim, Pai, coisas que os outros se esqueceram de sonhar (Hamlet). Quando tu me contavas, para me embalar (e encarnavas sandman), as estórias de aragorn e éowyn, eu saboreava a melodia de dizer imladris e galadriel para me adormecer como quem conta cordeiros. Tu não te apercebias: eu só o fazia quando tu já tinhas deixado o quarto e abandonado a luz. Dos teus contos, estudei o apêndice E cuidadoso e em segredo, aprendendo a fala primeira do mundo (porquanto arda veio antes de nós). Era aquela a língua pura e pela insistência em me rodear da beleza dos teus mitos permeou-me a beleza dos teus idiomas. Subitamente, as palavras eram como as mulheres: existia-as belas, indiferentes e feias. Redigi uma furiosa catilinária contra os doutores da linguística, e proclamei-lhes o seu erro fundamental: a língua era, mais que um meio de comunicação, um exercício de arte. (Que, de resto, a língua não nasceu para comunicar, mas sim para cortejar as mulheres, já mo tinha ensinado o professor keating na escola). Antes, Pai, eu usava as palavras como quem se serve de uma mulher disponível. Foste tu que me mostraste a falha fundamental disso e me ensinaste a comer as palavras como pêssegos e a deixar os beiços húmidos delas. E em cada fruto de palavra descobri a semente da verdade. Reparei como Deus tinha moldado o mundo pelo império do verbo e sentia cócegas quando me contavas, Pai, os amores das palavras como os amores dos deuses e a sua progenitura. Quis praticar a quiromancia delas e fui penteando o meu quarto com quadros de palavras. As pessoas, quando entravam, interrogavam-me pela razão daquilo e não lhe achavam arte alguma: pobres!, que não sabem olhar por baixo da saia das palavras virgens! E, Pai, quando tu viste quanto eu amava as palavras, criaste mil e uma para mim, uma por cada noite - e chamaste ao conjunto quenya. Resolvi imitar antes do tempo, aulë impaciente, o teu ofício, e construí para mim uma língua e um mundo sobre os teus ensinamentos: para os deuses reservei o celeste c e e, aos ciclopes deixei o f e o v, para as sereias guardei o l, o i e o u, embrulhados de nasais. Pai, nisso fui como o filho pródigo, que te pediu demaisiado cedo a herança sem a saber gerir! Contudo, não me arrependo: tu ficaste feliz, como um pai que aprecia naturalmente os incipientes esforços de um filho para andar. Quis ser arqueólogo da língua e falar indo-europeu para ser entendido por todos. Pai, foste tu que me tornaste filólogo. Um ano depois do gaarder me ter ensinado a filosofar, tu fizeste-me soletrar a genealogia das palavras. Contigo, recuperei algo grego dentre os destroços do tempo: o sentido de beleza, a beleza omnipenetrante e omnipresente. Hoje, que soluço grego, reconheço a sua grandeza como uma mulher nua (pensar no latim, tão áspero, como uma velha). O próprio verbo há-de ser belo, há-de ser límpido, há-de ser puro. Dele transborda a verdade e só a bebem os galahads. Foste tu, Pai, que me ensinaste a apreciar tudo isto e a retirar daqui um prazer pastorício. Hoje (penso que ficarias feliz de o saber), estou inscrito num curso para aprender de vez o fabrico das palavras: e foste tu, Pai, que me levaste até aqui, com o teu sorriso fumado. Obrigado.

In token of my admiration for his genius,

the following philological series is inscribed to


P.S. (póstumo): a dedicatória, roubada a melville, mente. A série nunca foi redigida. A carta, essa, cada dia aumenta de verdade.

segunda-feira, setembro 17, 2007

Quoth The Raven §4: Caricaturas [i.e., Coisas Caricatas]

"Também há sorteios impessoais, de propósitos indefinidos: um decreta que se lance às águas do Eufrates uma safira de Taprobana; outro, que do alto de uma torre se solte uma ave; outro, que em cada século se retire (ou junte) um grão de areia dos inúmeros que há na praia. As consequências às vezes são terríveis."
Jorge Luis Borges, A Lotaria da Babilónia

PARA O LUIS

:
Artigo 67º
a) Aos professores universitários com direito ao uso de Borla e Capelo é vedado atravessarem ou permanecerem debaixo do Arco da Porta Férrea ao badalar da Meia-Noite no relógio da Torre da Universidade.
b) À infracção corresponde a sanção de unhas a aplicar por qualquer doutor da Praxe ou por veterano mesmo à futrica.

Artigo 75º
d) No uso de Capa e Batina, a capa e a batina no caso do sexo masculino e o casaco no caso do sexo feminino não podem estar separadas por uma distância superior a um braço estendido da pessoa a quem pertence.
e) No uso da capa sobre um ombro, esta tem de estar com a gola para a frente.

Artigo 156º
A protecção dada pelos doutores está sujeita às condições seguintes:
a) PUTO - Protege saltando para o dorso do "ANIMAL" e dizendo: NOS QUOQUE GENS SUMUS ET BENE CAVALGARE SABEMUS, ao mesmo tempo que se dirigem para debaixo de telha. [...]

Artigo 157º
A protecção dada pelos futricas está sujeita às condições seguintes:[...]
b) Ser o protector uma senhora que tenha a cabeça coberta por chapéu ou lenço e traga meias.
c) Ser o protector uma sopeira com avental.
[...] A protecção da alínea c) só será eficaz desde que o "animal" se coloque debaixo de avental.

Artigo 160º
b) Os abrigos das paragens dos autocarros, bem assim como todos os telheiros ou alpendres, não protegem. De igual modo os urinóis abertos não protegem, mas ao infractor só pode ser aplicada a sanção depois de ter urinado, ainda que não tenha sido esse o motivo que aí o levou.

Artigo 161º
Os "animais" que levarem consigo guitarra ou viola e demonstrarem, perante a trupe que sabem tocar, ficam protegidos, salvo nos dias em que só há protecção de sangue. Esta protecção tem o nome de protecção do instrumento.

Artigo 162º
Todos os que estiverem fortemente embriagados ficam auto-protegidos, ainda que só haja protecção de sangue. Esta protecção tem o nome de protecção do "Deus Baco".

Da Tourada Ao Lente
Artigo 223º
Constitui "tourada ao lente" a recepção feita pela Academia ao professor universitário, doutorado ou não, nacional ou estrangeiro, no momento em que este se disponha a dar em Coimbra a sua primeira aula teórica a estudantes universitários.

Artigo 224º
Haverá uma "Comissão de Recepção" constituída por cinco caloiros que tomará assento na Mesa da Presidência.

Artigo 225º
O lente toureado, no decurso da "cerimónia" tem a categoria de "animal", como tal devendo ser tratado.

Artigo 226º
À Comissão de Recepção compete elaborar um tema, em latim macarrónico, para a tese que o "animal" irá defender perante o auditório, bem assim como "brindá-lo" com um farto pasto de erva.

Artigo 227º
a) A cerimónia considerar-se-á extinta quando um fitado apadrinhar o toureado, colocando-lhe a pasta sobre a cabeça.
b) Não tendo havido ainda nenhuma imposição de insígnias ou não estando nenhum candeeiro fitado presente, qualquer veterano na Praxe o poderá apadrinhar, cobrindo-lhe a cabeça com uma ponta da capa, que deverá ter sobre os ombros.
c) Se o toureado não estiver a "dar gozo", o apadrinhamento não poderá fazer-se antes de decorridos 15 minutos. Não obstante, se algum doutor o fizer, este considerar-se-á válido.

Artigo 229º
Depois do apadrinhamento todos os doutores presentes devem felicitar o professor, tendo já em atenção a sua verdadeira categoria social e posição dentro da Universidade.

Artigo 261º
a) Os que usarem Pasta da Praxe devem trazer dentro dela, pelo menos um livro de estudo, uma sebenta ou um caderno de apontamentos ou, na falta destes, um papel com o mínimo de cinco palavras escritas pelo seu portador.

Artigo 268º
No grelo pode escrever-se o dia em que este se foi buscar, o dia da latada de imposição e um ponto de interrogação.

Artigo 275º
Aos candeeiros levando consigo as suas insígnias pessoais é vedado transportarem simultaneamente volumes de grandes dimensões.

Artigo 286º
Não é permitido bater palmas na Sala dos Capelos.

Excertos soltos do Código da Praxe 2007


terça-feira, setembro 11, 2007

Ramalhete §1: Variations on a Renowned Tune

ramalhete, s.m. (1679 cf. AVSerm*) 1 pequeno ramo de flores reunidas como arranjo artístico; buquê, ramilhete 2 conjunto de objectos selectos e de especial valor.
Entrada (adaptada) do Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, V

*A obscura indicação refere-se ao primeiro registo conhecido do termo. As coisas belas, certamente, foram estreadas nas grandes línguas e embaladas nas boas mãos. A palavra, diz a certidão, nasceu virgem no tomo 1 dos
Sermoens do Pe. Antonio Vieira, em Lisboa, 1679. Séculos mais tarde, Eça requesitou-a temporariamente para dar nome a uma casa que fechou no final do romance, devolvendo depois a palavra nos termos do contrato.

No outro dia, saí à rua (era início do mês, fui fazer as compras). Liguei o cigarro e arranjei a bicicleta. Pedalei de chapéu até ao mercado frente à catedral. Apalpei as frutas como a uma mulher e alegrei-me da sua maturidade. Pedi à senhora de lenço uns dois quilos e fiquei contente de estar mascardo de cesário, a amar o campo preso na cidade. Noutras bancas completei-me. Montei os sacos no velocípede e rumei a casa. Foi quando reparei na varanda. Parecia (e porque hoje tudo o que parece é mesmo que não o seja e a realidade é o gigantesco mapa de baudrillard que usurpou o mundo) pobre, sem decoração de maior senão a solitária rosa que herdei do monstro, depois que ele casou bela. Corri à florista que habitava a esquina ao lado, largando a bicicleta e os haveres. Ela tinha coisa de vinte e anos e um namorado. Os cabelos castanhos, volumosos, descansavam-lhe cansados do peso sobre os ombros e o mel dos olhos batia certo com o vermelho dos lábios. Pedi-lhe um par de flores, ao seu gosto e agrado. Ela deu-me uma mancheia de cravos, ainda que eu não tivesse espingardas (era, isso não nego, abril, todavia). Voltei a casa. Subi as escadas, procurei no bolso o espanta-espíritos do meu chaveiro e entrei. Poisei as coisas na cozinha e embalei nos braços as flores. Desarrumei do canto da varanda uns vasos velhos, montei-os nas grades e plantei lá os ramalhetes, alegre de alegrar o púlpito.

Da curiosidade e do cuidado urdi os meus ramalhetes, selecções de objectos queridos, e com afecto os exibi na Varanda, procurando a sua maior beleza. A minha superstição é a cabala e, portanto, resolvi por bem que não devia exceder em três o número de flores, e organizei-as em trilogias (algumas adaptadas ao cinema). Eram colecções de coincidências. Diverti-me naquele hobby, e ponderei ser jardineiro como o princepezinho (para todo o jardim ser valioso). Quando a vizinha inferior me confessou a graça da ideia e do gosto, confirmei o projecto. Disse-me serem as flores das suas coisas favoritas: e daí roubei o mote para o ramalhete 1.

Nietzsche foi sábio em muitas coisas e quando disse que tudo regressava, plagiava sem querer o eclesiastes desiludido (1,9). Dawkins, que sempre se julgou um capitão américa da ciência, chamou memes às coisas recriadas e a creative commons tratou de simplificar o processo. Algum dia descobriremos que nunca fizémos nada em séculos senão reescrever a ilíada, com menos sucesso que pierre menard o dom quixote (Ficções, Borges). Tudo se repete - e deus!, há sempre tanta coisa nova porque o homem é mortal! Benção de morrer! Se eu soubesse das coisas que existiram quando platão vivia, o mundo seria uma monotonia insonsa: graças a deus, nesse tempo eu era um cão, muito amigo de pitágoras depois de diógenes me ter expulso do meu canil e ter usurpado o meu nome.

Quando o homem inventou a metáfora, foi porque uma criança, falando à mãe, se enganou (disse a verdade), e em vez de dizer arte disse mar (por isso é que, no fundo de mim, eu sei que quero ser marinheiro e sei que isso é a mesma coisa que escrever). O mar espelha o céu, mas não é o céu; o mar engole o sol, mas liberta a lua; o mar é límpido, mas é profundo (desembrulhem as alegorias). Descarregando-se continuamente sobre o areal, as suas ondas rebentam sistematicamente na costa (são assaz teimosas): nunca porém, uma foi igual à anterior, mau grado a semelhança falsa. Assim na arte: a mesma matéria renasce em substâncias diferentes, formas estranhas às próprias mães, únicas. Um tesouro de família é sempre uma coisa diferente conforme a geração que o vela.

Em 1959, com música de Richard Rogers e letras de Oscar Hammerstein II, estreou-se na Broadway The Sound Of Music, musical que alcançaria fama mundial com a adaptação cinematográfica por Robert Wise em 1965 para a 20th Century Fox, com Julie Andrews. Em Portugal, ficou conhecido como Música no Coração. O filme gozou de enorme sucesso e monotonamente continua a ser repetido ano-sim, ano-não na estação pública. Filme de embalar infâncias, a idade, porém, torna-o num ícone da pior lamechiche que Hollywood pode oferecer. A uma certa altura, cansamo-nos de ser felizes: julgo ser um movimento natural do espírito. As canções, todavia, escondem-se algures nas memórias e persistem na guerrilha. Uma, particularmente, impôs-se: My Favorite Things (com favorite escrito à americana). Relembro-a com a timidez de me deixar levar [instruções: clicar sobre as imagens para aceder aos vídeos].

Confesso que não sou amigo de musicais. Guardo respeito para com Chicago (2002), de Rob Marschall, e, reconheço, um dos filmes por que mais espero actualmente é Sweeney Todd: The Demon Barber of Fleet Street, musical de Tim Burton com Johnny Depp (a minha tia, pelo contrário, quase que apenas gosta de musicais). Sempre tive tendência a ver no musical uma variação do género cómico, do qual jamais fui apreciador, sendo em número restrito as comédias que aceito no meu panteão cinéfilo. Não é de estranhar, pois, que o meu musical favorito seja precisamente o único anti-musical sério de que tenho conhecimento: Dancer In The Dark, do brilhantíssimo Lars von Trier. Esse filme, que arrebatou a Palma de Ouro em 2000 e chegou a ser descrito por Björk, a actriz principal, como "pornografia emocional", é a mais perfeita descontrução dos clichés dos musicais, estética-, musical- e narrativamente (aqui faço um esforço, como um pequeno rapaz a quem a mãe pede que aguente a sua vontade de ir à casa de banho, para não me desdobrar em copiosos elogios e comentários ao filme). Para a sátira ao género ser ainda mais perfeita, Von Trier tem o cuidado de evocar constantemente, como sombra, o The Sound Of Music: Selma, a protagonista, começa o filme num ensaio como Maria. Já na segunda metade do filme, relembrando-se disso, canta [perdoem as legendas italianas]:

[marquei um dia em que escreveria um post dedicado a amanda, vocalista dos Dresden Dolls. no dia em que tomei a decisão, não coloquei uma cruz no calendário e com isso esqueci a data de entrega do trabalho. o professor perdoou-me para inveja dos meus colegas]. Amanda Palmer compôs um dia My Favorite Things. Contente, ensaiou-a no piano sucessivas vezes, até estar do seu agrado total. Satisfeita, chamou Brian à casa e pediu-lhe a opinião da peça. Sem a querer magoar, Brian não disse. Quando ele saiu, ela caiu-se sobre a cama e ligou a Regina. Confessou-lhe que pensava mesmo já incluir a música no Who Killed Amanda Palmer? e estava confiante que o produtor a ia apoiar. Regina disse-lhe que só na noite seguinte podia passar pelo apartamento dela e combinaram então para as 21 do dia depois. Desligado o telefone, Amanda deixou-se adormecer. Acordou com o sol a martelar as janelas. Despiu-se e meteu-se no duche. A água sobre o rosto despertou-a: quando abriu os olhos, lançou um grito. Entristecida, retirou-se do polibã. Vestiu as meias p&b, e começou a maquilhagem. Desenhou as sobrancelhas e começou a pintar os olhos. Subitamente, interrompeu: as lágrimas rolavam-lhe pela face, esborratando tudo pierrot. Com as mãos cobriu o rosto e deixou o corpo nu. Tinha-se esquecido , no entusiasmo de a descobrir, que a música já existia. Ligou a Regina, cancelando o encontro. Procurou na estante um malboro antigo e acendeu-o para o roer. Da noite anterior ainda tinha sobrado perto do lava-loiças um pouco numa garrafa: completou-a. Durante o dia, recusou-se a tocar piano e entreteve-se a ler dorothy parker. Quando a lua poisou pela janela no piano, arriscou a melodia: achou-a intocada e bonita, comprovando que a beleza é um valor superior à verdade. Decidiu mesmo assim admitir nos concertos que a música não era dela: todos, de resto, a reconheceriam, o próprio Brian é que não devia ter tido a coragem de lho dizer. Maldisse elogiando Julie Andrews e tocou:

04-11.09.07

sábado, setembro 01, 2007

Speakers' Corner §8: O Grito dos Órfãos

ARRRRRGHHHHH!

[enrouquecemos a voz até sangrar da garganta como tísicos e uma maria à beira de morrer de vergonha]

.

Ponto final nisto – e ponto de exclamação no nosso grito!

O nosso grito é um ponto de exclamação a exigir um ponto final sem reticências!

Dois pontos agora!

:

Declaramos doravante oficialmente que estamos nediamente aborrecidos de morte.!
Da morte da inteligência e do bom gosto! (e também pode ser da sensibilidade, antero).

Ontem liguei a televisão e a minha casa começou a cheirar mal, como se tivesse um cadáver debaixo de cada sofá. Levantei a poltrona e descobri o corpo mirrado do tamanho de um gato (mas sem as sete vidas dele) da inteligência, agarrado como um quasimodo post-mortem ao cadáver da esmeralda que se chamava aqui bom gosto. Levei os dois ao hospital onde estudiosamente inquiriram a forma de os curar e a fonte da doença. Enquanto aguardava o diagnóstico (houve até quem me tenha vindo felicitar, vendo na minha ansiedade e nas minhas deambulações um sinal de que esperava por que a minha mulher parisse), o doutor house mandou os seus assistentes (convicto de que eu mentia) a minha casa, procurarem o que pudesse ser útil. E quando regressaram, o médico-chefe entendeu a cabala e saindo vitorioso proclamou como um profeta das coisas que já aconteceram, apontando para os seus pacientes: «Aqueles dois sofrem de televisão!». Um espanto inflamou-me o peito: «Doutor, há cura disso?». O homem cofiou o bigode e a careca e replicou sério «Amigo, é urgente destruir a sua televisão!». Como espetado de um hipnotismo lúcido, rumei a casa, tomei o aparelho entre as minhas mãos e enforquei-o nos seus próprios cabos do tecto da minha sala enquanto ele pedia misericórdia.

Mas, ai!, eu sinto-me muito sozinho! Fui a casa do meu amigo: ele tinha a televisão ligada – e continuava sozinho. Dormi essa noite em casa dele, e quando acordámos fomos ambos à casa de banho vomitar o dia anterior como dois romanos depois de uma refeição. Em vão tínhamos visto televisão: o que ela nos dava, passava em muito do prazo dos anos de a aturarmos assim. Tínhamos ambos vinte e anos e sentíamo-nos bastardos da televisão, cinderelas de uma madrasta má. Era um procedimento terrível vermos televisão: tínhamos de descalçar a cabeça, vestir um babete e comer papas às quais não encontrávamos já graça. A televisão, em suma, era um enorme frigorífico vazio que nos deixava a morrer de fome. Era um microondas (até na forma) que não aquecia coisíssima nenhuma. Queríamos alimento, alimento para o pensamento e para a sensibilidade (a sensibilidade, antero!), e ofereciam-nos em vez disso comida da herballife em comprimidos: serviam-nos kunamis e outra fruta podre. No refeitório comum, olhávamos em volta e havia muitas pessoas felizes, que até repetiam o conduto, mas nós não podíamos senão mastigar com amargura e cuspir secretamente para baixo da mesa ou deslizar os restos para o prato do outro ao lado como um calvin sem vontade de comer. E com isto, fomos emagrecendo, das oportunidades perdidas, das coisas que não aprendemos porque nos diziam para não pensarmos. «Pensar é muito desimportante!», diziam as professoras de cana na mão enquanto nós copiávamos (naquela escola, de resto, só copiávamos, nunca escrevíamos composições) quinhentas vezes o ditame. Graças ao moderno plano tecnológico, que a besta da ministra tinha anunciado aquele ano, a professora mostrava-nos muitas imagens, mas a sequência não fazia um filme, nem sequer experimental. Eram estímulos, dizia ela, uma espécie de terapia por cores. Eu e o meu amigo perguntámos, envergonhados, de que doença era essa que sofríamos, para recebermos aquele tratamento. A polida e artificial professora (um pouco como aqueles alunos fictícios a quem pagaram trinta euros) respondeu, atenta à nossa dúvida: «Sofrem de inteligência, meninos, uma doença hoje em dia cada vez mais rara, mas que ainda assim urge combater para ser finalmente erradicada num futuro feliz!» e pontoou a sua alegria com um sorriso de lés a lés na cara. O meu amigo e eu continuámos a observar o vídeo. Tinha muito barulho e era tudo exagerado, como um palhaço a representar tragédias gregas. Os nossos colegas, em volta, divertiam-se, mais do que aparentemente, sinceramente. Para não destoarmos, eu e o meu amigo começámos a rir também com eles (passava na altura uma cena cómica, um homem que, karaokeando, se abanava, levantando, fingindo ser sexy, a camisa). O que eles não sabiam é que não nos ríamos do vídeo – ríamo-nos deles (ainda que o nosso desejo sincero fosse chorar, o que fizemos quando chegámos ao dormitório em que no dia a seguir acordámos para vomitar na casa de banho, como na ressaca de algum ópio novo).

Descobrimos, lentamente, alguns iguais a nós: não tinham, ao contrário do que hoje se exige, permanecido crianças para sempre (no sentido pior da expressão, que não é o que lhe dá o peter pan e que nós partilhamos) e, tendo crescido, fartavam-se dos absurdos da caixa preta (a expressão parecia-nos uma piada de humor negro, como se a televisão, vestida de preto, estivesse de luto por si mesma, na plenitude do paradoxo disso). Formámos um clube dos poetas matadores, marginal ao recreio de todas as outras crianças, e nesse grupo, como um exército de dumbledore, tentávamos, entre livros, aprender o que a umbridge da televisão não nos ensinava. Tínhamos o nosso próprio fahrenheit 451, a sociedade secreta onde mantínhamos vivas inteligência e bom gosto, duas pequenas meninas que havíamos recolhido no bosque (chamávamos bosque às árvores metamorfoseadas em livros sob a forma de papel). Eram queridas eurídices invertidas, cujo espectro, ao contrário da de orfeu, só subsistiria se, permanentemente, as mantivéssemos sob o olhar aberto e atento (da mesma maneira que se conseguiu, décadas longas, enclausurar oneiros, a que chamam também sandman – mau grado a comparação, porém, o shaper nunca estava tão junto a nós do que quando nós estávamos junto a elas, lendo). Os interesses das outras crianças eram-nos cada vez mais distantes. Nós tínhamos, todavia, pena: porque ansiávamos, como uns judeus à espera do messias, pelo dia em que teríamos um keating que nos mostrasse as imagens que o nosso coração e desejo ansiavam por ver: as imagens refasteladas de sentido e provocação, de arte e pensamento – para a nossa idade.

Foi então que se começou a processar uma estranha metamorfose (possivelmente mais bizarra que a de samsa e o seu kafka) entre as crianças. Constatámos que algumas delas iam adquirindo, como amigos de pinóquio transformados em burros, os traços de velhas senhoras idosas, apoiadas em bengalas e encharcadas de rugas (com o hábito, inclusive, de fazer renda). Assustados, fugimos para a nossa caverna, onde, como os cem homens e cem mulheres do dr. estranhoamor, esperámos o fim dos merkwürdige acontecimentos como o fim do holocausto nuclear (sem, contudo, termos qualquer intuito de nos reproduzirmos). Quando emergimos à superfície, haviam-se criado minotauros. As crianças estavam divididas em dois grupos: as que efectivamente tinham permanecido enquanto tal (que, contudo, tais benjamin butlers, haviam recuado ainda um pouco mais na idade que já tinham), e as que se haviam, em plenitude, transfigurado em venerandos idosos (essencialmente do género feminino). Invariavelmente sobre todos caíra o encantamento de robin-puck e estavam por isso com uma cabeça de burro. As professoras, essas, pareciam bastante contentes e continuavam a projectar as suas imagens aos novos alunos que recebiam todos os anos, até o tratamento ludovico 2.0. (onde o outro inibia a liberdade de escolha, este destituía a vítima de inteligência) atingir o seu fim: a estupidificação total dos que a ele eram submetidos. Lamentámos isso tudo, e resolvemos fugir da escola, cansados daquilo e de vomitar todos os dias a porcaria que nos forçavam a tomar.

Procurámos, então, inserir-nos na vida social – em vão. Invariavelmente, das casas onde entrávamos sacudíamos o pó das nossas sandálias. Um enorme sentimento de solidão veio-nos acompanhar a caminhada. Enquanto, como os cegos de saramago, nos movíamos, vagabundos, de casa em casa, em busca de refúgio temporário, fomos ter, sem premeditação, à minha antiga casa, deixada a cair de podre como uma chuva de um telhado. Arrisquei entrar. Lá dentro, espanto meu!, restava a televisão, ainda enforcada no seu cordão umbilical. Com os meus colegas, retirámos o exemplar e concordámos entre nós dissecá-lo para o estudarmos e assim, quiçá, aprendermos algo sobre ele que nos ajudasse a entendê-lo melhor. Foi preciso recolher os instrumentos para a cirurgia. Um de nós trouxe, finalmente, depois de pesquisas avolumadas, um martelo: o utensílio de precisão necessário. Espetámos o martelo no vidro com toda a energia, como um lars von trier em ocupações. Analisámos as entranhas e chegámos a algumas conclusões: a televisão era uma coisa de pré-adolescentes rapazes a masturbarem-se pela primeira vez depois de lhes ter vindo o período raparigas e de velhas viúvas sentadas em casa anos depois da menopausa e da reforma. Entre os dois, um enorme vazio, como o silêncio da televisão enforcada. Dos restos do vidro da televisão, fizemos bocadinhos de óculos que utilizámos para doravante seguir as nossas pesquisas.

Sem dinheiro para comprar nada, muito menos revistas, fomos forçados, para as nossas investigações, a servirmo-nos dos jornais que os lojistas põe nas montras enquanto a loja está de obras. Procurámos aí a programação dos canais – e chorámos todos muito no fim, como se tivéssemos lido a antígona. A coisa, independentemente da estação, abria-se (eventualmente antes servia um prato ligeiro de notícias) com um talkshow que era interrompido, ao almoço, por uma hora de notícias para depois desta pausa continuar de tarde até ao lanche, mas com outro apresentador (suspeitamos – e julgamos ser uma teoria credível – que o intervalo que são as notícias serve somente para mudar os cenários do talkshow, visto que eles são sempre diferentes de tarde do que eram de manhã). Concluído este primeiro programa, segue-se outro, chamado novela (a que, no quarto canal, dão o pomposo e feio nome de ficção portuguesa). Para fabricar a novela, usam os seus autores a receita que deixou garrett enquanto viajava (referia-se o almeida aos românticos, mas serve aos guionistas também). Num exercício barato de platonismo, perante as diferentes novelas de imediato descobrimos o arquétipo e apreendemos a unicidade fundamental delas que nos permite referi-las no singular. A longa novela, contudo, encontra-se dividida entre duas partes fundamentais, como o verso pela cesura, sem que por isso deixe de ser o mesmo verso. Até à hora do jantar, a novela dirige-se às camadas baixas: as crianças e os jovens, ensinando-lhes coisas práticas da vida, relativas à época do cio; aos rapazes, por exemplo, como fornicar com segurança, às raparigas, os chamarizes mais atractivos para o acasalamento. Têm os actores o cuidado (ou a incapacidade de fazer melhor) de reduzir o vocabulário usado a aproximadamente quinhentas palavras, facilitando assim a compreensão da importante mensagem. Depois do telejornal das oito, a novela evolui, aumentando a fasquia da idade (mas mantendo rastejante a da inteligência). O conteúdo, esse, porque não existe, mantém-se igual, borrado de uma lamechiche que, na sua mirabolante fantasia, ao ver-se ao espelho, se julga a doença santa do lirismo. Por fim, há um terceiro tipo de programa (e a esta herética trindade se reduz, virtualmente, o panorama todo da televisão): o telejornal – este é um dos programas de entretenimento mais populares entre os portugueses. A decadência de programas como Imagens Reais ou Olha o Vídeo! só se explica pela usurpação do seu papel pelo telejornal, que os substituiu.

Por comodidade (e também para manter o segredo, não tanto pelo medo que nos roubassem a descoberta, mas mais pelo receio de que se apercebessem de que desdenhávamos do seu deus) passámos a referir entre nós, os exilados, a trilogia de programas possíveis com a sigla sueca TNT. «De facto», concordávamos entre nós, «a caixa negra sem avião é a dinamite da inteligência e do bom gosto!». Tínhamos, contudo, desenrolado o seu ácido desoxirribonucleico. Foi então que um de nós descobriu noutro jornal a programação do fim-de-semana, e watsons desbruçámo-nos sobre a pista que holmes nos transportava. A grande diferença era a profusão, da parte da tarde, de filmes americanos. Assentámos em ver alguns, por mera curiosidade. Depois de um mês, “filme de sábado à tarde” era já um insulto nas nossas bocas, uma expressão de desdenho. E de novo se abateu sobre nós um profundo enjoo, como quem anda num barco em que nunca lhe perguntaram se queria embarcar. A televisão convertia-se à ubiquidade e onde ela passava soltava pegadas de estupidez.

Um canal só, ásterix contra romanos (e romanos, na sua ânsia de pragmatismo e sede de realismo, são, de facto, as outras estações), procurava resistir, alternativo e com o público fiel do nosso clã: o segundo. Clandestinos, entrávamos, porque die fetten jahren sind forbei, em casas alheias, só para usar o canal que os seus habitantes não tinham ousado despertar, como se fosse um dragão (e era, das suas felizes estupidezes). O botão, inicialmente, demonstrava sempre alguma relutância em se baixar, e mesmo a televisão estranhava arrancar naqueles preparos ricos de forma e fundo. Ganhávamos alguma felicidade na contemplação daquele canal como na de uma paisagem bonita. Termos, porém, uma loba que, rómulos e remos, nos amamentava, não tirava de nós a saudade imensa de uma mãe que não encontrávamos na televisão. E sentíamo-nos órfãos, porque, ecce homo!, as duas meninas que havíamos acolhido, não eram mais que as nossas duas mães sáficas (as grandes coisas precisam de ser sempre incumbadas duas vezes, por isso tínhamos todos duas mães). Mas elas, na fábrica de chocolate, deixaram-se transferir um dia para dentro do televisor, dando a vitória a charlie – e, desde então, jamais as redescobrimos.

Como os pais de uma madalena, empreendemos a odisseia de telémaco para descobrir o pai ulisses. Testemunhas de jeová, aos pares fomos de porta em porta, pedindo que nos deixassem entrar rapidamente, apenas para inquirir as respectivas televisões. Entrávamos, ligávamos a televisão e, com grande delicadeza, enquanto um de nós revistava, apalpando com luvas, a tevê (procurando descobrir nalguma ranhura as nossas mães), o outro interrogava o aparelho sobre o paradeiro delas, tentando saber da máquina alguma coisa. Invariavelmente este soltava a mesma réplica: «Aqui mora somente a estupidez, a vileza e a infâmia, as três graças da minha casa». As três senhoras revelavam-se então, mascaradas de bruxas, e, contentes de um macbeth, dançavam à volta de um caldeirão de venenos (a própria televisão). Tinham, para elas as três, um só olho: haviam-se desembaraçado, édipas, dos demais, visto que se serviam da vista apontada sempre ao mesmo alvo: o quadrado das imagens. Tinham também um só dente, que cheguei, numa das minhas visitas a uma certa casa, a confundir com uma pipoca. Com uma certa desilusão, separávamo-nos dos donos da casa, agradecendo sempre a gentileza de nos terem deixado entrar.

Doravante chamámo-nos órfãos, porque não encontrámos jamais as nossas mães. E onde quer que ligássemos a tv, aí nos sentíamos longe de casa. Habituados, da nossa vida de vagabundos, a do lixo tirar o pouco aproveitável, tivemos de recorrer à mesma esperteza para quando víamos televisão: sobram-nos meia dúzia de séries depois da meia-noite para nos calarem. Mas a fome, a fome!, continua lá! A fome de arte e de cultura! A televisão portuguesa é uma televisão de eunucos cerebrais. No campus universitário desligámos todas as televisões até apanharem aranhas. Nós somos a geração não atendida, talvez porque não entendida – mas certamente entediada. Um aborrecimento mortal consome-nos quando ligamos a televisão e aqueles que dentre nós já estão a trabalhar no mestrado (para se abilitarem a ser professores, veja-se), redigiram um dicionário em que como sinónimo de televisão aparece estupidez. No outro dia, sub arboribus, com a minha namorada, assentámos em quando casarmos não comprarmos televisão, tendo concluído mutuamente a sua inutilidade (depois disto dei-lhe um beijo). Ninguém nos liga nenhuma: e nós não ligamos a televisão.

[cara de birra, sobrancelhas ferradas e braços cruzados; retirada de cena na pose altiva da razão]

17.08.07