ARRRRRGHHHHH! [enrouquecemos a voz até sangrar da garganta como tísicos e uma maria à beira de morrer de vergonha]
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Ponto final nisto – e ponto de exclamação no nosso grito!
O nosso grito é um ponto de exclamação a exigir um ponto final sem reticências!
Dois pontos agora!
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Declaramos doravante oficialmente que estamos nediamente aborrecidos de morte.!
Da morte da inteligência e do bom gosto! (e também pode ser da sensibilidade, antero).
Ontem liguei a televisão e a minha casa começou a cheirar mal, como se tivesse um cadáver debaixo de cada sofá. Levantei a poltrona e descobri o corpo mirrado do tamanho de um gato (mas sem as sete vidas dele) da inteligência, agarrado como um quasimodo post-mortem ao cadáver da esmeralda que se chamava aqui bom gosto. Levei os dois ao hospital onde estudiosamente inquiriram a forma de os curar e a fonte da doença. Enquanto aguardava o diagnóstico (houve até quem me tenha vindo felicitar, vendo na minha ansiedade e nas minhas deambulações um sinal de que esperava por que a minha mulher parisse), o doutor house mandou os seus assistentes (convicto de que eu mentia) a minha casa, procurarem o que pudesse ser útil. E quando regressaram, o médico-chefe entendeu a cabala e saindo vitorioso proclamou como um profeta das coisas que já aconteceram, apontando para os seus pacientes: «Aqueles dois sofrem de televisão!». Um espanto inflamou-me o peito: «Doutor, há cura disso?». O homem cofiou o bigode e a careca e replicou sério «Amigo, é urgente destruir a sua televisão!». Como espetado de um hipnotismo lúcido, rumei a casa, tomei o aparelho entre as minhas mãos e enforquei-o nos seus próprios cabos do tecto da minha sala enquanto ele pedia misericórdia.
Mas, ai!, eu sinto-me muito sozinho! Fui a casa do meu amigo: ele tinha a televisão ligada – e continuava sozinho. Dormi essa noite em casa dele, e quando acordámos fomos ambos à casa de banho vomitar o dia anterior como dois romanos depois de uma refeição. Em vão tínhamos visto televisão: o que ela nos dava, passava em muito do prazo dos anos de a aturarmos assim. Tínhamos ambos vinte e anos e sentíamo-nos bastardos da televisão, cinderelas de uma madrasta má. Era um procedimento terrível vermos televisão: tínhamos de descalçar a cabeça, vestir um babete e comer papas às quais não encontrávamos já graça. A televisão, em suma, era um enorme frigorífico vazio que nos deixava a morrer de fome. Era um microondas (até na forma) que não aquecia coisíssima nenhuma. Queríamos alimento, alimento para o pensamento e para a sensibilidade (a sensibilidade, antero!), e ofereciam-nos em vez disso comida da herballife em comprimidos: serviam-nos kunamis e outra fruta podre. No refeitório comum, olhávamos em volta e havia muitas pessoas felizes, que até repetiam o conduto, mas nós não podíamos senão mastigar com amargura e cuspir secretamente para baixo da mesa ou deslizar os restos para o prato do outro ao lado como um calvin sem vontade de comer. E com isto, fomos emagrecendo, das oportunidades perdidas, das coisas que não aprendemos porque nos diziam para não pensarmos. «Pensar é muito desimportante!», diziam as professoras de cana na mão enquanto nós copiávamos (naquela escola, de resto, só copiávamos, nunca escrevíamos composições) quinhentas vezes o ditame. Graças ao moderno plano tecnológico, que a besta da ministra tinha anunciado aquele ano, a professora mostrava-nos muitas imagens, mas a sequência não fazia um filme, nem sequer experimental. Eram estímulos, dizia ela, uma espécie de terapia por cores. Eu e o meu amigo perguntámos, envergonhados, de que doença era essa que sofríamos, para recebermos aquele tratamento. A polida e artificial professora (um pouco como aqueles alunos fictícios a quem pagaram trinta euros) respondeu, atenta à nossa dúvida: «Sofrem de inteligência, meninos, uma doença hoje em dia cada vez mais rara, mas que ainda assim urge combater para ser finalmente erradicada num futuro feliz!» e pontoou a sua alegria com um sorriso de lés a lés na cara. O meu amigo e eu continuámos a observar o vídeo. Tinha muito barulho e era tudo exagerado, como um palhaço a representar tragédias gregas. Os nossos colegas, em volta, divertiam-se, mais do que aparentemente, sinceramente. Para não destoarmos, eu e o meu amigo começámos a rir também com eles (passava na altura uma cena cómica, um homem que, karaokeando, se abanava, levantando, fingindo ser sexy, a camisa). O que eles não sabiam é que não nos ríamos do vídeo – ríamo-nos deles (ainda que o nosso desejo sincero fosse chorar, o que fizemos quando chegámos ao dormitório em que no dia a seguir acordámos para vomitar na casa de banho, como na ressaca de algum ópio novo).
Descobrimos, lentamente, alguns iguais a nós: não tinham, ao contrário do que hoje se exige, permanecido crianças para sempre (no sentido pior da expressão, que não é o que lhe dá o peter pan e que nós partilhamos) e, tendo crescido, fartavam-se dos absurdos da caixa preta (a expressão parecia-nos uma piada de humor negro, como se a televisão, vestida de preto, estivesse de luto por si mesma, na plenitude do paradoxo disso). Formámos um clube dos poetas matadores, marginal ao recreio de todas as outras crianças, e nesse grupo, como um exército de dumbledore, tentávamos, entre livros, aprender o que a umbridge da televisão não nos ensinava. Tínhamos o nosso próprio fahrenheit 451, a sociedade secreta onde mantínhamos vivas inteligência e bom gosto, duas pequenas meninas que havíamos recolhido no bosque (chamávamos bosque às árvores metamorfoseadas em livros sob a forma de papel). Eram queridas eurídices invertidas, cujo espectro, ao contrário da de orfeu, só subsistiria se, permanentemente, as mantivéssemos sob o olhar aberto e atento (da mesma maneira que se conseguiu, décadas longas, enclausurar oneiros, a que chamam também sandman – mau grado a comparação, porém, o shaper nunca estava tão junto a nós do que quando nós estávamos junto a elas, lendo). Os interesses das outras crianças eram-nos cada vez mais distantes. Nós tínhamos, todavia, pena: porque ansiávamos, como uns judeus à espera do messias, pelo dia em que teríamos um keating que nos mostrasse as imagens que o nosso coração e desejo ansiavam por ver: as imagens refasteladas de sentido e provocação, de arte e pensamento – para a nossa idade.
Foi então que se começou a processar uma estranha metamorfose (possivelmente mais bizarra que a de samsa e o seu kafka) entre as crianças. Constatámos que algumas delas iam adquirindo, como amigos de pinóquio transformados em burros, os traços de velhas senhoras idosas, apoiadas em bengalas e encharcadas de rugas (com o hábito, inclusive, de fazer renda). Assustados, fugimos para a nossa caverna, onde, como os cem homens e cem mulheres do dr. estranhoamor, esperámos o fim dos merkwürdige acontecimentos como o fim do holocausto nuclear (sem, contudo, termos qualquer intuito de nos reproduzirmos). Quando emergimos à superfície, haviam-se criado minotauros. As crianças estavam divididas em dois grupos: as que efectivamente tinham permanecido enquanto tal (que, contudo, tais benjamin butlers, haviam recuado ainda um pouco mais na idade que já tinham), e as que se haviam, em plenitude, transfigurado em venerandos idosos (essencialmente do género feminino). Invariavelmente sobre todos caíra o encantamento de robin-puck e estavam por isso com uma cabeça de burro. As professoras, essas, pareciam bastante contentes e continuavam a projectar as suas imagens aos novos alunos que recebiam todos os anos, até o tratamento ludovico 2.0. (onde o outro inibia a liberdade de escolha, este destituía a vítima de inteligência) atingir o seu fim: a estupidificação total dos que a ele eram submetidos. Lamentámos isso tudo, e resolvemos fugir da escola, cansados daquilo e de vomitar todos os dias a porcaria que nos forçavam a tomar.
Procurámos, então, inserir-nos na vida social – em vão. Invariavelmente, das casas onde entrávamos sacudíamos o pó das nossas sandálias. Um enorme sentimento de solidão veio-nos acompanhar a caminhada. Enquanto, como os cegos de saramago, nos movíamos, vagabundos, de casa em casa, em busca de refúgio temporário, fomos ter, sem premeditação, à minha antiga casa, deixada a cair de podre como uma chuva de um telhado. Arrisquei entrar. Lá dentro, espanto meu!, restava a televisão, ainda enforcada no seu cordão umbilical. Com os meus colegas, retirámos o exemplar e concordámos entre nós dissecá-lo para o estudarmos e assim, quiçá, aprendermos algo sobre ele que nos ajudasse a entendê-lo melhor. Foi preciso recolher os instrumentos para a cirurgia. Um de nós trouxe, finalmente, depois de pesquisas avolumadas, um martelo: o utensílio de precisão necessário. Espetámos o martelo no vidro com toda a energia, como um lars von trier em ocupações. Analisámos as entranhas e chegámos a algumas conclusões: a televisão era uma coisa de pré-adolescentes rapazes a masturbarem-se pela primeira vez depois de lhes ter vindo o período raparigas e de velhas viúvas sentadas em casa anos depois da menopausa e da reforma. Entre os dois, um enorme vazio, como o silêncio da televisão enforcada. Dos restos do vidro da televisão, fizemos bocadinhos de óculos que utilizámos para doravante seguir as nossas pesquisas.
Sem dinheiro para comprar nada, muito menos revistas, fomos forçados, para as nossas investigações, a servirmo-nos dos jornais que os lojistas põe nas montras enquanto a loja está de obras. Procurámos aí a programação dos canais – e chorámos todos muito no fim, como se tivéssemos lido a antígona. A coisa, independentemente da estação, abria-se (eventualmente antes servia um prato ligeiro de notícias) com um talkshow que era interrompido, ao almoço, por uma hora de notícias para depois desta pausa continuar de tarde até ao lanche, mas com outro apresentador (suspeitamos – e julgamos ser uma teoria credível – que o intervalo que são as notícias serve somente para mudar os cenários do talkshow, visto que eles são sempre diferentes de tarde do que eram de manhã). Concluído este primeiro programa, segue-se outro, chamado novela (a que, no quarto canal, dão o pomposo e feio nome de ficção portuguesa). Para fabricar a novela, usam os seus autores a receita que deixou garrett enquanto viajava (referia-se o almeida aos românticos, mas serve aos guionistas também). Num exercício barato de platonismo, perante as diferentes novelas de imediato descobrimos o arquétipo e apreendemos a unicidade fundamental delas que nos permite referi-las no singular. A longa novela, contudo, encontra-se dividida entre duas partes fundamentais, como o verso pela cesura, sem que por isso deixe de ser o mesmo verso. Até à hora do jantar, a novela dirige-se às camadas baixas: as crianças e os jovens, ensinando-lhes coisas práticas da vida, relativas à época do cio; aos rapazes, por exemplo, como fornicar com segurança, às raparigas, os chamarizes mais atractivos para o acasalamento. Têm os actores o cuidado (ou a incapacidade de fazer melhor) de reduzir o vocabulário usado a aproximadamente quinhentas palavras, facilitando assim a compreensão da importante mensagem. Depois do telejornal das oito, a novela evolui, aumentando a fasquia da idade (mas mantendo rastejante a da inteligência). O conteúdo, esse, porque não existe, mantém-se igual, borrado de uma lamechiche que, na sua mirabolante fantasia, ao ver-se ao espelho, se julga a doença santa do lirismo. Por fim, há um terceiro tipo de programa (e a esta herética trindade se reduz, virtualmente, o panorama todo da televisão): o telejornal – este é um dos programas de entretenimento mais populares entre os portugueses. A decadência de programas como Imagens Reais ou Olha o Vídeo! só se explica pela usurpação do seu papel pelo telejornal, que os substituiu.
Por comodidade (e também para manter o segredo, não tanto pelo medo que nos roubassem a descoberta, mas mais pelo receio de que se apercebessem de que desdenhávamos do seu deus) passámos a referir entre nós, os exilados, a trilogia de programas possíveis com a sigla sueca TNT. «De facto», concordávamos entre nós, «a caixa negra sem avião é a dinamite da inteligência e do bom gosto!». Tínhamos, contudo, desenrolado o seu ácido desoxirribonucleico. Foi então que um de nós descobriu noutro jornal a programação do fim-de-semana, e watsons desbruçámo-nos sobre a pista que holmes nos transportava. A grande diferença era a profusão, da parte da tarde, de filmes americanos. Assentámos em ver alguns, por mera curiosidade. Depois de um mês, “filme de sábado à tarde” era já um insulto nas nossas bocas, uma expressão de desdenho. E de novo se abateu sobre nós um profundo enjoo, como quem anda num barco em que nunca lhe perguntaram se queria embarcar. A televisão convertia-se à ubiquidade e onde ela passava soltava pegadas de estupidez.
Um canal só, ásterix contra romanos (e romanos, na sua ânsia de pragmatismo e sede de realismo, são, de facto, as outras estações), procurava resistir, alternativo e com o público fiel do nosso clã: o segundo. Clandestinos, entrávamos, porque die fetten jahren sind forbei, em casas alheias, só para usar o canal que os seus habitantes não tinham ousado despertar, como se fosse um dragão (e era, das suas felizes estupidezes). O botão, inicialmente, demonstrava sempre alguma relutância em se baixar, e mesmo a televisão estranhava arrancar naqueles preparos ricos de forma e fundo. Ganhávamos alguma felicidade na contemplação daquele canal como na de uma paisagem bonita. Termos, porém, uma loba que, rómulos e remos, nos amamentava, não tirava de nós a saudade imensa de uma mãe que não encontrávamos na televisão. E sentíamo-nos órfãos, porque, ecce homo!, as duas meninas que havíamos acolhido, não eram mais que as nossas duas mães sáficas (as grandes coisas precisam de ser sempre incumbadas duas vezes, por isso tínhamos todos duas mães). Mas elas, na fábrica de chocolate, deixaram-se transferir um dia para dentro do televisor, dando a vitória a charlie – e, desde então, jamais as redescobrimos.
Como os pais de uma madalena, empreendemos a odisseia de telémaco para descobrir o pai ulisses. Testemunhas de jeová, aos pares fomos de porta em porta, pedindo que nos deixassem entrar rapidamente, apenas para inquirir as respectivas televisões. Entrávamos, ligávamos a televisão e, com grande delicadeza, enquanto um de nós revistava, apalpando com luvas, a tevê (procurando descobrir nalguma ranhura as nossas mães), o outro interrogava o aparelho sobre o paradeiro delas, tentando saber da máquina alguma coisa. Invariavelmente este soltava a mesma réplica: «Aqui mora somente a estupidez, a vileza e a infâmia, as três graças da minha casa». As três senhoras revelavam-se então, mascaradas de bruxas, e, contentes de um macbeth, dançavam à volta de um caldeirão de venenos (a própria televisão). Tinham, para elas as três, um só olho: haviam-se desembaraçado, édipas, dos demais, visto que se serviam da vista apontada sempre ao mesmo alvo: o quadrado das imagens. Tinham também um só dente, que cheguei, numa das minhas visitas a uma certa casa, a confundir com uma pipoca. Com uma certa desilusão, separávamo-nos dos donos da casa, agradecendo sempre a gentileza de nos terem deixado entrar.
Doravante chamámo-nos órfãos, porque não encontrámos jamais as nossas mães. E onde quer que ligássemos a tv, aí nos sentíamos longe de casa. Habituados, da nossa vida de vagabundos, a do lixo tirar o pouco aproveitável, tivemos de recorrer à mesma esperteza para quando víamos televisão: sobram-nos meia dúzia de séries depois da meia-noite para nos calarem. Mas a fome, a fome!, continua lá! A fome de arte e de cultura! A televisão portuguesa é uma televisão de eunucos cerebrais. No campus universitário desligámos todas as televisões até apanharem aranhas. Nós somos a geração não atendida, talvez porque não entendida – mas certamente entediada. Um aborrecimento mortal consome-nos quando ligamos a televisão e aqueles que dentre nós já estão a trabalhar no mestrado (para se abilitarem a ser professores, veja-se), redigiram um dicionário em que como sinónimo de televisão aparece estupidez. No outro dia, sub arboribus, com a minha namorada, assentámos em quando casarmos não comprarmos televisão, tendo concluído mutuamente a sua inutilidade (depois disto dei-lhe um beijo). Ninguém nos liga nenhuma: e nós não ligamos a televisão.
[cara de birra, sobrancelhas ferradas e braços cruzados; retirada de cena na pose altiva da razão]
17.08.07