Há uma semana que aqui estou para te escrever, Rita, mas todo um conjunto de circunstâncias, maçudo para ser enumerado, me impediu. Estou a comentar tendo o teu texto ao lado, por isso vou seguir a tua ordem de argumentação.
Parece-me que Frei Bento Domingues, na frase que citas, cai numa falácia. Não se trata, e nisso concordo, como ele bem diz, de saber quem é ou quem não é pelo aborto. (Abro aqui um parêntesis: parece-me que há dois tipos de "sim": um humanista, outro ideológico. O humanista - no qual tu nitidamente te inseres - coloca a tónica no problema do aborto clandestino e do problema que ele representa; o ideológico defende que o aborto é, efectivamente, um direito da mulher, e estes, não sendo pelo aborto, não são contra o aborto, no sentido em que não reconhecem nele necessariamente um mal, algo,
a priori, nefasto. Eu sei que parece incrível como pode haver pessoas que não vejam no aborto um mal em si - e partilho parte da tua ingenuidade, como lhe chamaste. Porém, parece indesmentível que as há, ainda que sejam uma minoria e se filiem, normalmente, mais à esquerda - apesar de, obviamente, o aborto não ser uma questão política. Se faço uma falsa leitura da realidade, peço desculpa: às vezes tenho os óculos embaciados).
Volto a Frei Bento Domingues, mas, desta feita, à segunda parte da sua afirmação, com a qual já discordo, em que ele diz: "
mas quem é ou não pela penalização da mulher que aborta neste prazo e nestas condições". Aqui entramos numa questão, parece-me, importante. O que vou afirmar é já um
clichê e peço desculpa por o repetir: para além da despenalização, está também em causa neste referendo a liberalização do aborto. Passo agora a explicar isto da melhor forma que me é possível, de modo a poder contribuir para te elucidar relativamente a como é possível que haja partidários do "não" que, ainda assim, defendam a despenalização - dúvida esta que expressaste no teu último comentário.
O que neste referendo se vota não é só "
quem é ou não pela penalização da mulher que aborta" mas "
quem é ou não pela penalização da mulher que aborta neste prazo e nestas condições", que, acrescento, lhe são oferecidas pelo Estado.
Antes que continue, sou forçado a declarar-me ignorante do calão jurídico exacto e preciso, pelo que, juridicamente, posso não rotular tudo correctamente: porém, penso que conseguirei transmitir a minha ideia. Tomemos o caso da droga, que penso que é muito claro para ilustrar esta ideia. Consumir droga, tanto quanto saiba, e peço desculpa se estou mal informado e por isso estou a apresentar argumentos inúteis e falsos; consumir droga, dizia, não é crime, mas somente ilegal, em Portugal. Eu não vou para a prisão por consumir droga, nem sequer vou a tribunal: simplesmente a droga é-me apreendida, porque é ilegal o seu consumo. Contudo, o tráfego de droga, esse sim, é não só ilegal como punível com prisão. Porquê esta diferença? Eu, que não sou jurista e disso pouco ou nada entendo, arrisco-me a dizer que tal se deve ao facto de o traficante arrecadar dinheiro do tráfego (ou seja, tem proveito próprio) enquanto o consumidor acaba por sofrer, já que a droga leva à sua auto-destruição. Assim, porque,
a priori, o consumidor já é punido por si próprio e pela vida, a sociedade escusa-se a puni-lo, tendo em conta o seu sofrimento auto-inflingido. Agora, o traficante, esse, que lucrou com a miséria dos outros, justamente deve ser punido. Algo, contudo, é inequívoco: a droga é vista como algo inerentemente mau, daí o Estado considerá-la ilegal.
Transferindo agora este exemplo para o caso do aborto e para a proposta de despenalização, mas não liberalização, do aborto, temos que o aborto seria despenalizado, visto a mulher que aborta sofrer bastante em todo o processo e, portanto, não necessitar de um sofrimento adicional inflingido pela sociedade. Porém, o aborto poderia, coerentemente, como no caso da droga, continuar a ser ilegal, uma vez que o Estado o reconheceria como algo intrinsecamente negativo. Mais, as abortadeiras, tal como os traficantes, seriam, essas sim, punidas, por lucrarem com o desespero e sofrimento dos outros.
Portanto, apesar da genialidade cómica do
sketch do Gato Fedorento em que, na pessoa do professor Marcelo, gozavam com esta posição de alguns defensores do "não", ela está longe de ser inconsistente ou incoerente ou paradoxal, parece-me, tendo mesmo paralelos com outras situações na lei, como a da droga.
Poder-se-ia agora argumentar que tudo isto é muito interessante, mas mais interessante ainda é só agora, em campanha, com a ameaça de perderem, os movimentos do "não" começarem a apoiar estas alternativas mais liberais, apesar de tudo. Ora o erro neste pensamento (eu sei que tu não disseste isto, Rita, estou simplesmente a fazer o contraditório a mim mesmo) é julgar que os movimentos do "não" já não o propuseram antes mesmo do referendo. De facto, no Verão passado, uma inciativa legislativa de cidadãos -
Proteger a Vida sem Julgar a Mulher - procurou exactamente isso.
Eu sou contra a penalização da mulher que aborta. Por isso, consequentemente, deveria votar "sim". Porém, a pergunta, para além de questionar o cidadão sobre a penalização ou despenalização, adicionalmente, interroga-o sobre a o direito ou não da mulher a abortar em estabelecimento legalmente autorizado nas primeiras dez semanas. Se nos limitássemos a despenalizar o aborto, este continuaria a ser praticado clandestinamente, porque ilegal, mas não seria punido. Não é isso que vai acontecer no referendo se o "sim" ganhar: o aborto passa a ser um direito (ainda que não consagrado juridicamente enquanto tal, como indicas) da mulher - trata-se não da despenalização, mas sim da legalização (termo quiçá mais elucidativo que "liberalização", que usei até agora) do aborto.
Adenda: tenho estado sempre a utilizar o termo "despenalização" como sinónimo de algo deixar de ser punível, mas, ainda assim, permanecer ilegal.Falas, citando Vital Moreira, de "desclandestinização". Podia recorrer agora aqui a alguns argumentos, como dizer que o aborto clandestino vai continuar depois das dez semanas (que se revelaram insuficientes, por exemplo, no caso francês, que sentiu depois a necessidade de alongar o prazo para as doze). Porém, isso seria desviar o problema para números e estatísticas que, pela sua própria natureza, são, tendencialmente, perigosos.
Aqui chegamos a um ponto de base, penso eu. Tu, perdoa-me se te estou a interpretar mal, pareces-me essencialmente realista, enquanto eu me posiciono como idealista. Isto é, temos um facto: o aborto clandestino existe e prejudica, muitas vezes, a saúde das mulheres de uma maneira que não se pode subvalorizar. Tu, enquanto realista, face a este facto, na tua postura humanista, procurando aliviar o sofrimento dessas mulheres, e sabendo que o aborto continuará, legal ou não, preferes legalizá-lo. Eu, sabendo que o aborto continuará, teimo, ainda assim, em acreditar que poderemos inverter essa tendência por toda uma série de acções e instituições, olhando para a legalização do aborto como uma concessão no sentido errado.
Quero que se saiba: não estou a censurar a tua posição. Sei que a tua intenção é boa e é bom o espírito que te anima, um olhar humanista sobre o sofrimento alheio. Simplesmente, parece-me, divergimos na forma como olhamos para o futuro - o que não é necessariamente mau ou bom, mas tão simplesmente diferente.
É verdade que a Educação Sexual está no papel há mais de vinte anos; que os contraceptivos, apesar de serem cada vez mais vendidos, continuam a não ser utilizados por alguns casais; que as instituições sociais que surgiram depois do referndo de 1998 têm vindo a fazer um trabalho imenso a ajudar as mulheres, mas, que, contudo, esse trabalho se tem revelado insuficiente (certamente, em parte, por falta de apoios), ou o aborto clandestino ter-se-ia reduzido para números (ainda que todos os números, nesta matéria, sejam incertos) virtualmente insignificantes. Porém, eu acredito que é este o caminho. Legalizar o aborto - ainda que só como passo provisório para uma crescente redução dos abortos em resultado das medidas já hoje praticadas e anteriormente anunciadas - parece-me ser desnecessário, visto que legalizar o aborto, penso eu, não reduzirá o aborto: qualquer redução do número de abortos, julgo, resultará de outros factores. Legalizar o aborto não é combater o aborto, mas sim, na melhor das hipóteses, minimizar o sofrimento físico (o psicológico, esse, a haver, é irredutível) das mulheres.
Aqui, faria, a pena de me tornar repetitivo, mais um paralelo com a droga: obviamente que o consumo de droga causa sequelas (e, como todos sobejamente sabemos, mortes) - é tarefa da sociedade, ainda que censure esse comportamento, ajudar os que se drogam, "limpando-os" e reabilitando-os, prestando-lhes o serviço médico necessário para, de alguma forma, minorar as consequências do seu mau gesto. O mesmo penso que podia ser dito para o aborto - e peço desculpa se, enquanto escrevo, não estou a medir o alcance da comparação e, de alguma forma, me estou a arriscar a parecer desumano ou se estou mesmo a sê-lo. Se esta comparação que tenho vindo aqui a usar enferma de um erro de base grave, por favor, apontem-mo para eu me corrigir e não usar mais esta metáfora noutras conversas.
Avanças em seguida para a questão do começo da vida humana. Dizes: "
O problema é que, para despenalizar o aborto, para acrescentar uma alínea ao artigo do Código Penal, será sempre preciso estabelecer um prazo, sob pena de se cair na arbitrariedade total." Sei que o projecto do PCP prevê, coerentemente, que nunca se penalize a mulher, independentemente da semana em que praticar o aborto. O problema emerge quando falamos da tal "legalização" do aborto, porque, penso que parece claro à maioria das pessoas, independentemente da sua posição, o aborto, mesmo que legal, não o pode ser até aos trabalhos de parto.
Contudo, interrogo-me, não será também arbitrariedade total o prazo estabelecido? Citaste o Pe. Anselmo Borges: "
a gestação é um processo contínuo até ao nascimento. Há, no entanto, alguns “marcos” que não devem ser ignorados." Parece-me que se pode considerar justamente um desses marcos o momento em que o coração passa a bater, algo que sucede antes das 10 semanas (21 dias depois da concepção: vide
Wikipedia). Parecer-me-ia mais razoável - ainda que continuasse a discordar - legalizar o aborto antes das cinco semanas (altura em que o coração passa a bater) do que antes das dez. Se o cérebro é importante, não menos relevante me parece o coração, e não sinto dificuldade em dá-lo como um dos «marcos» de que falava o Pe. Anselmo Borges, repito. O cérebro aparece-me apenas como o estágio de desenvolvimento mais importante - e não o decisivo - do embrião depois do coração ter começado a bater.
Quanto à questão do morte cerebral como data e marca da morte, as duas situações não se me apresentam comparáveis: é que, no doente "terminal", o coração, já com o cérebro morto, é mantido a bater mas por intermédio único de uma máquina, não por meios naturais; em contrapartida, no caso do embrião, o coração bate por si, representando assim a clara existência de uma vida autónoma. E, independentemente dessa vida ser uma «pessoa» ou não (não entrarei aqui nesse debate), é, julgo, inequivocamente, uma vida. Chamo, para concluir este ponto, a atenção para a definição de "
ser vivo" (a respeito da definição apresentada, resalvo que o embrião, obviamente, é incapaz de se reproduzir, mas tem essa potência, como as crianças). E este ser vivo, sabêmo-lo, pertence inevitavelmente à espécie
homo sapiens sapiens, pelo que é, dito mais simplesmente, um ser humano (se é pessoa ou não é uma questão bem mais complexa, pela qual, se me desculpas, não enveredarei agora).
Escreves mais à frente: "
O que vai a referendo é, como disse no início, saber se uma mulher que faça um aborto no prazo e nas condições previstas deve ou não ser penalizada." Como já procurei - com sucesso ou sem ele - responder a este argumento anteriormente, mostrando como, para além da despenalização votamos também a legalização do aborto, não o abordarei de novo aqui.
"
A única fragilidade deste argumento é que, votando não e mantendo o aborto clandestino tal como está, o direito à vida do embrião continuará a ser violado descaradamente – e o da mulher também." Concluis assim. Sobre isto também já disse anteriormente a razão do nosso diferendo: tu seres realista, eu idealista. E, repito, esta constatação da nossa diferença não implica nenhum juízo de valor negativo, porque te sei como um "sim" humanista e não ideológico, o que, porém, também não implica que siga a tua opinião.
Gostei de ler o que escreveste e gostei de escrever esta resposta, pois obrigou-me também a pensar muito na minha própria posição. Dia 11, logo saberemos, de noite, os resultados. Aconteça o que acontecer, depois teremos sempre uma luta comum: a de reduzir o número de abortos. Estou convencido que o "sim" triunfará. Depois veremos o rumo que as coisas tomarão: não defendo de modo nenhum cenários apocalípticos como certos defensores do "não", nem me arrisco a dizer que o número de abortos vai necessariamente aumentar: duvido é que baixe, mau grado o recentíssimo aconselhamento que agora o PS quer introduzir no projecto-lei.
Mais uma vez, obrigado pelo teu texto e pela oportunidade de reflexão mútua que abriu; texto calmo, no meio de tanta trapalhada (como se calhar é a minha resposta) que circunda
out there.