quarta-feira, janeiro 06, 2010

Leitores Atentos §1

Iliacosque iterum demens audire labores
exposcit pendetque iterum narrantis ab ore.
Eneida, IV.78-79

Da boca do facundo Capitão
pendendo estavam todos, embebidos.
Os Lusíadas, V.90.1-2.

Lembro-me ainda de traduzir esta passagem da Eneida numa aula e da dificuldade de verter «pendet ab ore» de forma adequada. Tida por demasiado rude, a tradução literal era preterida em favor da mais poética «suspensa dos lábios do narrador», a forma adoptada, por exemplo, na edição portuguesa da FLUL (2005, Bertrand). Na minha tendência para concretizar visualmente as metáforas dos textos — devo isto, acredito, aos futuristas italianos:
Daremos cor ao diálogo [...] mostrando cada imagem que passa pelos cérebros dos actores. Por exemplo, ao representar um homem que diz à sua mulher «és tão amorosa como uma gazela», deveremos mostrar a gazela.
Manifesto do Cinema Futurista (1916)
— imaginava Dido agarrada, pequenina, aos lábios de Eneias, suspensa, como Catilina do rochedo (Aen. VIII.667-9) ou Hera castigada. Gostava genuinamente da expressão, por isso não pude deixar de a reconhecer ao ler, ontem, o Canto V dos Lusíadas. Camões não receia decalcar de perto a imagem virgiliana, sem pudor de usar o termo, talvez violento, mas mais fiel, de boca. Os escritores antigos, ou talvez seja mais correcto dizer: os escritores grandes, não guardam estes pruridos líricos que, a tempos, ainda alimentamos: amam a língua inteira, não têm vergonha de mostrar a mulher nua aos convidados, porque a sabem toda bela — e toda deles. Shakespeare, apercebi-me disso recentemente, ao ler Júlio César, recorre abundantemente a stomach e a metáforas de ordem digestiva, e isso não quer nenhum efeito irónico, como em Eça. A Íliada é uma leitura necessária para reaprendermos a simplicidade que aparelha o luto e a comida e permite estas palavras (XXIV.599-602):
O teu filho te foi restituído, ó ancião, como pediste,
e jaz num esquife. Ao nascer da aurora o poderás
contemplar e levar. Mas agora pensemos na refeição.
Trad.: Frederico Lourenço, Cotovia, 2005.
Doravante, Dido está oficialmente «pendurada da boca do poeta» (Camões legitima a tradução), talvez olhando lá para dentro, procurando as palavras não-ditas, escondidas, de asa quebrada, que não furaram ainda, de penas rotas (ícaros que se reparam com nova cera), a barreira dos dentes do anti-herói.

imagens: 1. Eneias Conta a Dido a Queda de Tróia, de Pierre Narcisse Guerin, 1815 (@ Louvre). 2. Vasco da Gama entrega a carta do rei Dom Manuel I de Portugal ao Samorim de Calecute (a imagem não coincide com o canto, mas procurava um momento de narração, fixado aqui).

1 comentário:

Sebastian Flyte disse...

Não que eu alguma vez na vida vá cuscuvilhar os blogs defuntos/hibernados das pessoas (...não, eu não acabei de fechar o blog de uma amiga minha que não o actualiza desde 2007) mas gostei mesmo deste post. Precisas de tecer considerações e postá-las online mais vezes.