segunda-feira, outubro 06, 2008

Bristol Memoirs §15: 6 do Idem - Leituras & Lectures (Falsos Amigos)

Tenho o curso autodidata de grego parado. Sonhar que teria chegado à lição dez (meio do calhamaço) por altura de domingo!: fantasia tonta - fiquei-me pela quarta. Comecei, entretanto, a ler os livros de leitura obrigatória para as várias cadeiras. Peguei, curioso, na edição cambrígia (este adjectivo é fantástico) das Meditações (o primeiro dos set texts para Introdução à Filosofia A) do Descartes e gastei a manhã a ler as duas introduções, para perceber que vou repetir o que aprendi no décimo segundo com os Principios (aquele onde ele exclama como uma eureka: cogito ergo sum). A Filosofia é sempre um exercício de destabilização da alma. Devia ser seriamente proibido o seu estudo a quem sofre do coração. Percorri os quase quarenta minutos até à Universidade em marcha lenta e taciturno, reflectindo nas numerosas questões que os prefácios abordavam, nomeadamente na problemática da impossibilidade do dualismo cartesiano alma-corpo e nas inúmeras consequências disso, por exemplo, na doutrina da ressureição cristã. A Filosofia é, em grande medida, um trabalho de auto-destruição do sujeito, um biberon de insónias.
Cheguei à Universidade para a minha primeira lecture. Entrei (isto aqui é assim: não se espera pelo professor, vai-se entrando; o professor, aliás, já se encontra lá dentro, a preparar tudo para começar pontual e inglês). A cadeira não será talvez tão complicada como temia: o meu nível de latim parece justo e suficiente. Recebemos uma folha com o trabalho de casa já para cada lição de todo o primeiro semestre, indicando testes, aulas em que temos de trazer dicionário, gramática a rever para cada aula e textos a traduzir para cada dia. Organização brilhante. Coimbra pode ter coisas boas (nomeadamente as cantinas sociais, cuja falta aqui será, para mim, o grande defeito de Bristol), mas olho para o papel que tenho na mão esquerda e pergunto-me de que universidade africana é que eu vim. O grande milagre daqui, o grande espanto para o estrangeiro do Sul, é as coisas funcionarem, de facto. É necessário revolucionar completamente o ensino em Portugal, conferir-lhe uma dinâmica outra, um ritmo novo, um pensar moderno. Formamos semi-engenheiros que acabam como primeiro-ministros: isso devia ser a prova suprema de que algo está profundamente errado com o nosso sistema. Há, naturalmente, pontos em que, indubitavelmente, lhes somos superiores: a excessiva ênfase que se coloca na gramática em Portugal, na linha da tradição académica francesa, permite que me ria um pouco quando a professora resolve dedicar este semestre ao estudo, aprofundamento e consolidação da sintaxe da língua, quando em Coimbra já exploramos a morfologia histórica, i.e., a evolução das palavras ao longo dos vários estádios do latim e do grego, decorando as leis fonéticas que a determinam; isto porque já no décimo segundo que demos quase toda a gramática (guardaram uns poucos 10% para a Universidade, para não dizerem que não fazemos lá nada). Há, repito, coisas boas, que a tradição continental pode ensinar à anglo-saxónica. Esta, porém, com o seu relógio de ordem, método e plano, não pode deixar de causar inveja ao provinciano que agora, feito boi, a olha como um palácio.
O pior são as mil e uma coisas que há para ler. Tive de fazer um forcing para acabar ontem o Lermontov (magnífico!) e já fui hoje estender o prazo de entrega para o Always Coming Home, da LeGuin. As leituras recreativas são ameaçadas pelos livros oficiais. Hoje à noite foi ler mais introduções, desta vez ambas ao Ab Urbe Condita, do Tito Lívio: vamos estudar o primeiro livro a Latim. Pelo meio das duas, uma chávena de chá, cookies e um episódio de Noir. Amanhã, o grande medo: Grego.
*
- £3.29 (almoço); - £72.40 (livros escolares); - £1.14 (cookies again!)
ontem: - £0.5 (missa)
anteontem: - £2.25 (chá + biscoitos)
/quadro: The Difficult Lesson (1884), de William Adolphe Bouguereau,
pintor desconhecido, um dos meus favoritos/

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