sábado, outubro 18, 2008

Bristol Memoirs §18: [sem tempo] - Poesias*

1.

[instruções: visualizar o vídeo entre os minutos 07:09 e 08:00]

Terra mutata non mutat mores.
Mudar de terra não muda um homem.
LÍVIO,
o avô das estórias romanas, criando provérbios


2.
Jung, aristóteles de platão-Freud, intuiu com nitidez a linguagem calada do inconsciente universal, a colecção de imagens primeiras que nos habitam de nascença, a cujo vislumbre sempre algo se agita na alma, como a acudisse a rememoração inesperada de um passado anterior a ela, belo e/porque indistinto. São as palavras anteriores à palavra, que colámos como putos os bocados das revistas de fofocas que a nossa avó compra para fazer as nossas estórias originais, os mitos primitivos, as narrativas grandes, arcas de nóe, com tudo tudo lá dentro. Jung esqueceu, porém, inocente!, esqueceu um dos arquétipos (quem não esquece até de comprar cogumelos ou lenços de papel quando vai às compras?): o jardim. O jardim é uma dessas imagens fundamentais, com uma genealogia que começa no éden, se alarga à arcádia, namora suspensões na babilonia e continua em versalhes. Na cidade moderna chamam-lhes parques. Regenara-me a alma, em descendo para a Universidade, em subindo para casa, pass(e)ar pelos Downs, ver o verde infinito, as árvores plantadas, os bancos para os velhos e para os leitores. Lembra-me os dias em casa de L, ao lado da natureza, e consola-me das viagens que não vou fazendo, da Oxford que adio onde Tolkien me continua a esperar com a sua campa onde escreveu um dos epitáfios mais belos dos jardins dos mortos (com a concorrência dos de Plath e de Kant). Três vezes já encontrei esquilos aos pulos, bailarinos, a lembrarem-me a alemanha de pequenino. Lembro-me que demorei muito a decorar a palavra para esquilo em alemão, coisa complicada, um trava-línguas: einchörnchen. No outro dia, aqui, always coming home (LeGuin - o livro está parado, substituído, por causa de uma promessa, pelo Idiota, do Dostoiévsky), um par de namorados brincava no parque, entre as árvores. Ela apanhava do chão as folhas caídas do outono e atirava-as como bolas de neve contra ele. Ele deixava-se nevar assim, para, lucky luke mais rápido que a sombra, colher novo ramalhete de folhas e salpicá-la a ela, em jeito de vingança. E assim o par reciclava a natureza e as coisas caídas, brincando com a simplicidade do amor. Ela gritava girlishly quando ele a atigia touché! e ele dizia para parar enquanto continuava. "What a locked garden the world seemed then" (Hughes, poema inédito, Times 17.10.2008). Uma das poucas cenas genuinamente belas no L'Enfant dos Dardenne é precisamente quando, antes dele vender o bebé para arranjar dinheiro, eles brincam juntos à volta de um qualquer carro num parque (daqueles alcatroados, chamados de estacionamento, o que eu entendo: não entendo é porque lhes chamam parques). A cena veio-me à memória olhando com prazer & melancolia o par dos Downs (eu estava mesmo ao lado deles, mas eles como que ignoravam conscientemente o público e arrastavam o jogo privado). Os amantes sempre acharam nos parques e na natureza a sua casa natural, porque a única sem paredes que os contenha.

3.
O Times publicou ontem dois poemas inéditos e inacabados de Ted Hughes sobre a sua relação com a desgraçada e genial Sylvia Plath. Os dois eram poetas, namoraram-se em Cambridge, casaram, procriaram e ela matou-se (trinta anos). Ele abandonara-a, namorou outra, deixou a outra, a outra matou-se também. Pelo caminho, ele tornou-se num dos maiores poetas ingleses do século XX (e escreveu The Iron Man, transformado por Brad Bird num dos mais belos filmes de animação de sempre, O Gigante de Ferro). Quando vi Sylvia na capa do jornal, naquele rosto de sonho triste, não pensei duas vezes em comprá-lo: lendo os versos, chorei (já não me acontecia desde o The Wake, do Gaiman).
"[...]
What was there to lose? There was still
The whole world to be gained.
There was still time to be wasted.
The tide was not yet full flood,
Everything was for the time being
An interlude for the interim - until
The announcement, which we would somehow hear,
That life was now ready, everything
Was now serious. Maybe in those days
We were living as live is best lived,
What followed, maybe, was posthumous,
A semblance of life kept up by caution,
In a museum of prudence. [...]"

* poesias = etimologicamente, no grego, coisas feitas, apenas.

*
querem que eu faça contabilidade num texto de poesia?
sei que prometi, mas toda a promesa se adia. adeus.

1 comentário:

Marta Sofia disse...

Infelizmente, acho que o Senhor Lívio estava certo.