sexta-feira, outubro 10, 2008

Bristol Memoirs §16: 7-10 do Idem - Impressões de (Es)tudo

Week 1: finished. Os ingleses dividem os semestres nas várias semanas que os fazem (um pouco como os alemães) e em torno delas arranjam (como se arranja a gola dobrada de uma camisa ou as flores tortas numa jarra) as aulas. Para cada cadeira distribuem um plano aprumado, com a camisa para dentro e o cabelo penteado, onde listam o assunto de cada lecture a-haver e o que havemos de ler para cada aula. O fim-de-semana está já dedicado a essa ocupação: amanhã despacham-se as traduções de latim e grego e o domingo fica para a filosofia. Latim está-se a revelar um invulgar prazer (como uma daquelas mistelas que a nossa mãe nos põe no prato e a gente torce o nariz e é muito reticente em pôr a boca naquilo, ou aquilo na boca, mas pronto mãe eu provo e miam miam miam isto afinal é bom!). A culpa está muito no autor: Lívio é um maravilhoso avô a contar estórias à lareira. Grego vai ser um maelstrom do meu tempo, mas se aceitar isso faz-se, creio. O pior são as cadeiras de filosofia, a saber, Introdução à Filosofia A, Introdução à Filosofia da Ciência e Leitura de Textos Filosóficos: Ética a Nicómaco, de Aristóteles. São combustível para a mente (e o combustível arde, é perigoso e eu tenho medo do fogo e os meus colegas gozam comigo com isqueiros). Os professores insistem na importância de termos as nossas ideias: mas pedem-me que leia para terça a segunda meditação do Descartes quando eu ainda estou a reflectir sobre a primeira e todas as suas implicações! A filosofia é uma coisa de digestão muito lenta. Os filósofos, nisso, são como as vacas: precisam da tarde toda (as vacas, lembro das aulas de ciência, regurgitam a comida do estômago para a boca, para a mastigarem de novo, e fazem isso ainda uma série de vezes). Tenho enchido o moleskine de reflexões e não consigo fazer o caminho para casa sem parar pelo menos três vezes para o ir buscar ao meu bolso do casaco e rabiscar pensamentos. Queria usar o fim-de-semana para apontar, rever e reanalisar os textos desta semana e as objecções que lhes levantei: mas tenho de ler já o segundo livro da Ética do Aristóteles (e, pelo caminho, também o Banquete todo do Platão). Certo é que tenho de regressar à matemática: há tempo demais que ando a adiar o projecto (é já uma resolução para o próximo ano novo). Pegar no livro de sétimo e começar nas equações (que vergonha já nem isso lembrar direito). Toda a discussão em torno do cepticismo de Descartes na primeira meditação reforçou-me o desejo: desconfio sinceramente que o francês fez um erro (nisso eu e o Damásio concordamos). Descartes afirma que nem das certezas matemáticas poderíamos estar certos: um deus todo-mau pode propositadamente fazer-nos enganar sempre nos nossos cálculos. Mas isto sinceramente não me convence: a matemática, deconfio, é, juntamente com o cogito cartesiano (o penso, logo existo), talvez a única coisa de que podemos estar filosoficamente certos. E a verdade é que desde que descobri na wikipédia o artigo sobre filosofia da matemática (podia lá eu imaginar que os filósofos inventariam isso!) que ando desejoso de me saber sobre isso. [muitas palavras que apaguei] (cala-te joão: isto não é o espaço para começar a filosofar: guarda isso para outro lado).
Já vi aqui nas salas de aula pelo menos dois aparelhos cuja existência desconhecia, um deles particularmente útil: é uma espécie de retroprojector que não precisa de acetatos: qualquer coisa que se lhe ponha por cima ele reflecte (até parece magia do George). Os professores são bastante curiosos e dinâmicos e não há um único que possa, por ora, desgostar, mesmo se há os favoritos (o Ladyman - o apelido do homem é um paradoxo, daí ele se ter tornado filósofo, para o resolver - é magnífico, com o seu cabelo rastafari, mas o de Grego consegue ser mais cool, com a sua mochila de alpinista e a barba lourinha). Uma coisa curiosa é que os cadernos não são muito populares aqui. As pessoas compram essencialmente refill pads, isto é, blocos de folhas a4, daquelas para meter em dossier. Eu já tinha chegado a essa conclusão quando, na semana antes das aulas, tentei comprar cadernos: era tudo uma roubalheira (mas era mesmo). Resolvi então adoptar toda uma nova estratégia, para poupar dinheiro: arranjar um dossier e levar diariamente o meu refill pad para a escola. Não sabia bem se não ia fazer uma figura um bocado estúpida, mas paciência (eu sou um homem paciente). Afinal, tinha apenas seguido o uso inglês, sem o saber. Isto, de facto, é um pouco perigoso: ando-me a tornar um britânico aceleradamente. Já não falo no meu chá diário ou no já mais-que-habitual almoço-sanduíche. No outro dia, imagine-se!, comprei o Times (e trazia o Closer dos Joy Division agarrado gratuitamente, mas não foi por isso que o comprei: foi para ter um bom dossier sobre a crise económica e a não-morte do capitalismo). (pormenor absolutamente fora de contexto: é uma coisa espantosa a quantidade de ambulâncias, carros de bombeiros e de polícia que passam todos os dias a sirenar a alta velocidade). No outro dia, ganhei uma caneca belíssima e gratuita na Blackwell e comprei um pote de mel para misturar umas colherzinhas com o chá. Hoje voltei ao BISC, para almoçar e encontrei lá uma das erasmus mais simpáticas do longínquo house search event. Depois de um chit chat agradável fui para a aula.
Pelo caminho dos dias, perdi as chaves de casa. Fiquei pálido e desgraçado. Como um filho pródigo, a família acolheu-me e não me ralhou, nem fazendo muito caso do caso. Hoje fui a correr de manhã para a Universidade, para ver se descobri o molhe de chaves. Tinha a sensação de que elas poderiam ter-me fugido do bolso enquanto tinha estado espreguiçado no puf da sala comum da School of Humanities a ler um artigo sobre a diferença entre ciência e pseudo-ciência, para Filosofia da Ciência, à tarde. O meu instinto e o meu descuido não me enganaram: ali estavam as chaves, escavadas no puf. Filosofar dá nisto: um homem procura a chave para a verdade e perde a chave de casa (e não encontrou a outra, sequer).
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- £0.50 (envelopes); - £2 (almoço); -£1.05 (postais); - £1.95 (postal); - 3.99 (bolachinhas + dois almoços pré-feitos)
quinta: - £1.80 (autocarro); - £5 (
course pack de Introdução à Filosofia da Ciência); - circa £2.96 (almoço); - £9.89 (livro escolar); -£0.84 (caneta+separadores);- circa €70 (encomenda de portugal ainda por chegar)
quarta: - £1.59 (almoço); - £1.75 (mel); -£1.80 (autocarro)
terça: - £3.29 (almoço); -£5 (
course pack de Into à Filosofia A), - £0.80 (The Times)
/imagem: logótipo da Universidade, reformulado em 2004/

1 comentário:

Anónimo disse...

"Filosofar dá nisto: um homem procura a chave para a verdade e perde a chave de casa (e não encontrou a outra, sequer)."

:) Só tu com uma frase destas! :)