terça-feira, novembro 24, 2009

Ex 17, 14

[E assim Josué desfez a Amalek, e a seu povo a fio da espada.] Então disse o Senhor a Moisés: escreve isto por memória em um livro, e o põe nos ouvidos de Josué, que eu totalmente hei-de borrar a memória de Amalek debaixo do céu.
Trad.: João Ferreira d' Almeida
Fixação do texto: José Tolentino de Mendonça
Edição Assírio & Alvim

[Josué venceu Amalec e o seu povo ao fio da espada.] O Senhor disse a Moisés: «Escreve isto, como memorial, no livro e declara a Josué que Eu hei-de apagar a memória de Amalec de debaixo dos céus».
Trad.: António Rocha Couto
Edição Nova Bíblia dos Capuchinhos (Difusora Bíblica)

Quando, há pouco, ao ler esta passagem, ela me atocou*, pensei de pronto partilhá-la. Ocorreu-me citar, lado a lado com a tradução que sigo (a de Almeida), a dos Capuchinhos, moderna - o subtítulo denuncia-o: para o terceiro milénio da encarnação -, publicada no virar do século e rapidamente adoptada universalmente na igreja católica (aqui a evolução da língua: na mesma frase um advérbio e adjectivo em última análise iguais no significado sem que isso constitua um pleonasmo). Só ao comparar as duas traduções me apercebi que compreendera erroneamente o texto. No versículo catorze, existiam para mim três acções: (1) escrever um livro, (2) contar a história Josué e (3) Deus apagar a memória de Amalek. Entendera o «que» em «que eu hei-de borrar...» como um «[por]que eu», sem o perceber ligado e que (3) não era mais que o complemento de (2), a especificação da mensagem a transmitir a Josué. Faz, claro, todo o sentido, pois que, se o próprio Josué conduzia a batalha, que interesse em lhe contar o facto? Quando, porém, li a passagem, não me apercebi deste paradoxo lógico e entendi tudo de uma maneira muito diferente, mas muito mais interessante, creio: foi aliás essa leitura, por enganada que seja, que me instigou a escrever e aqui partilho.

§1
Primeiro: o livro. Ei-lo pois que finalmente surge na narrativa bíblica. A própria escrita, mesmo noutra forma, como, imaginemos, na forma de tabuinhas, ainda não aparecera, nem mesmo aquando do exílio no Egipto, passo onde teoricamente seria fácil ter encontrado uma referência aos hieróglifos. Como a Maomé, muitos séculos mais tarde, Deus manda Moisés escrever (as tábuas da Lei, porém, curioso!, é o próprio Deus que a escreve). As traduções divergem num ponto importante: diz Almeida «um livro»; os Capuchinhos traduzem «no livro». O artigo definido dá a entender que estamos perante um livro já conhecido, possivelmente usado ou, pelo menos, na pior das hipóteses, pensado para ser escrito num futuro próximo. O judeu traria assim desde o começo o Livro consigo. É que o Êxodo é, de facto, o primeiro livro em que o povo judeu enquanto tal, enquanto povo, e, como povo, personagem, surge. No final do Génesis não temos senão Jaboc-Israel e os seus doze descendentes, patriarcas das doze tribos. Quando o Êxodo começa, quatro séculos depois, estas famílias multiplicaram-se e o povo de Israel é agora na ordem das centenas (ou mesmo milhares). Israel seria a civilização do Livro por excelência, corroborando a ideia de Steiner de que o Livro/o Texto é a pátria dos judeus - daí a sua conhecida oposição ao projecto sionista (tire-se à palavra toda a sua conotação pejorativa).
Escreve, comanda Deus - e escreve para memória futura (esta expressão, para quem, como um inocente, da forma como os Gregos descobriram as primeiras metáforas que o uso entretanto matou; esta expressão, dizia, a quem encontre pela primeira vez, deverá parecer prima facie um paradoxo). A Palavra há-de ser verdadeira, histórica. A escrita não existe para que se brinque com ela às «mentiras várias que se assemelham à realidade» (Hesíodo, Teogonia, 26). A escrita é um exercício de responsabilidade, pois que apontado ao futuro: no texto hão-de as gerações por-vir que confiar necessariamente. Porque não se concebem códigos de ficcionalidade, a Palavra conserva o seu poder primeiro, com que Deus, falando, criou as coisas. Assim o que escreve, capaz de criar a memória. O livro ainda como o espaço preferencial para essa memória: escolha curiosa de Deus, pois que o livro é frágil e arde (mesmo se mal). Deus dá portanto duas missões a Moisés: escrever o livro, mas guardá-lo - e esta é mais perpétua, porque eterna e, como o pecado original, há-de passar de geração em geração, como o Livro Vermelho protegido séculos a fio pelos descendentes de Samwise Gamgee. Heine profetizou o nazismo em 1821: «Dies war ein Vorspiel, nur dort, wo man Bücher verbrennt, verbrennt man auch Menschen»**. Onde os livros são queimados, pois também se queimam os seus guardiães. Os judeus, até hoje, enterram, em sítios próprios, as Toras que o tempo, com o desgaste, tornou inutilizáveis, pois que a Palavra de Deus não deve não pode ser destruída: há que a guardar. Steiner, numa entrevista que lhe foi feita nos anos 90, falava de um rabi que sabia o Pentateuco todo de cor e, no campo de concentração, dizia: se precisarem de consultar alguma passagem, venham ter comigo. Cristo confiava que os seus seguidores imitassem os conterrâneos d'Ele quando afirmava que «os céus e a terra passarão, mas as minhas palavras não passarão». A filologia, o amor à palavra, e o trabalho de a recuperar e conservar, começa aqui, versículo catorze do capítulo dezassete do Êxodo.

§2
«o põe nos ouvidos de Josué». Leiamos mal estas palavras, como disse. Esqueçamos que pedem um complemento, que se dá a seguir, na promessa de Deus de apagar a memória de Amalek. Deus, então, depois de pedir que se escreva o feito da batalha num livro diz: ensina o que escreveres a Josué. «põe nos ouvidos» é uma expressão muito forte, se tomada literalmente. Depois da palavra escrita, Deus, talvez como medida de segurança, apela à oralidade, modo durante milénios mais próprio da relação do Homem com a narrativa. שמע ישראל, Shema Yisrael, Escuta Israel. Israel pode ser o povo do Livro, mas não o é menos da Escuta. A imagem de Cristo a abrir os ouvidos do surdo - εφφαθα!, transcrição grega do aramaico - é válida como metáfora para a relação do Deus judaico-cristão com o seu povo, que escancara os ouvidos dos crentes como uma criança rasga a mãe para nascer. Homero canta os seus poemas ao estenógrafo, Deus diz a Moisés o que há-de registar (não deixa de ser curioso que as Tábuas da Lei sejam quebradas e de novo escritas, mas agora já por mão humana). O escritor é um personagem intermédio: ele primeiro escuta (o que há-de escrever) e depois conta (o que escreveu). O exercício da audição está no princípio como no fim. O texto escrito antigo cumpre com este modelo: o poeta escutava as Musas (canta, ó deusa), registava, mas a palavra era para ser escutada: por isso se lia em voz alta (S. Agostinho, lembra Steiner, maravilhou-se quando, um dia, para não perturbar o irmão, percebeu que podia ler em silêncio). O poema era para ser cantado, o teatro interpretado, a prosa, retórica, pedia público, pois. Porque eram civilizações da escuta, eram civilizações mais sábias.
O pedido de Deus de que Moisés instrua Josué nos eventos da batalha a narrar no livro tem ainda uma outra função: o garantir, de novo, a memória. O Livro, insistimos, pode ser destruído, mas não o que guardamos dentro de nós e isto é um ponto a que Steiner regressa sistematicamente nas suas conversas, como possibilidade última de resistência contra os regimes mais bárbaros:
Outras pessoas tinham consigo o tesouro e ninguém pode prender toda a gente. Os poemas de Mandelstam foram todos confiscados, e Nadezda, a esposa, deu a conhecer um poema por cada dez pessoas, o que significava que para sessenta poemas haveria seiscentas pessoas que os conheciam, e assim se salvaram. Nada pôde impedi-lo. Creio que esta é a mais indelével forma de publicação que se pode imaginar, a publicação da alma humana. (trad.: José Eduardo Reis)
Bradbury exemplificou bem a coisa no famoso Fahrenheit 451, cada homem um livro. (Uma das minhas maiores dores é o poema mais longo que sei de cor ser apenas de dois versos). Ao mesmo tempo que garante, de forma mais eficaz, a durabilidade da narrativa, a oralidade incorre no sério risco de a perverter. Há inclusive uma narrativa que pede para ser sempre per-vertida (se cada acto de comunicação é, de facto, um acto de tradução, como quer Steiner em After Babel): o mito. Que haja conservação na perversão é uma Aufhebung hegeliana de primeiro grau.

§3
Ainda que Cristo, nos Evangelhos, chore, quando lhe é comunicada a notícia da morte de Lázaro, seu amigo, não há nenhuma ocasião em que se ria (os jesuítas têm porém um famoso quadro/fotografia de um crucifixo encontrado no castelo de Francisco Xavier intitulado O Cristo Sorriso). Deus, porém, é certo ser um brincalhão, para lhe poupar o epíteto de mentiroso. Ordena a Moisés que escreva sobre a batalha, pede-lhe mesmo que, por segurança, conte também tudo a Josué, mas, ao mesmo tempo, promete «borrar a memória de Amalek». Se Deus fora Winston Smith e reescrevesse passados, talvez o conseguira, mas seria uma jogada, no mínimo, desleal. Deus dá uma ordem e faz uma promessa que se excluem mutuamente. Se os judeus conhecessem o modo trágico da existência (não se invoque Job: só o facto de trabalhar com um categoria como o Mal revela que o Livro de Job não pode ser trágico, que é um modo todo outro que o moral), poderiam ter escrito sobre este verso a sua primeira tragédia: obedecer a Deus é anular as condições de possibilidade de Ele cumprir com a Sua palavra. Obedecer a Deus é, pois, hybris, mas não menos, por definição, é não o fazer. O Homem vai obedecer a Deus, mas nisso fá-Lo impotente. A escrita nasce como resposta a um apelo da transcendência mas converte-se, no seu fazer, meio de a dominar, de a tornar imanente, terrena. Até a escrita mais religiosa é uma escrita da terra, no sentido em que baixa as coisas de Deus ao Homem, as faz dele, as faz com ele, ele as faz - e por isso as pode compreender. Só o silêncio pode ser verdadeiramente divino, vazio em que a divindade pode entrar e habitar em nós. A palavra, quando nasce, é para criar matéria: a palavra é corpórea. Domesticamos o mundo pelo Verbo, como Adão. E - aqui a ironia - o próprio Deus, na medida em que se torna escrito, torna-se nosso: os judeus não podem ler o Seu nome, mas podem-no escrever. Os árabes, impedidos de representar quer Alá quer o Profeta, desenvolveram uma complexíssima caligrafia no sentido etimológico da palavra: uma bela escrita, rendilhada, enfeitada como uma iluminura medieval. Na escrita pintaram o que não podiam de outro modo. A escrita, de novo, pois, como meio de possuir o que deveria evadir-nos.
A escrita como meio de protecção contra Deus. Ao contrário de outras mitologias, na narrativa judaica, Deus não ensina os homens a escrever: a escrita é uma invenção, supõe-se, toda deles, ao qual o próprio Deus, admitindo a inteligência dela, recorre. É Deus quem aprende a escrever para gravar as Tábuas da Lei. Deus não pode afectar o livro, depois de escrito, como, por exemplo, endurece o coração do Faraó, um pouco como os deuses gregos têm de espicaçar os heróis épicos a fazer tudo (lege Bruno Snell), ou brinca com a Sua criação e faz a rocha no deserto brotar água. O livro é uma coisa em que Ele não pode tocar.
Cristo não escreveu nenhum livro (mas lê na sinagoga: havia de se fazer um quadro bonito disto: Cristo a ler) e o que escreve (Jo 8, 6), escreve na areia: onde a audácia horaciana do aere perennius? Resta a Deus apenas ditar ou inspirar os autores ditos então sagrados. A civilização da Palavra Escrita - o Livro - tem um Deus da Palavra Oral - Escuta, Israel!. No fundo, o mesmo paradoxo em que a obra escrita mais antiga da literatura ocidental seja um poema oral. E agora, silêncio.
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* O português usa o verbo suave tocar onde o inglês regista a violência do strike, o atacar. Guardemos o melhor das duas metáforas.
** A frase, nas suas subtilezas, nomeadamente o
nur, ambíguo, não se deixa traduzir com facilidade: Isto foi [tão somente] um prelúdio (no sentido etimológico de pre-ludus correponde ipsis verbis ao alemão), porém/apenas [aí], onde se queimam livros, queimam-se também homens.

ilustração: Poussin (c. 1625),
A Batalha de Josué com os Amalecitas.
Museu Hermitage.

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