segunda-feira, novembro 23, 2009

«Can We Still Speak of a Human Condition? Some Brief Remarks», de George Steiner

O que se segue é fundamentalmente baseado nos apontamentos que fui tirando ao longo da conferência. Consegui também gravá-la (faixa de aúdio, apenas), em qualidade mínima e, por vezes, recorri a esse registo para corrigir um ou outro ponto das minhas notas, ao escrever este texto. Não a voltei a ouvir exaustivamente, porém, e, como tal, o que abaixo se segue não posso garantir ser uma transcrição ou reprodução exacta de todas as ideias que Steiner partilhou, pois que nem sempre a gravação se deixa compreender e as notas estão, por vezes, incompletas. Entre aspas verticais ("), palavras do próprio Steiner.


A expressão «condição humana» tem uma história bonita. O conceito remonta já a Séneca. Malraux, com a sua obra homónima, coloca-a de novo na ordem do dia, mesmo se lhe confere um sentido muito diferente. Há um certo arrojo ["fierté"] na expressão. O mestre de Dante, por exemplo, diz poder ensinar a ser mais humano. Há uma ideia de progresso aqui, uma esperança que tem a sua formulação máxima no Iluminismo. Mas poderemos ainda hoje falar de uma «condição humana»?
Na batalha de Somme morreram 40.000 homens no primeiro dia apenas. A I Guerra Mundial, com o seu número avassalador de mortes, representa o fim de certos ideais de progresso que nunca mais puderam ser recuperados. É já neste contexto que ocorre a II Guerra Mundial. 70.000.000 pessoas morreram. Não nos esqueçamos nunca que, ainda que estas guerras tenham envolvido nações do mundo inteiro, elas foram sobretudo guerras civis europeias. O horror último nasceu da alta cultura europeia. Ainda não sabemos como isso aconteceu. Gautier, que hoje poucos lêem, talvez nos possa dar uma pista quando diz «plutôt la barbarie que l' ennui». A verdade é que a Europa atravessou um longo período de paz, a.k.a. ennui, entre 1815 (Waterloo) até ao começo da I Guerra Mundial, um século depois (1914). As pessoas estavam à espera que algo acontecesse, mas esperavam ainda uma guerra à moda antiga.
Hoje atravessamos um dos períodos mais selvagens da História, o que torna o uso da expressão «condição humana» muito problemático. Jefferson disse: «no books will ever be burnt in Europe». Voltaire: «nunca mais haverá tortura na Europa». Os grandes pensadores erraram completamente. Hoje temos mais crianças como escravos (cerca de cinco milhões) do que alguma vez na História. Segundo o último relatório da Amnistia Internacional, 180 países usam tortura. A tortura é endémica, de facto: não é preciso invocar Guantánamo, basta ir a uma esquadra francesa. Tornou-se normal. Podíamos, podíamos de facto, acabar com a fome. Ao invés disso, esta é cada vez mais um flagelo e temos de novo grandes fomes, como antigamente. No Ocidente, as duas indústrias que mais dinheiro movem por ano são o narcotráfico e a pornografia.
Porque falharam as utopias? O marxismo era um grande elogio ["compliment"] ao Homem. [citação de Marx, em que este diz que, no futuro, não trocaremos mais dinheiro por dinheiro, mas amor por amor, abraço por abraço]. O marxismo apresentava-se como um convite a que fôssemos melhores do que éramos, a que fôssemos mais altruístas. Foi uma "wonderful mistake", um sonho que se tornou um pesadelo. Marx conduz ao Gulag. Era isto inevitável? A pergunta permanece em aberto. Note-se que até o fascismo tem ideais, convidando-nos a sermos mais do que somos.
Conto-vos um episódio. Falei uma vez aos meus alunos, durante a guerra na Nicarágua, uma guerra terrível, verdadeiramente, dos jovens como eles, os seus pais e avós, que, na altura da Guerra Civil Espanhola, se tinham voluntariamente inscrito para irem combater nas Brigadas Anarquistas. Perguntei-lhes se eles seriam capazes de fazer o mesmo hoje, de ir para a Nicarágua em defesa de um ideal, de uma visão. Eles responderam-me com uma carta: «se formos lutar pela esquerda, teremos depois um regime estalinista; se formos lutar pela direita, teremos um governo-fantoche da CIA» e concluíam com uma frase fortíssima: «on ne nous va pas attraper de nouveau». Antes, estes jovens, os melhores do curso, iam para o Parlamento ou para serviço social, mas hoje, se aos dezoito anos já se sabe isto, que os sonhos são pesadelos, que resta? O dinheiro.
Que tipo de desenvolvimento humanista é possível? As ciências desenvolveram-se imenso, mas, em compensação, assistimos à "mediocrity of humanistic philosophy today". Em Beslan, quando a escola foi tomada, ao segundo dia, os professores rezaram com as crianças a Deus. Ao terceiro dia, porém, algumas crianças recusaram-se a rezar a Deus e resolveram rezar a Harry Potter, na esperança de que o feiticeiro e os amigos os fossem salvar. Há três vezes mais astrólogos registados do que físicos na América. Estamos a assistir ao regresso a um "medieval degree of superstition". [nome que não consegui perceber], perguntado sobre o que pensava da civilizaçao ocidental, respondeu: «it was a wonderful idea». O judaísmo produziu duas grandes heresias: o marxismo e o cristianismo. O marxismo parece estar extinto. O cristianismo, penso, vai morrer, uma morte lenta. E a pergunta verdadeiramente assustadora é: o que vai ocupar o lugar vazio?
Quero sugerir que a nossa condição não é humana, mas pré-humana. Ainda não chegámos ao ser humano. Temos apenas 20.000 anos de idade. Koestler sugeriu que tínhamos dois cérebros: um, grande, selvagem e bárbaro, outro, muito menor, onde residiriam os princípios morais e as humanidades. Infelizmente, nada corrobora esta teoria, mesmo se a podemos usar como metáfora: o cérebro pequeno tem ainda de crescer. A questão é saber se temos tempo suficiente antes da próxima grande catástrofe. Hawkings, que se jubilou agora, diz que a nossa única esperança reside em começar noutro planeta e que essa oportunidade chegará mesmo a tempo. Uma ideia terrível, mas muito importante.
Começar de novo: será possível? Por vezes há epifanias, em que a luz subitamente irrompe. Aconteceu no Maio de 68, aconteceu agora recentemente na noite da eleição de Obama. Acreditava-se que as coisas iam de facto mudar, tudo era possível, mas isso não aconteceu: o Maio de 68 não se concretizou e Obama já mostrou ser muito diferente daquilo que se esperava. Não há quase portas abertas para os jovens. A nossa tarefa principal, hoje, é, contra a lógica da alternativa única da busca de dinheiro, encontrar credos racionais, "make positively great mistakes".

mais ou menos George Steiner

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