quarta-feira, novembro 25, 2009

Exegi

Exegi monumentum aere perennius
Horácio, Odes III.30

Erigi monumento mais duradouro do que o bronze
Trad.: Maria Helena Rocha Pereia in Romana, IEC

Nota prévia: encontro-me a ler os capítulos de Antigones em que Steiner explora a tradução de Hölderlin da tragédia homónima de Sófocles. Importa isto para que se entenda a aproximação ao ofício de traduzir que se segue aqui, como o perceberão os familiarizados com a experiência radical do poeta alemão.

Exegi: pretérito perfeito, primeira pessoa singular de ex+ago. «ex» significa para fora de, implica um movimento de exteriorização (no radical do substantivo, a preposição). «ago» é vertido normalmente como conduzir e, por extensão, um mais genérico fazer mover. Não se confunda com «duco», que, se significa, também, como o anterior, conduzir, implica uma posição diferente: o dux vai à frente, lidera; o actor, pelo contrário, guarda-se para o fim. A diferença, ilustra-a bem um trecho da Bucólica I de Virgílio: en ipse capellas/protenus [à minha frente] aeger ago; hanc [ovelha mais frágil, que acabou de dar à luz] etiam vix, Tityre, duco [aqui poder-se-ia traduzir por arrasto]. ex+ago será então algo como conduzir para fora, trazer para o exterior. A paráfrase, porém, correcta que seja, retiraria ao verso a sua força.
Por influência da tradicional tradução portuguesa como erigi, verbo que denota um movimento ascendente, a primeira tentação é de ler este «trazer para fora» como um desenterrar, trazer de baixo para cima (aqui, como dizia, a influência da imagética da versão de Rocha Pereira). O movimento, porém, não é idêntico, pois que erigir induz um movimento ocular do nível normal/plano para o alto, enquanto que desenterrar implica um movimento de baixo para o nível médio/plano. Para transmitir a força toda do latim seria necessário um verbo em português que, de alguma forma, traduzisse o movimento de baixo para cima, densenterrar-erguer.
O «trazer para fora» não tem, porém, de ser necessariamente lido desta forma, sub specie da tradução recebida. Podemos encará-lo mais como um movimento semelhante ao do escultor com a pedra, um arrancar, ir e voltar. revelei podia, de alguma forma, traduzir exigi. Traz-se para fora o que esta já na coisa, dá-se a conhecê-la, manifesta-se-a. expulsar (e o verbo exigi é usado com esse significado em Cícero, por exemplo) tem algo do conceito, mesmo se é demasiado violento e, sobretudo, atribui o movimento à coisa, mais do que nos torna agentes desse movimento, como no original (o poeta está por trás, ago, não o esqueçamos).
Regressemos à metáfora do escultor, como ilustração feliz do movimento de «trazer para fora». «esculpir» vem de sculpere, derivado por sua vez de scalpere, gravar, registar. «escultura» podia porém vir igualmente de «ex-cultura», onde cultura resulta de colo, cultivar. A escultura seria assim, nesta etimologia fabricada, mas não menor por isso, a imagem acabada do movimento de in-out (no nadsat pun intended) contido em ex-ago. Ataca-se a terra, penetra-se nela, e regressa-se com o fruto nas mãos à luz. Recupera-se aqui parte do movimento a que nos referimos antes, o do desenterrar. Continua sem se conseguir veicular a imagem de movimento ascendente que o erigi transmite com tanta simplicidade. A tradução de exigi por esculpi ganha tanta mais força quanto o protótipo de monumentum é, efectivamente, uma escultura (de larga escala, regra geral). Não sei até que ponto esta é necessariamente uma tra-dução/trans-acção - o tradutor vai à frente ou vai atrás? - falsa.

Exegi monumentum aere perennius.
Esculpi um monumento perene além-bronze.

ilustração: Retrato de Virgílio, com Horácio e
Vário em casa de Mecenas. Arquivo da LIFE.

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