segunda-feira, novembro 30, 2009

Uma Tese Possível Sobre A Necessidade

Il y a quelques années qu’en visitant, ou, pour mieux dire, en furetant Notre-Dame, l’auteur de ce livre trouva, dans un recoin obscur de l’une des tours, ce mot gravé à la main sur le mur :
ἈNÁΓKH
Ces majuscules grecques, noires de vétusté et assez profondément entaillées dans la pierre, je ne sais quels signes propres à la calligraphie gothique empreints dans leurs formes et dans leurs attitudes, comme pour révéler que c’était une main du moyen âge qui les avait écrites là, surtout le sens lugubre et fatal qu’elles renferment, frappèrent vivement l’auteur.

Primeiras palavras de Notre-Dame de Paris, de Victor Hugo.

ανάγκη, que os latinos traduziram por necessitas, é, por muitos, assimilada ao fatum ou à μοῖρα, identificação que rejeito, mau grado a confusão real que existe na utilização dos termos e os indícios mitológicos que aproximam as duas realidades, como o facto de a primeira ser dada, em algumas tradições, como mãe das segundas. A ανάγκη interessa-nos aqui sobretudo no contexto da tragédia (clássica, está bom de ver), onde marca presença necessária. No famoso párodo do Agamémnon de Ésquilo, depois do herói tomar a decisão de sacrificar Ifinégia, o coro canta:
o seu espírito se dobrou ao jugo da necessidade
Toda esta passagem é essencial para a nossa tese, a saber, que a ανάγκη se distingue do fatum na medida em que ela é assumida voluntariamente e não por imposição estrangeira, como a μοῖρα. Há, claramente, - denuncia-o a inspirada tradução de entrou por dobrou - uma pressão dos acontecimentos e dos valores pelos quais o personagem se rege e, por isso, a pressão é, muito dialecticamente, simultaneamente exterior e interior, sem que haja qualquer oposição nisto, mas mútua confirmação. Esta pressão, porém, não é uma obrigação - se o fosse, o herói trágico perderia toda a sua espessura, porquanto a sua escolha não o seria. É porque Aquiles não tem, de facto, de morrer em Tróia que a sua decisão de matar Heitor, enquanto decisão de morrer também, é trágica, como o é a escolha de Heitor em combater Aquiles, podendo não o fazer. Orestes, à beira de matar a mãe, hesita (e Pílades fala). Negar a liberdade do herói trágico, a sua capacidade consciente de destruir o seu futuro, é impedir a tragédia: o fatum, como categoria trágica, não existe, excepto talvez em Édipo, que constitui, porém, um caso especial dentro do corpus dramático herdado da Antiguidade, que exigiria uma análise de outra ordem que não podemos desenvolver aqui.
Postular a liberdade última, existencialista quase, na forma como se afirma radicalmente, como ao herói se pede que tome a responsabilidade completa dos seus actos e os segure, pesados que são, como castigo como um Atlas, sem procurar desculpas (Steiner, na apologia que faz do mandamento socrático do conhece-te a ti próprio enfatiza a importância, para o exercício, desta capacidade de não culpar ninguém nem nada que não nós); reconhecer esta liberdade, dizíamos, não implica, de forma alguma, negar a ανάγκη. Se nos faz confusão conciliar as duas coisas é porque, ao fim de dois milénios cristãos, esquecemos o modo trágico e fixámo-nos num modo que lhe é fundamentalmente oposto, mesmo se contíguo: o modo moral. O modo moral, como se sabe, exige, como pressuposto obrigatório, a liberdade de acção do Homem, como bem viu Kant (e outros antes dele, mas temos de citar alguém: calhou Kant, pois). Daqui não resulta que a liberdade humana implique sempre, por sua vez, o modo moral. O modo moral necessita ainda, para se verificar, de uma segunda condição: a distinção entre «bem» e «mal», ou, mais concretamente, a presença, na escolha com que o sujeito se confronta, de uma opção tida claramente por «boa» e outra por «má» ou, pelo menos, uma não igualdade do valor axiológico das opções em causa. O modo trágico, preservando o binómio bem/mal, inerente ao Homem (o Mens-ch, dizia Nietzsche, é um mens-or), não o consegue porém aplicar às possibilidades de acção ao seu alcance, tendo de agir, todavia - e aqui reside a tragédia toda.
Na tragédia, a escolha reveste-se de um carácter quase arbitrário, na medida em que não se pode verdadeiramente dizer que uma linha de acção é mais correcta do que outra (e por isso esta escolha evade toda a possibilidade de moralidade e está, verdadeiramente, para lá do bem e do mal): qualquer uma delas implica necessariamente a destruição do sujeito e não é possível não escolher: não agir é já uma escolha. O modo trágico confronta-nos com o paradoxo do «dever errar», que o modo moral, e especificamente o modo moral cristão, não pode, de forma alguma, entender (o mais perto que chega disso é a felix culpa). Medeia e Fedra confessam explicitamente, nas peças homónimas, saberem agir mal, mas, negassem-se a isso, negavam-se a servir os deuses que as usam como instrumento da sua vingança, respectivamente Zeus, que destrói os perjuros (Jasão), e Afrodite; ora já Pílades dizia: "É melhor ter contra ti todos os homens do que os deuses" (Ch. 902). Esta frase não sanciona, porém, as suas acções: mostra apenas mais claramente o dilema insolúvel com que são confrontadas: qualquer curso de acção é radicalmente mau, mesmo se a nós hoje, numa época secular, honrar os deuses pareça claramente inferior, do ponto de vista moral, a preservar vidas humanas (os filhos ou o enteado).
O trágico está em que matar Heitor não é melhor que não o matar. Não nos deixemos enganar pelo código de honra grego. Aquiles percebe-o quando, vendo Príamo, e atentando na situação do velho, chora pelo pai, que também ele não mais verá o filho: não há ganho nenhum nisto e tudo se perde (há nesta cena algo que lembra, milénios mais tarde, Brando a chorar o filho morto n' O Padrinho, de Coppola [1972]). O modo trágico é a súbita, mas também momentânea, intuição (aqui a traduzir insight) do absurdo da condição humana, da completa ausência de sentido (sentido este fundamental ao modo moral, como bem o mostra Nietzsche). A escolha trágica é, de um certo ponto de vista, arbitrária porque também assim o é a acção humana. Matar ou não Clitemnestra é moralmente igual, mas o herói escolhe a opção que comporta a sua morte e nesta escolha pelo suicídio, directo ou indirecto, reside o último elemento do trágico. Se matar Clitemnestra fosse, de facto, melhor que não a matar, estaríamos em modo moral. Isso o que acontece, por exemplo, com vários santos, e.g. Maximiliano Kolbe, que escolhem fazer o que é justo e bom mesmo sabendo que isso implica a sua própria morte. Esta, também, a situação de Antígona, que só é uma personagem «trágica» no sentido mais lato do termo que este foi adquirindo ao longo dos séculos, a ponto de se converter num sinónimo de «dramático» esquecendo que, no Romantismo, por exemplo, o drama procurou afirmar-se precisamente como alternativa à tragédia. A verdadeira personagem trágica de Antígona, se considerarmos o mito, mais que a sua concretização específica às mãos de Sófocles, que o trabalha de modo outro, é Creonte, cujo dilema não está longe do de Agamémnon, na escolha que é forçado a operar entre a esfera pública e a privada/familiar.
O trágico não pode permitir, insistimos, que uma das opções seja moralmente superior à outra: são ambas iguais e na medida em que a escolha é arbitrária e o sujeito escolhe o que o destrói é que ele se converte num herói trágico, como acima dissémos. O que leva a esta escolha é precisamente a ανάγκη, que não é, não pode ser, moral ou amoral: ela é tão somente a necessidade e não se pode fazer um discurso da bondade da necessidade: bondade e maldade são coisas humanas e a necessidade é de ordem quase cosmológica, num certo sentido. A ανάγκη, na medida em que não é moral/avaliativa, não pode conferir sentido a nada. O modo trágico confronta-nos com a insignificância do homem ao mostrar a insignificância das valorações que ele constrói para se orientar no universo. Toda a grelha de leitura do mundo colapsa, subitamente: o real é abundante e fértil - e não moral. O modo trágico é contíguo ao moral, dissémos, mas não menos o é ao nihilista (nota bem: o ser adjacente a este só mostra como o modo trágico não é nem se deve confundir com ele). É no assumir a ανάγκη livremente que o herói se faz trágico.
Que forma, pois, assume a ανάγκη? A da necessidade de agir. O desenrolar dos acontecimentos gera uma situação com centro no herói, que é forçado a responder-lhe. Esta resposta pode assumir, já o dissémos, duas formas: a acção ou a inacção. Orestes pode escolher não matar a mãe e Heitor pode preferir não se dar a matar a Aquiles. Assumir a ανάγκη implica, porém, o movimento oposto e aquele que o mito necessariamente regista. O herói responde à necessidade de agir agindo, leva a necessidade de acção à sua plenitude, concretiza-a totalmente, oferece-lhe o seu corpo para que ela tenha corpo. O herói que não age - Agamémnon que não mata Ifigénia - nunca se apropria da ανάγκη, da natural compulsão para agir que resulta simplesmente da situação em que se encontra. Porque opta por não agir, acaba então a encarar obrigatoriamente a ανάγκη como fatum, coisa estranha, vinda de fora, algo que se sofre (esta a visão tradicional do que é o «destino»: note-se como fatum lembra factum, «o feito», aquilo que se tem de aceitar, porque acabado, já), da qual o herói não é, nem pode ser, parte activa: aqui se pode operar então a confusão entre os dois conceitos e, a acontecer neste caso, não é enganadora de todo: a necessidade de agir (ανάγκη) revela-se verdadeiramente - mas apenas por opção do sujeito - uma necessidade de sofrer (exactamente o oposto).
A ανάγκη é um convite para, se temos de agir, agirmos. Esta formulação, parecendo tautológica, é tudo menos isso (se fosse tautológica regressávamos ao problema já abordado da libedade do herói). Penteu, cujo dilema em que o modo trágico o visita se aproxima do de Creonte, obrigado, pela vinda do deus que vem (der kommende Gott, Hölderlin), a re-agir, age - e esse agir, quando podia não agir, insistimos, é a sua assunção voluntária da ανάγκη, o seu esforço para a completar, uma vez que ela se iniciou, o seu exercício de a fazer sua (o herói é um egoísta). Este «levar a cabo», que é a característica não tanto do trágico mas do heróico (escolhe uma virtude só e apega-te a ela com todas as tuas forças até ao fim, recomendava Nietzsche), aplica-se também no caso da opção pela não-acção. A não-acção é tão trágica quanto a acção, porque a escolha por uma ou por outra é, para o que aqui nos ocupa, irrelevante, como já tivemos oportunidade de explicar. Contudo, têm graus diferentes de heroísmo. Se a Orestes, por qualquer razão, lhe fosse impossível matar a mãe, a única maneira de assumir a sua ανάγκη seria de agir totalmente também a sua não-acção, impedindo toda a acção: pensamos no suicídio, claro. Este o único caminho de o herói recuperar algo da sua dignidade, se opta pela não-acção. Repetimos: este desfecho mais pessoal (o herói recolhe-se sobre si ao espetar a espada no corpo, numa alegoria), sendo menos heróico (na medida em que o herói é activo em segundo grau apenas, isto é, activo só na assunção da sua não-acção), não é menos trágico.
O herói tende pois a agir na medida precisa em que é herói. Se entre o conteúdo das acções disponíveis quando a ανάγκη chega (matar a mãe ou não matar a mãe, para Orestes), não há qualquer hierarquia moral, esta já existe no que diz respeito à questão de agir ou não: falando em absoluto, na tábua de valores do herói, é melhor agir do que não-agir, pois só a acção se constitui como afirmação radical do «eu», o «eu» é, até, fundamentalmente, um conjunto de acções e, no caso do herói, um conjunto de acções grandes, aquelas, paradoxalmente, que anulam esse próprio «eu». O herói reúne dialecticamente a máxima afirmação do «eu» com o desprezo total pela sua permanência: no caso extremo, ele atinge a imortalidade na sua morte. O herói, que leu muito Heraclito, é fundamentalmente um movimento, um fogo que se consome a si próprio mais que a outra coisa qualquer. O herói aproxima-se dos deuses na medida em que recusa que algo lhe aconteça, para fazer ele acontecer tudo (isto o que designámos até aqui como assunção, palavra que, curiosamente, na teologia, designa também a subida aos céus). Ele concretiza em si o mais das vezes o Conceito, ele esmaga o particular sob o pé pesado do absoluto (por isso o herói trágico encarna tantas vezes a razão de Estado ou a Lei, necessariamente indiferentes aos particularismos que fazem o humano: por isso, em parte, Édipo se cega, quando é inocente). O herói trágico é como quem, no meio de uma tempestade, corresse para baixo de uma árvore para se proteger dos relâmpagos, garantindo com isso ser atingido. A ανάγκη é a tempestade.

ilustração: Orestes Perseguido Pelas Fúrias, de John Singer Sargent.
Biblioteca Pública de Boston, 1890-1919.

Sem comentários: