terça-feira, dezembro 15, 2009

"Antigones", de George Steiner

With the self-lacerating clarity which also characterizes Oedipus when fatality strikes, Antigone spells out, urges the paradox of her undoing: her piety has harvested both the designation and fruits of impiety. Her just deed has generated hideous injustice. Now what moral right, what pragmatic motive, has she to call upon those gods whose manifest failure to intervene on her behalf is either incomprehensible or a signal that Antigone has acted in error? Unspoken, yet in range of Antigone's bitter casuistry, is the third, most terrible alternative: that the gods are unjust or impotent, that mortal man, if he insists on acting ethically, according to reason and conscience, must leave the gods 'behind'. We find this view, if the text can be adequately reconstructed, stated all but explicitly at the close of Euripides' Bacchae. I take it to be outside Sophocles' world-view. Nevertheless, it is a distant inference which seems to press on the inhuman solitude and self-torment of Antigone's finale. Nothing in her acquiesces in an Aeschylean theodicy, in the acceptance, proposed by the chorus, of unmerited doom or of the absence of divine help in consequence of some heriditary malediction. She wants to know. She is Oedipus' child, rebellious in knowledge.
in: Steiner, Antigones, 281-2.
Tive a sorte de estudar Literatura Grega com indubitavelmente uma das melhores professoras de Clássicas de Coimbra: Teresa Schiappa, que alguns talvez recordem como a tradutora do Fédon que terão lido no primeiro período do décimo segundo ano a Filosofia (o meu caso). O programa do semestre restringia-se à produção dos três grandes trágicos; de cada um estudaríamos duas peças. Foi nessa altura que me apaixonei por Ésquilo, com a análise detalhada que fizemos do Agamémnon, que seguimos, por estarmos a trabalhar também com não-classicistas, pela tradução portuguesa de Manuel Pulquério. As metáforas esquilianas — «o mar Egeu a florir com os cadáveres dos guerreiros» (659) — e o arrojo da linguagem do poeta granjearam-lhe o primeiro prémio na contenda que diónisos movi entre os três. Sentia uma afinidade entre o que sinto ser o arriscado experimentalismo linguístico de Ésquilo e o meu próprio modo de me atrever a escrever (perdoe-se-me a hybris). A forte imagética esquiliana, por sua vez, tem necessariamente de apelar a quem também pensa graficamente, treinado no cinema. Tudo isto me levou a tomar Ésquilo como patrono, numen protector, avô clássico, a archê de uma tradição em que me queria filiar.
A Sophia — no nosso ano éramos apenas ambos —, pelo contrário, refugiu-se na sombra de Sófocles, que aclamou como o maior dos três em disputa. O estudo do Filoctetes convencera-a definitivamente disso (por Eurípides tínhamos os dois um salutar desprezo herdado ainda de Nietzsche, com o qual salvávamos, da obra do dramaturgo, As Bacantes, apenas). O Filoctetes representara, também para mim, um encontro, mas de outra ordem: ele fornecedeu-me o conceito para chamar pelo nome algo informe, mas sobretudo anónimo, que vinha emergindo como força fundamental dentro da minha antropo-logia privada: a φύσις. O termo nunca mais me abandonou, ao ponto de se ter recentemente chegado à frente como possível tema para o mestrado. Para além do Filoctetes, lemos na altura também o Édipo em Colono, peça verdadeiramente única no corpus trágico, de uma serenidade rara, capaz, a tempos, em mim, daquele efeito alquímico-espiritual que registo em lendo Ricardo Reis: o coração pronto se me amansa, independente da situação, como se bebesse da droga de Helena. Com o Coloneus, porém, e isso faz toda a diferença, essa paz é pensada, clarividente, discernida, mais do que simples erupção psíquica, como em Reis. Há uma dignidade profunda que emana daquele Édipo e, de alguma forma, ele funciona, para mim, como ideal do velho, que levou a cabo o exame crítico da sua vida, não se arrepende dos seus actos, alcançou o poder da palavra (a palavra que efectivamente, entre os Gregos, como sublinhava Hölderlin, mata: Édipo mata Polinices, mesmo se Antígona o não entenda) e está com os deuses inter pares: Édipo, a Euménide.
Tudo isto, porém, dizia, não chegou para me converter à superioridade de Sófocles. Antigones, de Steiner, pode muito bem tê-lo conseguido. É talvez ainda cedo, para que emita um juízo final e, estou certo, — isso não se altera — Ésquilo ser-me-á sempre mais próximo do ponto de vista de geneologia literária, ou pelo menos linguística, que Sófocles. E, todavia, começo a tender para a opinião da Sophia: as mulheres, já o devia ter aprendido, sabem mais, e mais cedo, que os homens. O obreiro disto, Steiner. O seu Antigones, obra de fôlego, encontra-se dividida em três grandes partes, que correspondem grosso modo a um terço do livro, cada uma. A primeira, Steiner gasta-a a analisar a forma como Hegel, Kierkegaard e Hölderlin interpretaram o mito de Antígona, a partir de uma leitura atenta dos textos destes. É a parte mais filosófica da obra e inclui uma valiosa abordagem à tradução da peça por Hölderlin (o melhor, talvez, desta primeira secção). Na segunda parte do livro, Steiner analisa a fortuna de Antígona e outras personagens da peça (Creonte, Ismena e Hémon) na produção literária e musical, a nível mundial. Esta secção, porém, entenda-se, não se resume a um linear e seco estudo de recepção. É aqui, por exemplo, que Steiner vai expor a sua teoria do mito e apresenta, de forma sobremaneira acessível, creio, a leitura que Heidegger faz da peça e figura homónima. Ao mesmo tempo, aqui apenas, Hémon e Ismena recebem uma atenção individualizada, nos capítulos respectivos.
Na terceira e última parte, enfim, Steiner analisa, ele próprio, a peça. Depois da Filosofia e dos Estudos de Recepção (e outras coisas), os Estudos Literários. E aqui, Steiner excels, por também ser, não o seu território (que, como bom judeu, Steiner está em marcha perpétua diáspora pelos reinos todos do saber), mas a sua casa — ou catedral. Os capítulos quinto, sexto e sétimo, num todo de pouco mais que cinquenta páginas — esses são os responsáveis pela minha impendente conversão a Sófocles. Steiner não o diz, mas a tempos chegamos a confiar que ele acredita que Antígona pode ser a maior obra da literatura mundial. Steiner atenta nos mais pequenos pormenores e estuda as palavras. Submete passagens inteiras a um quase acríbico close reading, analisando, por exemplo, cada estásimo individualmente. O resultado é o impossível: ao fim de duzentas páginas compilando as mais diversas interpretações da peça, mostra-se ser ainda possível dizer, arrisco a ousadia, algo de novo, pelo cuidado extremo com as palavras (esta a metodologia de Steiner, que lhe permite o milagre).
Antigones fez-me de novo experimentar, de forma muito palpável (Steiner adora esta palavra), o terror do falhanço da promessa democrática do ensino universal. Pensar que há quem não leu Antígona, por momentos, perturbou-me seriamente: como lhes podemos estar a negar esta obra maior? Como foi possível não termos educado o espírito deles para a acolherem, para que Antígona fosse enterrada viva não numa caverna, mas nos seus próprios peitos? Steiner revela como na Antígona se põe a nu, como nua só se anunciasse inteira, a condição humana toda. De alguma forma, aquela terceira parte vale não só pelo prazer de encontrar a arte de Sófocles ou o pensamento crítico e atento de Steiner, mas por nós próprios, que estamos ali em jogo, implicados: tua res agitur. Vimos mais cheios, mais conscientes, mais «autênticos» (num sentido que, partindo daquele que Heidegger dá à expressão, o ultrapassa, contudo). O que é o Homem? , perguntava Kant. Steiner, interpelado, enviaria para Königsberg um exemplar da Antígona. E Kant calou-se.

ilustração: Antígona frente a Polinices morto, de Nikiphoros Lytras.
Galeria Nacional de Atenas, 1865.

sábado, dezembro 12, 2009

Músicas Para Educar O Bom Gosto §2

Sawdust and Diamonds,
de Joanna Newsom
in:
Ys (2006)

quinta-feira, dezembro 10, 2009

Ἀντιγόνη

Quando eu era criança, encenaram a Antígona na escola e, porque sabiam como gostava de teatro, convidaram-me para o coro. Lembro-me que fomos todos vestidos de preto e descalços e levávamos umas capinhas feitas de cartolina porque era barato em cujo bojo escondíamos as nossas falas, lidas a metrónomo. Recordo vagamente o cenário, um pano gigante com a fachada de um templo, e penso ainda saber quem foi a protagonista (hoje, se acerto, no curso de jornalismo). Desde então, creio, nunca mais li a peça, que o meu pai tinha numa edição da Inquérito, tradução de Fernando Melro, e na edição alemã bilingue da Reclam, comprada por — diz o autocolante na contracapa — dois euros, apenas. Quando entrei para Clássicas, deram-me ainda uma terceira cópia, um libreto feito para acompanhar a encenação do Thíasos, com a tradução de Maria Helena da Rocha Pereira. Antígona, porém, discreta, permanecera junto a mim: amei uma mulher que a interpretou — porque dizia Schelley que quem noutra vida amou Antígona não pode amar outra mulher — e, já no início deste ano, o meu instinto primeiro para treinar o grego foi tomar da estante o livrinho laranja da Reclam e dobrar o grego em português (não fui além do primeiro verso: hora talvez hoje de recomeçar). Procurando um projecto para mestrado, surgiu-me uma tese sobre a peça de Sófocles e os blocos bélicos nela. Levou-me isso às Antigones de Steiner, o livro último sobre a fortuna do mito e da mulher, que leio, ainda. Foi na vontade de partilhar com o Alvenel uma descoberta aí — que Orff escreva uma ópera sobre a versão de Hölderlin — que encontrei a versão teatral de Don Taylor para a BBC, de 1984 — ano feliz para uma peça sobre o indíviduo contra o Estado — com Juliet Stevenson como Antígona e John Shrapnel no papel de Creonte. Não era essa a minha intenção, porque o tempo era pouco e o trabalho até muito, mas acabei por ver, desarmado, toda a peça. Não houve qualquer anagnórise: as memórias da representação do meu sétimo ano estavam já demasiado enterradas, não como Polinices. Ver Antígona foi um encontro, uma manifestação, um pouco como Heidegger diz ser a verdade (ἀλήθεια). Que coisa é este texto que quase dois milénios e meio depois de ter sido escrito me faz ainda chorar o tempo quase inteiro? É preciso encontrar a peça viva para nos lembrarmos da profunda mentira que é o acto de ler teatro. A tradução de Taylor, mesmo se com alterações ao original (exemplo óbvio: o uso da palavra «terrorists» ou «hotel»), é um prodígio de força, longe do formalismo estanque e estranhizante — no pior sentido do termo — da tradução árida, ainda que correcta, de Rocha Pereira. Todo o outro trabalho, certo: o cenário, os actores, a banda sonora. O coro, a tempos, nomeadamente nos primeiros estásimos, falha em convencer o espectador a aceitá-lo, como seria normal, mas é usado com verdadeira mestria nos episódios e dança uma coreografia lenta subtil firme. Não tenho agora o θυμός de pensar a peça, de objectivar em discurso a emoção ainda quente. Deixo o kommós: aquela gargalhada de Antígona não tem verbo.



escultura: Antígona, em bronze, de George Anthonisen.

A Morte da Vestal


Migueli «jesuitae» dedidatus


A vestal lava a chama como um filho uma criança
Útero de Roma
deus aristotélico ao contrário:
O movimento que garante às coisas que fiquem.

Roma arde
--ontem
Sem nero sem cristãos
Lar-eira mundi

O átomo no templo.
Os toros como touros sem sangue para matar
A rapariga sobe os degraus como cresce
E o fogo excita-se como uma mulher quando o tocam.

O Homem entra a força
Com a decisão no passo de uma órbita
------------------no posso de um é-dito
E a verde-ade que porque jovem cheia

A vestal atirada ao chão como uma puta para que se sobe
O coração de Roma sob uma bota como um cigarro
O fogo esmagoado
— cinzas só.

A pro-cura última de montar a chama como o tempo
E a rapariga trinchada.
O Homem deixa a casa como uma mulher gasta.
Roma jhove.

9-10.xii.2009

ilustração: de Frederick Leighton.
foto: o templo de Vesta, no Fórum, hoje.

terça-feira, dezembro 08, 2009

Músicas Para Educar O Bom Gosto §1

Change Is Hard,
de She & Him
in:
She & Him - Volume I (2008)



Esta mulher: nova razão de amar as morenas sobre as outras.