sexta-feira, março 24, 2006

Quoth The Raven §1: Terceiro/O Conde D. Henrique [em estudando a "Mensagem"]

TERCEIRO / O CONDE D. HENRIOUE

Todo começo é involuntário.
Deus é o agente.
O herói a si assiste, vário
E inconsciente.

À espada em tuas mãos achada
Teu olhar desce.
«Que farei eu com esta espada?»

Ergueste-a, e fez-se.

Fernando Pessoa

Speakers' Corner §1: Odessa: Homem, Vê!

Jana, 13 anos, moldava, fotografada em Odessa, Leste da Ucrânia. O pai morreu ainda nova, a mãe na cadeia, ela na droga. Três meses depois da objectiva de David Gillanders a capturar, faleceu, com SIDA, na barraca onde vivia. Viver? Choro de sarcasmo e rio de engasgo de soco mal digerido na faringe! Viver? Deus, Homem: viver! E eu tenho um computador à frente, e oiço música, e estou sentado numa cadeira, numa casa com tecto, com bolachas lá em baixo para comer agora antes de ir dormir numa cama com colchão e lençol num quarto com aquecimento central. Eu tenho demais - só pode ser. O que ando a fazer ao dinheiro, essa peste vive e lazarenta do mundo? Como posso sequer ousar ser feliz? Calculo que, coração grande, tenha compaixão dos povos, e me ocupe mais a felicidade alheia que a própria. Mas ai!, quão hipócrita é o meu sentimento! Pois ainda não só melhor do que aqueles do Hotel Rwanda, que, ante o genocídio, ao jantar, pela tevê, comentam, pondo o garfo na boca, a situação triste e exclama «Pobres deles!», mas prosseguem, pacíficos, a sua comida - para logo a seguir verem um talk-show. Deus, quem sou eu para ser tão insensível? Tenho de acreditar, insanamente, que posso mudar o mundo - ou tudo não passa duma peça disparatadamente encenada: não posso ser tão impotente como um cão preso à casota da sua condição pela corrente da sua restrita humanidade. Raios! Não, não me digam que eu me surdo!, não me digam que eu não posso acabar com a miséria de tantas mais Janas e limpar tantas mais Ucrânias! Se não acreditar na utopia, ela não terá tópos jamais! É o desistirmos sem acreditarmso que dana o nosso mundo e nos dana a nós em vidas rotineiras sem sentido que se lhes encontre ou ache, nem que procuremos debaixo do tapete da pele superficial - tudo é superficial na nossa sociedade! - dos trabalhadores de colarinhos brancos! Jana, Jana, deixa-me salvar-te!, salvo, primeiro, de mim mesmo, eu próprio...
(Foto Vencedora do Concurso de Fotografia da UNICEF, Edição 2006)

segunda-feira, março 20, 2006

And Viddy Films I Would §2: "Sylvia", de Christine Jeffs (2003), e "Daddy" [num dia do pai]

Passou ontem na 2: o filme Sylvia, com Gwyneth Paltrow no papel de Sylvia Plath e Daniel Craig (o Bond-para-ser) como Edward Hughes, o marido da poetisa, ele mesmo poeta também. Quando o filme saiu, em 2003, fiquei com curiosidade em vê-lo, mas esta foi só mais uma das películas que estão uma semana num cinema de esquina em Lisboa e decapitadas são na capital - esquecidas ao resto de Portugal. Nunca ouvi falar de uma saída em DVD. Foi, por isso, com boas perspectivas que me sentei no sofá para, noite adentro, seguir a conturbada relação dos dois protagonistas.
Paltrow oferece uma interpretação poderosa, com uma maleabilidade de rosto impressionante: não raro a câmara pára nele, porque ela detém o dom de concentrar, nas rugas, nas expressões, na fronte, nos olhos, todo o sentimento de angústia de Sylvia. As frequentes cenas, sem palavra, em que, esperando pelo marido, Sylvia, num quarto escuro, numa fotografia impressionante em matizes azuis-escuras, sozinha, sofre, sugam-nos para o interior daquele espírito que teve o fado de ser infeliz. Craig também desempenha com primor o seu papel, mas é, face a Gwyneth, secundário - ainda que essencial, como motor da acção.
A impressionante vida de Sylvia, na forma como tenta conciliar família, poesia e carreira profissional, perturba. Com uma grave doença mental (esteve internada na sua adolescência, apesar de isso não ser mostrado no filme - faz recordar, quiçá, a situação da neo-zelandesa, poetisa igualmente, Janet Frame, mostrada em Um Anjo À Minha Mesa), com o trauma da morte prematura do pai (tinha ela oito anos), amando incrivelmente o marido como poucas mulheres há que o tenham feito, acabou por, César!, se ver traída pelo Brutus!: Edward! Teve, ainda assim, dois filhos, mas o adultério do esposo levou à inevitável solitária separação - que nunca mais reatará laços, como um embrulho de prenda rasgado: mas o presente, era a morte.
Como ela começa no seu poema Lady Lazarus: «I have done it again./One year in every ten», assim, depois de se ter tentado suicidar com dez anos, repetido, fracassando, a morte aos vinte, por fim, com trinta anos, num dia 11 de Fevereiro de 1963, pôs um término à sua vida, de uma das formas mais inéditas de suicídio. Os preparativos, a morte e o após são particularmente tocantes e bem conseguidos, em grande parte pela banda sonora, de qualidade magna ao longo de toda a fita - e verdadeiramente recomendável, sabendo transferir da tela para quem vê toda a tristeza de um dia de Outono/Inverno que foi a vida de Sylvia.
Um dos pormenores mais deliciosos do filme é a simbologia da árvore inicial e da final, como só após a morte, Primavera. Mais que não fosse, despertei para esta nova poetisa e as suas composições, que me estão, do pouco que, para já, pude ler, a cativar, como raposa o Princepezinho. Aos que têm a bíblia da poesia, Rosa do Mundo - 2001 Poemas Para O Futuro, vão à página 1716 e podem provar, com um dedo maroto, a nata do bolo de casamento. Abaixo, um dos que figuram no filme, um dos mais conhecidos dela e, estranhamente, com um título apropriado à circunstância - e a aparência ilude.

Daddy

You do not do, you do not do
Any more, black shoe
In which I have lived like a foot
For thirty years, poor and white,
Barely daring to breathe or Achoo.

Daddy, I have had to kill you.
You died before I had time--
Marble-heavy, a bag full of God,

Ghastly statue with one gray toe
Big as a Frisco seal


And a head in the freakish Atlantic
Where it pours bean green over blue
In the waters off beautiful Nauset.
I used to pray to recover you.
Ach, du.

In the German tongue, in the Polish town
Scraped flat by the roller

Of wars, wars, wars.
But the name of the town is common.
My Polock friend

Says there are a dozen or two.

So I never could tell where you
Put your foot, your root,
I never could talk to you.
The tongue stuck in my jaw.


It stuck in a barb wire snare.
Ich, ich, ich, ich,
I could hardly speak.
I thought every German was you.
And the language obscene

An engine, an engine

Chuffing me off like a Jew.
A Jew to Dachau, Auschwitz, Belsen.
I began to talk like a Jew.
I think I may well be a Jew.


The snows of the Tyrol, the clear beer of Vienna

Are not very pure or true.
With my gipsy ancestress and my weird luck
And my Taroc pack and my Taroc pack

I may be a bit of a Jew.

I have always been scared of you,
With your Luftwaffe, your gobbledygoo.
And your neat mustache
And your Aryan eye, bright blue.
Panzer-man, panzer-man, O You--


Not God but a swastika
So black no sky could squeak through.
Every woman adores a Fascist,

The boot in the face, the brute
Brute heart of a brute like you.

You stand at the blackboard, daddy,
In the picture I have of you,

A cleft in your chin instead of your foot
But no less a devil for that, no not

Any less the black man who

Bit my pretty red heart in two.
I was ten when they buried you.
At twenty I tried to die
And get back, back, back to you.
I thought even the bones would do.

But they pulled me out of the sack,
And they stuck me together with glue.

And then I knew what to do.
I made a model of you,
A man in black with a Meinkampf look


And a love of the rack and the screw.
And I said I do, I do.
So daddy, I'm finally through.
The black telephone's off at the root,
The voices just can't worm through.


If I've killed one man, I've killed two--
The vampire who said he was you
And drank my blood for a year,

Seven years, if you want to know.
Daddy, you can lie back now.

There's a stake in your fat black heart
And the villagers never liked you.
They are dancing and stamping on you.
They always knew it was you.
Daddy, daddy, you bastard, I'm through.


12 October 1962


«Even amidst fierce flames the golden lotus can be planted.»
(Epitáfio de Plath)

sábado, março 18, 2006

And Viddy Films I Would §1: "Despertares" (1990), de Penny Marshall ou O Rapaz das Laranjas

Ontem à noite, com um grupo de amigos, tive a oportunidade de, caseiramente, na casa de um, ver o filme Awakenings, em português, acertadamente traduzido (coisa raríssima!) por Despertares, nomeado para três óscares, entre eles o de Melhor Filme e Melhor Actor (Robert De Niro), no ano de 1990.
O filme narra a história do Dr. Sayer (Robin Williams) que, em chegado a um hospital de doenças crónicas, em vez de se conformar com a situação inumana dos pacientes, crente de que há vidas naquelas verdadeiras estátuas paralisadas que são os doentes, começa a investigar os seus casos, apaixonando-se pelo de Leonard Lowe (De Niro), que Sayer consegue despertar através de uma nova droga, reservada a doentes de Parkinson. Porém, «tudo tem a efemeridade de um arco-íris!», como escrevia Ribeiro - e, assim, o drama.
Chorei - chovia nesse dia: fora e em mim entristecia. Despertares é dos mais comoventes filmes que alguma vez vi, em grande medida pela assustadora interpretação de De Niro. É um filme terrível, tanto mais quando pensamos que se inspira num caso real - e, ai quão certo!, é tão mais perto da imaginação a realidade!
No fundo, citando o filme, num diálogo final entre Sayer e Eleanor:
- How kind is it to give life, only to take it away?
- It's given to and taken away from all of us.
Este comentário recordou-me A Rapariga das Laranjas de Gaarder, que, na sua habitual trama filosófica, nos indagava exactamente sobre esta problemática, alargada ao contexto da nossa própria vida. O livro narrava a história de um rapaz que descobre uma carta do pai - morrido há muito, na sua infância - escrita para ele, para a ler quando fosse mais velho. A pergunta derradeira com que o pai o liberta é se, de facto, valeu a pena tê-lo posto nesta vida, que ele comparava à Sonata ao Luar de Beethoven: o primeiro andamento (a não-existência), tenebroso e soturno; o segundo andamento (a vida), curto e alegre; o terceiro (a morte), fulminante, raivoso e rápido. Efectivamente, Despertares é só uma metáfora profunda da nossa própria existência, que é, também ela um despertar, efémero somente.
Leonard queixava-se, a um dado momento do filme, da pouca importância que as pessoas dão à sua vida, de como a desperdiçam em futilidades, sem dela saborearem o essencial - «the simplest things», essa sua confissão desesperada. É natural que, tal John do Admirável Mundo Novo, também ele, a um certo momento da história, se revolte contra aquela sociedade - ela sim, paralisada, doente crónica de uma maladia sem diagnóstico senão o dos loucos e dos manicómios.
Dar esperança («Hope, it is the quintessential human delusion, simultaneously the source of your greatest strength, and your greatest weakness.», nessa magnífica definição do Arquitecto no segundo Matrix) para logo a seguir a tirar - será crueldade?, sadismo? Mas e não a dar de todo? E não é a esperança a benção de Pandora, a vozinha fina e frágil, como uma ânfora que se pode partir só porque vai, varina, na cabeça de uma menina; essa voz que, no fundo da caixa de Pandora, depois de libertados todos os males, requesitou autorização para sair, ela também, para abundantemente - ainda que falsamente, quiçá - consolar os homens? Saber que perderemos tudo, que nada ficará porque «És pó e em pó te transformarás», que, em última análise, o Universo se encarregará de extinguir a nossa raça...
«Quando é que despertarei de estar acordado?» (Pessoa, Magnificat)

terça-feira, março 14, 2006

Moleskines §1: Penélopes

Sem nome decente para a intervenção, fiz o que sempre faço nestas ocasiõe: vou à velha grega mitologia requisitar um nome que, de alguma forma, possa interligar com o que escrevo. Sem plano definido para este rascunho, via, quando o projectava mentalmente concluído, nele um entrelaçar de temas que, invariavelmente, me recordou a teia e o tear - e, com elas, Pénelope.
* * *
Ontem, quiseram forçar-me a fazer a barba. Símbolo viril por excelência, não que a me por isso, mas porque me sinto nu sem ela, rente ou desenvolta esteja. Face à minha oposição ao apelo que me fizeram para a limpar (se algo a limpar há numa mera cobertura parca que nem uma semana tem e só acinzenta o rosto), disseram-me que não arranjasse confusões e que contribuísse para um bom ambiente, não irritando os outros. Estranho que a vontade a ceder seja, invariavelmente, a nossa, que nunca sejam os outros a tentarem não irritar-me (se eu me irritasse, coisa que já não pratico, de tão supérfluo que é). Invariavelmente também, as pessoas não sabem inverter o ângulo e foco dos seus argumentos: se o fizessem, talvez me deixassem a barba solta, e, em vez de pedirem a que outros cedam a vontade, cedessem eles a sua. De qualquer das formas, não fiz a dita cuja. Quem souber ler metáforas e hipónimos, que os leia.

* * *
Acabei de ver o início do concerto, em 1970, dos Led Zeppelin no Royal Albert Hall. Só vi as duas primeiras músicas, mas tenho de destacar a "I Can't Quit You Baby". Ainda que se tenha vindo a descobrir que esta música do CD de estreia era um cover de outro artista, a música foi de tal forma alterada e é tão magistralmente trabalhada pela banda que perdeu a sua autoria original, para passar a ser, na acepção plena, uma outra obra-prima dos Led Zeppelin. Magnífico o espectáculo, os impressionantes solos de guitarra do Jimmy Page nesta rock-blues. E, ainda que curto, o solo do baterista Bonham marca igualmente, ainda que todo o acompanhamento ao longo da música não nos permita, jamais, esquecê-lo, com a sua batida poderosa, lembrando aquele verso de Álvaro de Campos "À dolorosa luz das grandes lâmpadas [...] Tenho febre e toco bateria", seja-nos permitido emendar, pois é, de facto, fervilhante a energia que ele transparece . Fenomenal - e perdoem-me a escassez de palavras, mas elas não existem face à grandiosidade, quase de Alexandre, da composição.

sábado, março 11, 2006

Bloguística §1: A Varanda Amarela [regressada]

Não pude - luta vã! - resistir à tentação de fabricar mais um blogue, olvidando o número excessivo dos que já construí, para os quais, em olhando, os visitantes vêem ruínas - quando nunca houve nada lá para que ruísse: são tão somente construções inacabadas. Porém, por muitos alicerces postos, nunca me dispûs ao que me disponho agora: um blogue no sentido original e imaculado do termo, onde, tão somente, sem preocupação, escreva, pouco ou muito, um pormenor qualquer que me chamou a atenção, os prelúdios de uma revolução ou as tristezas de um quotidiano mal fervido.
Estou a assumir muitos compromissos comigo mesmo: manter uma postagem ritmada, ainda que não periódica; conseguir minimamente não ser espantalho do meu próprio público por causa de artigos monótonos; não pensar muito no que escrevo aqui, apenas, inconsciente, escrever, como os dedos assim deslizarem pelo teclado - ininterruptos. Falar do que me ocorre - se algum valor tem, que sei que não.
A Varanda Amarela - porquê? Escrevo as primeiras linhas deste blogue da Universidade de Direito de Coimbra, do gabinete do meu pai. À minha frente, está uma janela, e, por de trás da janela, que a transparência revela, uma módica varanda, onde só dois pés - nem com espaço assaz para um valsa circular - cabem: é uma sepultura em pé. Talvez por isso as fechaduras da janela estão tão ferrugentes: ninguém quer o que está para além delas, como baú abandonado só com trapos errados da avó cujo nome já se esqueceu. E, curiosamente, a varanda é amarela. Dum amarelo desbotado certo, de quem tem fome, esbranquiçado, pálido, de quem morre - morre da fome, talvez. Mas foi esta varanda que eu escolhi para meu blogue. Dela contemplo todo um terraço onde alunos se movem, se agitam, se falam, se deslocam apressados ou param junto a um cinzeiro para deixar a beata. Daqui, miro o mundo. O ver verdiano de Cesário: atitude tão admirável! Mas a minha cidade não é Lisboa, nem Lisboa eu aqui relato: a minha Olissipo é o António, o Pedro, a Leonore, a Beatriz!
Não, não faço deste espaço cibernético confessionário, não! Mas é como quem diz que são as pessoas que lhe aproveitam, que lhe interessam: o mundo e suas circunvalações. O drama e tragédia do ser humano - o seu próprio drama até ou a notícia do jornal. O pensamento solto aqui achará agacho. O cordeiro - o subtil meandro de uma cogitação ou sentimento - dorme aqui com o leão - a grande construção eloquente de uma filosofia diferente. No fundo, A Varanda Amarela é um zoológico. Tudo entra por aqui adentro, como no quadro de Boccioni que começa esta pintura escrita (admirável Boccioni! Fervilhante futurismo!).
E a tudo, dou o espaço que multiplico.