sábado, março 21, 2009

Quoth the Raven §7: O Ciúme, D' Après Barthes


«
2. Werther está preso a esta imagem: Carlota corta as fatias e distribui-as pelos irmãos e irmãs. Carlota é um bolo e esse bolo divide-se: cada um tem a sua fatia: não sou o único - em nada sou o único, tenho irmãos, irmãs, devo dividir, devo submeter-me a essa partilha: as deusas do Destino não são também as deusas da Divisão, as moiras - sendo a última, a Muda, a Morte? Além disso, se não aceito a divisão do ser amado, nego a sua perfeição, pois pertence à perfeição o dividir-se: Mélita divide-se porque é perfeita e Hipérion sofre com isso: «A minha tristeza era verdadeiramente sem limites. Foi preciso afastar-me». Assim, sofro duas vezes: pela própria partilha e pela minha impossibilidade de aceitar a sua nobreza.

[...]

4. Ciumento, sofro quatro vezes: porque sou ciumento, porque me censuro de o ser, porque temo que o meu ciúme fira o outro, porque me deixo submeter a uma banalidade: sofro por ser exclusivista, agressivo, louco e vulgar.
»

Roland Barthes, Fragmentos de um Discurso Amoroso
(Tradução de Isabel Pascoal - Edições 70)


quarta-feira, janeiro 21, 2009

Moleskines §13: 2008, Segundo Semestre - Balanço Literário

SENHORAS E SENHORES, EI-LOS:












1. Em Busca do Tempo Perdido - Do Lado de Swann, Marcel Proust
(trad.: Pedro Tamen)
2. The Idiot, Dostoiévski
(trad.: David McDuff)

3. A Perna Esquerda de Paris seguido de Roland Barthes e Robert Musil,
Gonçalo M. Tavares


Um homem lê muito, e ainda assim lê pouco. «Tem de haver outra forma de um homem se salvar», suspirava com pavor o grande Almada. Talvez porque em vida isso nos seja impossível Borges cuidou que o paraíso fosse uma biblioteca. Cada vez que um homem descobre um livro que lhe muda a vida tem de se interrogar necessariamente sobre as vidas que anda a perder à custa dos livros que não leu. Isto é apenas outra forma do problema do mal e urge uma teodiceia disto. E porém um livro só age no tempo bom no tempo certo. Mil livros nunca me salvarão por eu os ler no dia errado. O que seria eu se eles me salvassem, eles e não outros, eles e não os que me salvaram? Foi tudo tão acaso - e, simultaneamente, foi tudo providência.
De quanto li no seis meses passados, guardei três monumentos três textos bíblicos três palestinas para regressar no fim da diáspora. Três textos em que cada palavra era acutilante, necessária e fértil; cada palavra um livro ou um verso (se há alguma diferença entre os dois, é um tópico controverso). Assim se escolhem as grandes obras: aquelas que são bibliotecas. Dêem-me uma centena, se as há, destas, e em três dias reconstruo-vos alexandria.

Lembro-me que a primeira vez que ouvi falar de Proust (o nome do autor significar a obra: isto deve ser a coisa mais perto da santidade literária) ter sido a uma colega minha das aulas de alemão, há vários anos atrás. Dizia ela que diziam eles aqueles que tinham lido o livro que depois de ler Proust nada mais se lê, os livros murcham morrem. Relê-se Proust eternamente, e isso basta. Poucas vezes o homem esteve tão perto da verdade. Proust sabe a obra total: e eu li um sétimo da totalidade. Como é que se multiplica o absoluto por sete? Não há matemática para sete infinitos. Desde Corto Maltese que eu não tinha um livro que me amasse tanto e cosesse o coração esborratado. Proust é uma forma de mitologia real, uma arca de noé das coisas todas. A vida não se vive: lê-se (em francês, no original, e o Tamen, a traduzir, é genial).

Eu tinha-me obrigado a ler Dostoiévski antes dos vinte. Era uma vergonha literária que tinha e forçoso era corrigi-la. Eu, porém, tenho o gosto estranho de não começar os autores pelas suas obras maiores e, por isso, descartei logo o Crime & Castigo e deixei em Portugal O Jogador. Mireille sugeriu-me O Idiota e eu roubei-o da biblioteca na novíssima tradução do pinguim. Tomava todos os dias um capítulo como um comprimido antes de ir para a cama. A estrutura da obra é magistral, o mais perto que a prosa pode chegar do teatro. A estória começava num comboio, que é a forma russa de escrever era uma vez. E depois havia eu, e andava por ali, com espasmos de epilepsia, um idiota que sou. Dostoiévski escreveu-me uma biografia possível. Olhei para aquilo como um mapa de mim e onde as duas geografias não concordavam, a do Príncipe e a minha, plagiei mandando: Every valley shall be exalted, and every mountain and hill shall be made low: and the crooked shall be made straight, and the rough places plain (Is. 40.4). Quixote, determinei-me a ser Myshkin, porque já o era.

Repito: se houver um Prémio Nobel da Literatura nos próximos anos para Portugal, irá para Lobo Antunes. Se, porém, o prémio vier só daqui a umas décadas, dão-no ao Gonçalo. Também ajudou ele ter vindo a Coimbra (e o foyer do tagv estava cheio como um metro japonês). Nunca ninguém escreveu português daquela maneira: geométrica, concentrada, violentíssima. Quanto mais perto do haiku, mais próximo da perfeição. O que torna A Perna Esquerda... o melhor dele é o estar sempre a balançar no aforismo. Gonçalo é melhor ao pé coxinho. A Perna Esquerda... é para pegar, abrir ao torto, e colher um verso. Isso basta e dói e esmurra. Gonçalo não usa almofadas. Gonçalo não tem tempo para o que não é necessário: cada palavra é essencial e a cada palavra ele dá a essência toda: daí o peso e a verdade da coisa. Uma frase de Gonçalo substitui um romance inteiro. A coisa mais parecida que eu conheço com isto (diverge apenas no ser mais poética e mais maior) é o Livro do Desassossego. Dele diz Gonçalo: "uma coisa inclassificável e forte", "[cada] frase pode ser vista como um verso, ou como a pequena parte de um romance, ou como coisa que vai a caminho do ensaio ou, simplesmente (voltando ao início), como uma frase", "para qualquer assunto, enfim, encontraremos uma citação vinda do livro." Mas não se poderia dizer tudo isto do próprio minoutauro de Gonçalo, A Perna Esquerda de Paris seguido de Roland Barthes e Robert Musil? Livro-catedral, mas uma catedral saída da cabeça de Mondrian.

OUTROS DE BOA MEMÓRIA:

Maus, Art Spiegelman
Spiegelman ganhou o Pulitzer por isto. Mais que o mereceu. Maus é indizível e ao cruzar três narrativas - o Holocausto segundo o pai de Art, a relação dos dois, e a meta-narrativa sobre a composição do próprio Maus - transforma-se num dos mais revolucionários exercícios criativos da nona arte.

A Hero of Our Time, Mikhail Lermontov
(trad.: Vladimir & Dimitri Nabokov)

A obra-prima de Lermontov é um belíssimo naco do romantismo russo que dá um gozo tremendo a ler (para mais na tradução excelentíssima do Nabokov e filho, mas não há desculpa para os preguiçosos: existe também uma novíssima tradução dos Guerra, os nossos vovós russos, que nos contam as estórias dessa terra distante e grande).

Persepolis, Marjane Satrapi
Persepolis é o Underground do Irão, um mini-épico do país, um Bildungsroman alucinante de uma enorme boa-disposição mas sempre com a tragédia em pano de fundo (assim era também no filme do Kusturica). O Irão é esse país desconhecido de que, contudo, estamos sempre a falar: eis uma boa maneira de acabar com a hipocrisia (a seguir a isto, a Morte na Pérsia: a ler algures este ano).

Symposium, Platão
(trad.: Robin Waterfield, Teresa Schiappa, e minha)
Foi a segunda vez que voltei a estudar, a Grego, o Banquete de Platão, louvado por muitos como quiçá o diálogo mais perfeito do ponto de vista literário. A estrutura da peça roça, de facto, a perfeição, mas são necessárias várias leituras e uma atenção cuidada para que nos apercebamos das múltiplas subtilezas que Platão vai semeando. Platão é o Beethoven da filosofia. Compromisso pessoal para este ano: ler a obra completa do génio (o Aristóteles é um rato comparado com o professor).

BANDE À PART:

Ilíada, Homero
(trad.: Frederico Lourenço)

A Íliada não é um livro. É uma coisa. Isso mesmo: uma coisa. Olhar para aquilo como uma estória é dificil e põe a obra a perder. Aquilo é o mito original, a própria linguagem que falamos a escrever. Sabemos-lhe o final e o meio é cheio de cadáveres em batalhas excessivamente longas e sangue e tripas. Face às obras clássicas e ao homem moderno a questão é: que valor tem isto para mim hoje? E a resposta é: aprender a balbuciar. Como um bebé. A Ilíada é a mamã Homero a ensinar o filho humanidade, a dar-lhe as palavras e apontar-lhe as coisas a que se referem. O que resgata a Ilíada é em cada página existir um verso que redime todos os outros. Vou abrir ao acaso: "A morte chega a quem nada faz e a quem muito alcança" (IX.320), "Eles preocupam-me, embora vão morrer" (XX.21; Zeus, o pai dos imortais, sobre os homens); "e as palavras morderam o espírito de Heitor" (V.493). Por vezes, Homero chega mesmo, como neste último poema (o verso sozinho é um poema inteiro, sim senhor), a ser esquiliano (esclarecimento: Ésquilo é o maior génio das letras gregas). E depois há toda a tragédia. A Ilíada é a tragédia dos que morrem e morrem sem razão, ignorados pelos deuses (há um verso absolutamente terrível em que Atena rejeita as oferendas dos troianos, mostrando bem a arbitrariedade da vontade divina). É a Guerra. Há que substituir as coisas e falar da Ilíada do Iraque, da Tróia Palestino-Israelita. E depois há Helena. E Heitor. E Andrómaca. E Príamo. A Ilíada é como um rascunho a pedir aos escritores de todo o mundo que a peguem e reescrevam: a literatura mundial é isso.

The Wake, Neil Gaiman
Só há uma e uma só razão pela qual The Wake não está na companhia dos três primeiros, no seu lugar devido, que é o dos contos imortais: é que The Wake não existe por si, antes funciona como epílogo a The Kindly Ones, da mesma forma que Worlds' End é o prólogo. O oitavo e o décimo volumes de Sandman, apesar de serem mais do que isso, devem, a meu ver, ser entendidos sobretudo como acompanhantes do nono, esse sim o verdadeiro volume final da série. O nono, porém, já tinha sido lido em Fevereiro passado. Para que, porém, não restem dúvidas, declaração: Sandman, a série, e muito especialmente The Kindly Ones (acolitada do livro antes e do livro depois), é uma das maiores obras-primas do século XX e um texto maior da literatura mundial. Declaração específica: The Wake foi o segundo livro a fazer-me chorar em toda a minha vida. Dito isto, considero todos os esclarecimentos dados.

LIVROS DA ESCOLA DE ATENAS:

1. An Enquiry Concerning Human Understanding,
David Hume

2. The Problems of Philosophy, Bertrand Russell
3. Meditations On First Philosophy, René Descartes
4. Nicomachean Ethics, Aristóteles

Postos todos em fila ao monte não se percebe muito bem, mas Hume está muito acima de qualquer um dos outros. Discordo com Hume em muito do que ele diz, mas é inegável que quer o que ele diz é ainda hoje de uma enorme pertinência filosófica (o famoso problema da indução que ele aqui expõe continua sem resposta), quer a maneira como o diz, com grande clareza, quase humor, e estilo trabalhado, o tornam um dos maiores filósofos de sempre. Para que se veja a dimensão da coisa, diga-se que ponderei seriamente tirar a obra de Hume desta secção e juntá-la aos Outros de Boa Memória, tal é a sua superioridade. Faz favor ler o livro na edição da Oxford Philosophical Texts: dificilmente se arranja edição tão perfeita.
Os outros, então (mais abaixo).


Russell faz um introdução interessante à filosofia, mas infelizmente centra-se sobretudo na epistemologia e metafísica: a filosofia, no entanto, é muito mais que isso. É um livro bom para o leigo, mas tem de ser complementado e as suas falhas corrigidas por mais uns quantos. Descartes não é tão estúpido como parece e, de qualquer forma, devemos-lhe o Matrix. Aristóteles esse sim: é tão estúpido como parece. Escreve um livro inteiro a tentar dizer como levar uma vida boa e mina-o de contradições do princípio ao fim (e eu sei do que estou a falar: tive uma cadeira este semestre só sobre este livro). Resoluções para este ano: ler Kant.

*
Outros livros lidos, por ordem aproximada de qualidade: Água, Cão, Cavalo, Cabeça (Gonçalo M. Tavares), Jerusalém (Gonçalo M. Tavares), A Poesia da Presença (antologia), The Children of the Sun (Maxim Gorky, trad.: Moura Budberg), As Troianas (Eurípides), A Liga dos Cavalheiros Extraordinários II (Alan Moore) e The Tales of Beedle The Bard (J. K. Rowling).

Outros livros de filosofia lidos, bastante bons dentro da sua área: Routledge Philosophy Guidebook to Descartes and the Meditations (Gary Hatfield), Hume's Enlightment Tract: The Unity and Purpose of An Enquiry Concerning Human Understanding (Stephen Buckle), Understanding Philosophy Of Science (James Ladyman).

O pior livro lido (desperdício de tempo e de uma boa premissa): Folk Tale, Fiction and Saga in the Homeric Epics (Rhys Carpenter).

Somatório: 24 livros (na íntegra, naturalmente).
Média: pouquito menos que um por semana.

sábado, outubro 18, 2008

Bristol Memoirs §18: [sem tempo] - Poesias*

1.

[instruções: visualizar o vídeo entre os minutos 07:09 e 08:00]

Terra mutata non mutat mores.
Mudar de terra não muda um homem.
LÍVIO,
o avô das estórias romanas, criando provérbios


2.
Jung, aristóteles de platão-Freud, intuiu com nitidez a linguagem calada do inconsciente universal, a colecção de imagens primeiras que nos habitam de nascença, a cujo vislumbre sempre algo se agita na alma, como a acudisse a rememoração inesperada de um passado anterior a ela, belo e/porque indistinto. São as palavras anteriores à palavra, que colámos como putos os bocados das revistas de fofocas que a nossa avó compra para fazer as nossas estórias originais, os mitos primitivos, as narrativas grandes, arcas de nóe, com tudo tudo lá dentro. Jung esqueceu, porém, inocente!, esqueceu um dos arquétipos (quem não esquece até de comprar cogumelos ou lenços de papel quando vai às compras?): o jardim. O jardim é uma dessas imagens fundamentais, com uma genealogia que começa no éden, se alarga à arcádia, namora suspensões na babilonia e continua em versalhes. Na cidade moderna chamam-lhes parques. Regenara-me a alma, em descendo para a Universidade, em subindo para casa, pass(e)ar pelos Downs, ver o verde infinito, as árvores plantadas, os bancos para os velhos e para os leitores. Lembra-me os dias em casa de L, ao lado da natureza, e consola-me das viagens que não vou fazendo, da Oxford que adio onde Tolkien me continua a esperar com a sua campa onde escreveu um dos epitáfios mais belos dos jardins dos mortos (com a concorrência dos de Plath e de Kant). Três vezes já encontrei esquilos aos pulos, bailarinos, a lembrarem-me a alemanha de pequenino. Lembro-me que demorei muito a decorar a palavra para esquilo em alemão, coisa complicada, um trava-línguas: einchörnchen. No outro dia, aqui, always coming home (LeGuin - o livro está parado, substituído, por causa de uma promessa, pelo Idiota, do Dostoiévsky), um par de namorados brincava no parque, entre as árvores. Ela apanhava do chão as folhas caídas do outono e atirava-as como bolas de neve contra ele. Ele deixava-se nevar assim, para, lucky luke mais rápido que a sombra, colher novo ramalhete de folhas e salpicá-la a ela, em jeito de vingança. E assim o par reciclava a natureza e as coisas caídas, brincando com a simplicidade do amor. Ela gritava girlishly quando ele a atigia touché! e ele dizia para parar enquanto continuava. "What a locked garden the world seemed then" (Hughes, poema inédito, Times 17.10.2008). Uma das poucas cenas genuinamente belas no L'Enfant dos Dardenne é precisamente quando, antes dele vender o bebé para arranjar dinheiro, eles brincam juntos à volta de um qualquer carro num parque (daqueles alcatroados, chamados de estacionamento, o que eu entendo: não entendo é porque lhes chamam parques). A cena veio-me à memória olhando com prazer & melancolia o par dos Downs (eu estava mesmo ao lado deles, mas eles como que ignoravam conscientemente o público e arrastavam o jogo privado). Os amantes sempre acharam nos parques e na natureza a sua casa natural, porque a única sem paredes que os contenha.

3.
O Times publicou ontem dois poemas inéditos e inacabados de Ted Hughes sobre a sua relação com a desgraçada e genial Sylvia Plath. Os dois eram poetas, namoraram-se em Cambridge, casaram, procriaram e ela matou-se (trinta anos). Ele abandonara-a, namorou outra, deixou a outra, a outra matou-se também. Pelo caminho, ele tornou-se num dos maiores poetas ingleses do século XX (e escreveu The Iron Man, transformado por Brad Bird num dos mais belos filmes de animação de sempre, O Gigante de Ferro). Quando vi Sylvia na capa do jornal, naquele rosto de sonho triste, não pensei duas vezes em comprá-lo: lendo os versos, chorei (já não me acontecia desde o The Wake, do Gaiman).
"[...]
What was there to lose? There was still
The whole world to be gained.
There was still time to be wasted.
The tide was not yet full flood,
Everything was for the time being
An interlude for the interim - until
The announcement, which we would somehow hear,
That life was now ready, everything
Was now serious. Maybe in those days
We were living as live is best lived,
What followed, maybe, was posthumous,
A semblance of life kept up by caution,
In a museum of prudence. [...]"

* poesias = etimologicamente, no grego, coisas feitas, apenas.

*
querem que eu faça contabilidade num texto de poesia?
sei que prometi, mas toda a promesa se adia. adeus.

terça-feira, outubro 14, 2008

Bristol Memoirs §17: 14 do Idem - Celembração*

Não podia deixar o dia passar em branco (o céu foi cinzento e ainda choviscou): faz hoje um mês que cheguei à cidade. O assunto merecia co-memoração e chamei M. para a festa. Sem bolo, comprámos um muffin para cada um e provei finalmente o bom queque inglês gigante. Desde que chegara, guardara essa gastronomia para uma data que a valesse. Inicialmente definira como dia justo de celebrar aquele em que, finalmente, achasse casa. As coisas, porém, não se arranjaram desse modo e o muffin foi adiado e com razão (o destino é muito sábio): eu haveria ainda de mudar de casa - palerma seria desperdiçar o queque numa festa errada. Resolvi então guardar a prenda para hoje. M. e eu comprámos dois pecados enormes, do tamanho de um punho, chovidos de pepitas de chocolate. Repôs-se a verdade: no paraíso não cresciam maçãs, cresciam muffins (que dizem os criacionistas disto?).
Descendo a Whiteladies (a Ferreira Borges), rua longa e alta (é a subir um monte), uma olívia palito (um pouco como a Diagonal barcelonense), pouco depois dos estúdios da BBC Bristol, sob uma árvore, na calçada, junto à estrada como quem espera para atravessar, um sapatito gótico de salto alto, que uma cinderela qualquer abandonara ali. Parei e fiquei na contemplação do objecto. Borges apareceu a um canto a sussurrar que era um objecto de tlön, mas não me convenci e achei que devia simplesmente ter caído pelo poço de andalasia (a questão era saber como de nova iorque tinha vindo parar ali). A magia infiltra-se no real como o novo skip entre as suas roupas (neste ponto do texto passa uma animação 3d muito rasca a mostrar umas bolitas ridículas ou um líquido viscoso a penetrar espaços vazios entre os fios dos tecidos). Na aula de grego, o professor, para explicar os pronomes relativos, escreve: "She ate the dog that we loved". Gastei o resto da aula a tentar não me rir. O absurdo é uma invenção do século xx e o grego clássico se calhar também (não, espera: o Poe tem uma epígrafe num dos contos dele em grego - fim da teoria. rip & lol).
*o título do post não é um erro: é assim mesmo, um miacoutismo.

*
[amanhã: post inteiramente dedicado a finanças, daí a omissão aqui da contabilidade diária]
/foto: BBC Bristol, Whiteladies Road/

sexta-feira, outubro 10, 2008

Bristol Memoirs §16: 7-10 do Idem - Impressões de (Es)tudo

Week 1: finished. Os ingleses dividem os semestres nas várias semanas que os fazem (um pouco como os alemães) e em torno delas arranjam (como se arranja a gola dobrada de uma camisa ou as flores tortas numa jarra) as aulas. Para cada cadeira distribuem um plano aprumado, com a camisa para dentro e o cabelo penteado, onde listam o assunto de cada lecture a-haver e o que havemos de ler para cada aula. O fim-de-semana está já dedicado a essa ocupação: amanhã despacham-se as traduções de latim e grego e o domingo fica para a filosofia. Latim está-se a revelar um invulgar prazer (como uma daquelas mistelas que a nossa mãe nos põe no prato e a gente torce o nariz e é muito reticente em pôr a boca naquilo, ou aquilo na boca, mas pronto mãe eu provo e miam miam miam isto afinal é bom!). A culpa está muito no autor: Lívio é um maravilhoso avô a contar estórias à lareira. Grego vai ser um maelstrom do meu tempo, mas se aceitar isso faz-se, creio. O pior são as cadeiras de filosofia, a saber, Introdução à Filosofia A, Introdução à Filosofia da Ciência e Leitura de Textos Filosóficos: Ética a Nicómaco, de Aristóteles. São combustível para a mente (e o combustível arde, é perigoso e eu tenho medo do fogo e os meus colegas gozam comigo com isqueiros). Os professores insistem na importância de termos as nossas ideias: mas pedem-me que leia para terça a segunda meditação do Descartes quando eu ainda estou a reflectir sobre a primeira e todas as suas implicações! A filosofia é uma coisa de digestão muito lenta. Os filósofos, nisso, são como as vacas: precisam da tarde toda (as vacas, lembro das aulas de ciência, regurgitam a comida do estômago para a boca, para a mastigarem de novo, e fazem isso ainda uma série de vezes). Tenho enchido o moleskine de reflexões e não consigo fazer o caminho para casa sem parar pelo menos três vezes para o ir buscar ao meu bolso do casaco e rabiscar pensamentos. Queria usar o fim-de-semana para apontar, rever e reanalisar os textos desta semana e as objecções que lhes levantei: mas tenho de ler já o segundo livro da Ética do Aristóteles (e, pelo caminho, também o Banquete todo do Platão). Certo é que tenho de regressar à matemática: há tempo demais que ando a adiar o projecto (é já uma resolução para o próximo ano novo). Pegar no livro de sétimo e começar nas equações (que vergonha já nem isso lembrar direito). Toda a discussão em torno do cepticismo de Descartes na primeira meditação reforçou-me o desejo: desconfio sinceramente que o francês fez um erro (nisso eu e o Damásio concordamos). Descartes afirma que nem das certezas matemáticas poderíamos estar certos: um deus todo-mau pode propositadamente fazer-nos enganar sempre nos nossos cálculos. Mas isto sinceramente não me convence: a matemática, deconfio, é, juntamente com o cogito cartesiano (o penso, logo existo), talvez a única coisa de que podemos estar filosoficamente certos. E a verdade é que desde que descobri na wikipédia o artigo sobre filosofia da matemática (podia lá eu imaginar que os filósofos inventariam isso!) que ando desejoso de me saber sobre isso. [muitas palavras que apaguei] (cala-te joão: isto não é o espaço para começar a filosofar: guarda isso para outro lado).
Já vi aqui nas salas de aula pelo menos dois aparelhos cuja existência desconhecia, um deles particularmente útil: é uma espécie de retroprojector que não precisa de acetatos: qualquer coisa que se lhe ponha por cima ele reflecte (até parece magia do George). Os professores são bastante curiosos e dinâmicos e não há um único que possa, por ora, desgostar, mesmo se há os favoritos (o Ladyman - o apelido do homem é um paradoxo, daí ele se ter tornado filósofo, para o resolver - é magnífico, com o seu cabelo rastafari, mas o de Grego consegue ser mais cool, com a sua mochila de alpinista e a barba lourinha). Uma coisa curiosa é que os cadernos não são muito populares aqui. As pessoas compram essencialmente refill pads, isto é, blocos de folhas a4, daquelas para meter em dossier. Eu já tinha chegado a essa conclusão quando, na semana antes das aulas, tentei comprar cadernos: era tudo uma roubalheira (mas era mesmo). Resolvi então adoptar toda uma nova estratégia, para poupar dinheiro: arranjar um dossier e levar diariamente o meu refill pad para a escola. Não sabia bem se não ia fazer uma figura um bocado estúpida, mas paciência (eu sou um homem paciente). Afinal, tinha apenas seguido o uso inglês, sem o saber. Isto, de facto, é um pouco perigoso: ando-me a tornar um britânico aceleradamente. Já não falo no meu chá diário ou no já mais-que-habitual almoço-sanduíche. No outro dia, imagine-se!, comprei o Times (e trazia o Closer dos Joy Division agarrado gratuitamente, mas não foi por isso que o comprei: foi para ter um bom dossier sobre a crise económica e a não-morte do capitalismo). (pormenor absolutamente fora de contexto: é uma coisa espantosa a quantidade de ambulâncias, carros de bombeiros e de polícia que passam todos os dias a sirenar a alta velocidade). No outro dia, ganhei uma caneca belíssima e gratuita na Blackwell e comprei um pote de mel para misturar umas colherzinhas com o chá. Hoje voltei ao BISC, para almoçar e encontrei lá uma das erasmus mais simpáticas do longínquo house search event. Depois de um chit chat agradável fui para a aula.
Pelo caminho dos dias, perdi as chaves de casa. Fiquei pálido e desgraçado. Como um filho pródigo, a família acolheu-me e não me ralhou, nem fazendo muito caso do caso. Hoje fui a correr de manhã para a Universidade, para ver se descobri o molhe de chaves. Tinha a sensação de que elas poderiam ter-me fugido do bolso enquanto tinha estado espreguiçado no puf da sala comum da School of Humanities a ler um artigo sobre a diferença entre ciência e pseudo-ciência, para Filosofia da Ciência, à tarde. O meu instinto e o meu descuido não me enganaram: ali estavam as chaves, escavadas no puf. Filosofar dá nisto: um homem procura a chave para a verdade e perde a chave de casa (e não encontrou a outra, sequer).
*
- £0.50 (envelopes); - £2 (almoço); -£1.05 (postais); - £1.95 (postal); - 3.99 (bolachinhas + dois almoços pré-feitos)
quinta: - £1.80 (autocarro); - £5 (
course pack de Introdução à Filosofia da Ciência); - circa £2.96 (almoço); - £9.89 (livro escolar); -£0.84 (caneta+separadores);- circa €70 (encomenda de portugal ainda por chegar)
quarta: - £1.59 (almoço); - £1.75 (mel); -£1.80 (autocarro)
terça: - £3.29 (almoço); -£5 (
course pack de Into à Filosofia A), - £0.80 (The Times)
/imagem: logótipo da Universidade, reformulado em 2004/

segunda-feira, outubro 06, 2008

Bristol Memoirs §15: 6 do Idem - Leituras & Lectures (Falsos Amigos)

Tenho o curso autodidata de grego parado. Sonhar que teria chegado à lição dez (meio do calhamaço) por altura de domingo!: fantasia tonta - fiquei-me pela quarta. Comecei, entretanto, a ler os livros de leitura obrigatória para as várias cadeiras. Peguei, curioso, na edição cambrígia (este adjectivo é fantástico) das Meditações (o primeiro dos set texts para Introdução à Filosofia A) do Descartes e gastei a manhã a ler as duas introduções, para perceber que vou repetir o que aprendi no décimo segundo com os Principios (aquele onde ele exclama como uma eureka: cogito ergo sum). A Filosofia é sempre um exercício de destabilização da alma. Devia ser seriamente proibido o seu estudo a quem sofre do coração. Percorri os quase quarenta minutos até à Universidade em marcha lenta e taciturno, reflectindo nas numerosas questões que os prefácios abordavam, nomeadamente na problemática da impossibilidade do dualismo cartesiano alma-corpo e nas inúmeras consequências disso, por exemplo, na doutrina da ressureição cristã. A Filosofia é, em grande medida, um trabalho de auto-destruição do sujeito, um biberon de insónias.
Cheguei à Universidade para a minha primeira lecture. Entrei (isto aqui é assim: não se espera pelo professor, vai-se entrando; o professor, aliás, já se encontra lá dentro, a preparar tudo para começar pontual e inglês). A cadeira não será talvez tão complicada como temia: o meu nível de latim parece justo e suficiente. Recebemos uma folha com o trabalho de casa já para cada lição de todo o primeiro semestre, indicando testes, aulas em que temos de trazer dicionário, gramática a rever para cada aula e textos a traduzir para cada dia. Organização brilhante. Coimbra pode ter coisas boas (nomeadamente as cantinas sociais, cuja falta aqui será, para mim, o grande defeito de Bristol), mas olho para o papel que tenho na mão esquerda e pergunto-me de que universidade africana é que eu vim. O grande milagre daqui, o grande espanto para o estrangeiro do Sul, é as coisas funcionarem, de facto. É necessário revolucionar completamente o ensino em Portugal, conferir-lhe uma dinâmica outra, um ritmo novo, um pensar moderno. Formamos semi-engenheiros que acabam como primeiro-ministros: isso devia ser a prova suprema de que algo está profundamente errado com o nosso sistema. Há, naturalmente, pontos em que, indubitavelmente, lhes somos superiores: a excessiva ênfase que se coloca na gramática em Portugal, na linha da tradição académica francesa, permite que me ria um pouco quando a professora resolve dedicar este semestre ao estudo, aprofundamento e consolidação da sintaxe da língua, quando em Coimbra já exploramos a morfologia histórica, i.e., a evolução das palavras ao longo dos vários estádios do latim e do grego, decorando as leis fonéticas que a determinam; isto porque já no décimo segundo que demos quase toda a gramática (guardaram uns poucos 10% para a Universidade, para não dizerem que não fazemos lá nada). Há, repito, coisas boas, que a tradição continental pode ensinar à anglo-saxónica. Esta, porém, com o seu relógio de ordem, método e plano, não pode deixar de causar inveja ao provinciano que agora, feito boi, a olha como um palácio.
O pior são as mil e uma coisas que há para ler. Tive de fazer um forcing para acabar ontem o Lermontov (magnífico!) e já fui hoje estender o prazo de entrega para o Always Coming Home, da LeGuin. As leituras recreativas são ameaçadas pelos livros oficiais. Hoje à noite foi ler mais introduções, desta vez ambas ao Ab Urbe Condita, do Tito Lívio: vamos estudar o primeiro livro a Latim. Pelo meio das duas, uma chávena de chá, cookies e um episódio de Noir. Amanhã, o grande medo: Grego.
*
- £3.29 (almoço); - £72.40 (livros escolares); - £1.14 (cookies again!)
ontem: - £0.5 (missa)
anteontem: - £2.25 (chá + biscoitos)
/quadro: The Difficult Lesson (1884), de William Adolphe Bouguereau,
pintor desconhecido, um dos meus favoritos/

sexta-feira, outubro 03, 2008

Bristol Memoirs §14: 1-3 de Outubro - Livro do Sossego II

1.
"If in doubt, talk to your tutor. Whatever your problem - money, accommodation, food, friends (or lack of them), understanding what Professor X is on about, or even an existencial Angst about the meaning of studying antiquity - you may be sure that your tutor has dealt with very similar problems in the past [...]"
Do Undegraduate Handbook 2008/2009
do Departamento de Clássicas & História Antiga


2.
Tinha um papel na mão (qual papel? o papel). Diziam as regras que o tinha de enviar por fax para Coimbra (mas quem é que ainda utiliza hoje fax?). Resolvi ir ao Departamento de Erasmus da Uni para que me fizessem o favor. Entrei na Union, esquecido que era dia da Fresher's Fair: as milhentas societies da Associação apresentam-se publicamente, cada uma com o seu stand, angariando fundos e sócios (e distribuindo muita coisa gratuita pelo caminho para aliciar, razão de ninguém sair descontente do edifício, mesmo que, no fim, não se tenha inscrito em clube nenhum) (eu ainda perguntei pela dead poets society, mas disseram-me que, alas!, tinha sido dissolvida há uns anos atrás, depois do suicídio de um deles - amuei e não me matriculei em nada). Tinha acabado de chegar ao Departamento de Erasmus, estava já a explicar a uma simpática funcionária o meu problema quando toca o alarme de incêndio (já aqui foi dito que os ingleses são pirófobos). Imediatamente a senhora me pede que abandone o edifício ordeiramente (coisa que, de facto, de uma maneira geral, eles até fazem) e pisgou-se ela mesma também. Desconsolado, sem fax, saí - só para, em chegando à rua, no momento exacto disso, começar a chover (segunda chuva britânica). Alguém comentou com razão que não deviam soar alarmes de fogo quando chove. Começa a chuva e uma carrinha em frente à Union, que ali estava especada a passar música, lança para o ar a Marcha Imperial do Star Wars, acompanhando a saída da multidão do edifício de seis andares. Havia algo de cómico na coisa, mas acima de tudo, o conjunto todo foi sobretudo surreal. (Posso nas férias em Barcelona não ter ido a Figueras, mas tive o meu Dalí aqui).

3.
RECEITA PARA POUPAR DINHEIRO &
SER INTELIGENTE (EM TRÊS PASSOS):

1. Hoje o almoço foi infeliz. Uma sanduíche de atum. Julguei que isso era um bom modo de compensar a ausência de peixe na minha dieta nos últimos dias, mas o sabor era, francamente, mau. Ponderei seriamente, em chegando ao edifício da Union, comprar um muffin (sim: ainda não provei os célebres queques ingleses). Descartei a ideia, era gastar dinheiro estupidamente.
2. Chego à Union. No lobby de entrada, T-shirts da Uni de Bristol por apenas £3. A tentação, semeada, cresce num instante, como uma alice pequena que come o cookie mágico para crescer. Arrumo o desejo, era gastar dinheiro estupidamente. Mais: as £3 permitiam-me alugar um filme no videoclube ao lado da Union, onde estava a pensar inscrever-me (a inscrição é grátis para estudantes até meados do mês - há que aproveitar). Hoje acordara com um desejo grande de me alimentar: desde a minha chegada que não via nada. Tinha comigo apenas o sublime (segue-se lista de todos os adjectivos positivos em português) Breaking The Waves, desse deus entre nós que é o Von Trier, mas não era ainda o tempo certo para o rever (ou simplesmente não me apetecia). Desde a morte do Pollack que ando a namorar o They Shoot Horses, Don't They?, que não está à venda em Portugal. Decidi vir para Inglaterra em Erasmus para poder arranjar o filme. Abdiquei da t-shirt bristolense e tomei a decisão: este fim-de-semana ia ver Pollack, alugado.
3. Resolvi vaguear pela Fresher's Fair (ainda aberta hoje). Sabia que havia um clube de cinema. Procurei achei inscrevi-me: £3.50. Podia doravante ir gratuitamente a todos os filmes que eles exibissem (Fine Film, chama-se o grupo). Pedi um programa. Dia 16 de Novembro: They Shoot Horses, Don't They?. Esqueci o videoclube e a sua taxa ladrona, era gastar dinheiro estupidamente. Quarta já alimento o estômago (para os alemães, os sentimentos residem na barriga: quem entende a linguagem dos símbolos, compreenda as palavras), revendo esse titã que é o There Will Be Blood do Anderson. Outras sessões: The Thing, do Carpenter (29/10), Raging Bull, do Scorsese (19/11), Fanny & Alexander, do Bergman (7/12).

4.
"João awoke one morning from uneasy dreams to find himself transformed in his bed into a monstrous British."
Frase actual no meu Facebook (plágio brincalhão de Kafka)
*
- £3.29 (almoço); - £3.5 (Fine Film); - £x (prenda de Natal de L.); - £54.90 (dicionários);- £13 (manuais em segunda mão); - circa £1.99 (almoço de amanhã); - circa £0.59 (bolachinhas de chocolate)
ontem: - £3.85 (almoço, nas cantinas!); - £15 (segundo pecado: pasta da Blackwell); - £43.16 (manuais)
anteontem: - £2.75 (almoço); - circa £0.89 (régua)
/foto: Associação de Estudantes de Bristol, UBU - University of Bristol Union/