terça-feira, dezembro 15, 2009

"Antigones", de George Steiner

With the self-lacerating clarity which also characterizes Oedipus when fatality strikes, Antigone spells out, urges the paradox of her undoing: her piety has harvested both the designation and fruits of impiety. Her just deed has generated hideous injustice. Now what moral right, what pragmatic motive, has she to call upon those gods whose manifest failure to intervene on her behalf is either incomprehensible or a signal that Antigone has acted in error? Unspoken, yet in range of Antigone's bitter casuistry, is the third, most terrible alternative: that the gods are unjust or impotent, that mortal man, if he insists on acting ethically, according to reason and conscience, must leave the gods 'behind'. We find this view, if the text can be adequately reconstructed, stated all but explicitly at the close of Euripides' Bacchae. I take it to be outside Sophocles' world-view. Nevertheless, it is a distant inference which seems to press on the inhuman solitude and self-torment of Antigone's finale. Nothing in her acquiesces in an Aeschylean theodicy, in the acceptance, proposed by the chorus, of unmerited doom or of the absence of divine help in consequence of some heriditary malediction. She wants to know. She is Oedipus' child, rebellious in knowledge.
in: Steiner, Antigones, 281-2.
Tive a sorte de estudar Literatura Grega com indubitavelmente uma das melhores professoras de Clássicas de Coimbra: Teresa Schiappa, que alguns talvez recordem como a tradutora do Fédon que terão lido no primeiro período do décimo segundo ano a Filosofia (o meu caso). O programa do semestre restringia-se à produção dos três grandes trágicos; de cada um estudaríamos duas peças. Foi nessa altura que me apaixonei por Ésquilo, com a análise detalhada que fizemos do Agamémnon, que seguimos, por estarmos a trabalhar também com não-classicistas, pela tradução portuguesa de Manuel Pulquério. As metáforas esquilianas — «o mar Egeu a florir com os cadáveres dos guerreiros» (659) — e o arrojo da linguagem do poeta granjearam-lhe o primeiro prémio na contenda que diónisos movi entre os três. Sentia uma afinidade entre o que sinto ser o arriscado experimentalismo linguístico de Ésquilo e o meu próprio modo de me atrever a escrever (perdoe-se-me a hybris). A forte imagética esquiliana, por sua vez, tem necessariamente de apelar a quem também pensa graficamente, treinado no cinema. Tudo isto me levou a tomar Ésquilo como patrono, numen protector, avô clássico, a archê de uma tradição em que me queria filiar.
A Sophia — no nosso ano éramos apenas ambos —, pelo contrário, refugiu-se na sombra de Sófocles, que aclamou como o maior dos três em disputa. O estudo do Filoctetes convencera-a definitivamente disso (por Eurípides tínhamos os dois um salutar desprezo herdado ainda de Nietzsche, com o qual salvávamos, da obra do dramaturgo, As Bacantes, apenas). O Filoctetes representara, também para mim, um encontro, mas de outra ordem: ele fornecedeu-me o conceito para chamar pelo nome algo informe, mas sobretudo anónimo, que vinha emergindo como força fundamental dentro da minha antropo-logia privada: a φύσις. O termo nunca mais me abandonou, ao ponto de se ter recentemente chegado à frente como possível tema para o mestrado. Para além do Filoctetes, lemos na altura também o Édipo em Colono, peça verdadeiramente única no corpus trágico, de uma serenidade rara, capaz, a tempos, em mim, daquele efeito alquímico-espiritual que registo em lendo Ricardo Reis: o coração pronto se me amansa, independente da situação, como se bebesse da droga de Helena. Com o Coloneus, porém, e isso faz toda a diferença, essa paz é pensada, clarividente, discernida, mais do que simples erupção psíquica, como em Reis. Há uma dignidade profunda que emana daquele Édipo e, de alguma forma, ele funciona, para mim, como ideal do velho, que levou a cabo o exame crítico da sua vida, não se arrepende dos seus actos, alcançou o poder da palavra (a palavra que efectivamente, entre os Gregos, como sublinhava Hölderlin, mata: Édipo mata Polinices, mesmo se Antígona o não entenda) e está com os deuses inter pares: Édipo, a Euménide.
Tudo isto, porém, dizia, não chegou para me converter à superioridade de Sófocles. Antigones, de Steiner, pode muito bem tê-lo conseguido. É talvez ainda cedo, para que emita um juízo final e, estou certo, — isso não se altera — Ésquilo ser-me-á sempre mais próximo do ponto de vista de geneologia literária, ou pelo menos linguística, que Sófocles. E, todavia, começo a tender para a opinião da Sophia: as mulheres, já o devia ter aprendido, sabem mais, e mais cedo, que os homens. O obreiro disto, Steiner. O seu Antigones, obra de fôlego, encontra-se dividida em três grandes partes, que correspondem grosso modo a um terço do livro, cada uma. A primeira, Steiner gasta-a a analisar a forma como Hegel, Kierkegaard e Hölderlin interpretaram o mito de Antígona, a partir de uma leitura atenta dos textos destes. É a parte mais filosófica da obra e inclui uma valiosa abordagem à tradução da peça por Hölderlin (o melhor, talvez, desta primeira secção). Na segunda parte do livro, Steiner analisa a fortuna de Antígona e outras personagens da peça (Creonte, Ismena e Hémon) na produção literária e musical, a nível mundial. Esta secção, porém, entenda-se, não se resume a um linear e seco estudo de recepção. É aqui, por exemplo, que Steiner vai expor a sua teoria do mito e apresenta, de forma sobremaneira acessível, creio, a leitura que Heidegger faz da peça e figura homónima. Ao mesmo tempo, aqui apenas, Hémon e Ismena recebem uma atenção individualizada, nos capítulos respectivos.
Na terceira e última parte, enfim, Steiner analisa, ele próprio, a peça. Depois da Filosofia e dos Estudos de Recepção (e outras coisas), os Estudos Literários. E aqui, Steiner excels, por também ser, não o seu território (que, como bom judeu, Steiner está em marcha perpétua diáspora pelos reinos todos do saber), mas a sua casa — ou catedral. Os capítulos quinto, sexto e sétimo, num todo de pouco mais que cinquenta páginas — esses são os responsáveis pela minha impendente conversão a Sófocles. Steiner não o diz, mas a tempos chegamos a confiar que ele acredita que Antígona pode ser a maior obra da literatura mundial. Steiner atenta nos mais pequenos pormenores e estuda as palavras. Submete passagens inteiras a um quase acríbico close reading, analisando, por exemplo, cada estásimo individualmente. O resultado é o impossível: ao fim de duzentas páginas compilando as mais diversas interpretações da peça, mostra-se ser ainda possível dizer, arrisco a ousadia, algo de novo, pelo cuidado extremo com as palavras (esta a metodologia de Steiner, que lhe permite o milagre).
Antigones fez-me de novo experimentar, de forma muito palpável (Steiner adora esta palavra), o terror do falhanço da promessa democrática do ensino universal. Pensar que há quem não leu Antígona, por momentos, perturbou-me seriamente: como lhes podemos estar a negar esta obra maior? Como foi possível não termos educado o espírito deles para a acolherem, para que Antígona fosse enterrada viva não numa caverna, mas nos seus próprios peitos? Steiner revela como na Antígona se põe a nu, como nua só se anunciasse inteira, a condição humana toda. De alguma forma, aquela terceira parte vale não só pelo prazer de encontrar a arte de Sófocles ou o pensamento crítico e atento de Steiner, mas por nós próprios, que estamos ali em jogo, implicados: tua res agitur. Vimos mais cheios, mais conscientes, mais «autênticos» (num sentido que, partindo daquele que Heidegger dá à expressão, o ultrapassa, contudo). O que é o Homem? , perguntava Kant. Steiner, interpelado, enviaria para Königsberg um exemplar da Antígona. E Kant calou-se.

ilustração: Antígona frente a Polinices morto, de Nikiphoros Lytras.
Galeria Nacional de Atenas, 1865.

sábado, dezembro 12, 2009

Músicas Para Educar O Bom Gosto §2

Sawdust and Diamonds,
de Joanna Newsom
in:
Ys (2006)

quinta-feira, dezembro 10, 2009

Ἀντιγόνη

Quando eu era criança, encenaram a Antígona na escola e, porque sabiam como gostava de teatro, convidaram-me para o coro. Lembro-me que fomos todos vestidos de preto e descalços e levávamos umas capinhas feitas de cartolina porque era barato em cujo bojo escondíamos as nossas falas, lidas a metrónomo. Recordo vagamente o cenário, um pano gigante com a fachada de um templo, e penso ainda saber quem foi a protagonista (hoje, se acerto, no curso de jornalismo). Desde então, creio, nunca mais li a peça, que o meu pai tinha numa edição da Inquérito, tradução de Fernando Melro, e na edição alemã bilingue da Reclam, comprada por — diz o autocolante na contracapa — dois euros, apenas. Quando entrei para Clássicas, deram-me ainda uma terceira cópia, um libreto feito para acompanhar a encenação do Thíasos, com a tradução de Maria Helena da Rocha Pereira. Antígona, porém, discreta, permanecera junto a mim: amei uma mulher que a interpretou — porque dizia Schelley que quem noutra vida amou Antígona não pode amar outra mulher — e, já no início deste ano, o meu instinto primeiro para treinar o grego foi tomar da estante o livrinho laranja da Reclam e dobrar o grego em português (não fui além do primeiro verso: hora talvez hoje de recomeçar). Procurando um projecto para mestrado, surgiu-me uma tese sobre a peça de Sófocles e os blocos bélicos nela. Levou-me isso às Antigones de Steiner, o livro último sobre a fortuna do mito e da mulher, que leio, ainda. Foi na vontade de partilhar com o Alvenel uma descoberta aí — que Orff escreva uma ópera sobre a versão de Hölderlin — que encontrei a versão teatral de Don Taylor para a BBC, de 1984 — ano feliz para uma peça sobre o indíviduo contra o Estado — com Juliet Stevenson como Antígona e John Shrapnel no papel de Creonte. Não era essa a minha intenção, porque o tempo era pouco e o trabalho até muito, mas acabei por ver, desarmado, toda a peça. Não houve qualquer anagnórise: as memórias da representação do meu sétimo ano estavam já demasiado enterradas, não como Polinices. Ver Antígona foi um encontro, uma manifestação, um pouco como Heidegger diz ser a verdade (ἀλήθεια). Que coisa é este texto que quase dois milénios e meio depois de ter sido escrito me faz ainda chorar o tempo quase inteiro? É preciso encontrar a peça viva para nos lembrarmos da profunda mentira que é o acto de ler teatro. A tradução de Taylor, mesmo se com alterações ao original (exemplo óbvio: o uso da palavra «terrorists» ou «hotel»), é um prodígio de força, longe do formalismo estanque e estranhizante — no pior sentido do termo — da tradução árida, ainda que correcta, de Rocha Pereira. Todo o outro trabalho, certo: o cenário, os actores, a banda sonora. O coro, a tempos, nomeadamente nos primeiros estásimos, falha em convencer o espectador a aceitá-lo, como seria normal, mas é usado com verdadeira mestria nos episódios e dança uma coreografia lenta subtil firme. Não tenho agora o θυμός de pensar a peça, de objectivar em discurso a emoção ainda quente. Deixo o kommós: aquela gargalhada de Antígona não tem verbo.



escultura: Antígona, em bronze, de George Anthonisen.

A Morte da Vestal


Migueli «jesuitae» dedidatus


A vestal lava a chama como um filho uma criança
Útero de Roma
deus aristotélico ao contrário:
O movimento que garante às coisas que fiquem.

Roma arde
--ontem
Sem nero sem cristãos
Lar-eira mundi

O átomo no templo.
Os toros como touros sem sangue para matar
A rapariga sobe os degraus como cresce
E o fogo excita-se como uma mulher quando o tocam.

O Homem entra a força
Com a decisão no passo de uma órbita
------------------no posso de um é-dito
E a verde-ade que porque jovem cheia

A vestal atirada ao chão como uma puta para que se sobe
O coração de Roma sob uma bota como um cigarro
O fogo esmagoado
— cinzas só.

A pro-cura última de montar a chama como o tempo
E a rapariga trinchada.
O Homem deixa a casa como uma mulher gasta.
Roma jhove.

9-10.xii.2009

ilustração: de Frederick Leighton.
foto: o templo de Vesta, no Fórum, hoje.

terça-feira, dezembro 08, 2009

Músicas Para Educar O Bom Gosto §1

Change Is Hard,
de She & Him
in:
She & Him - Volume I (2008)



Esta mulher: nova razão de amar as morenas sobre as outras.

segunda-feira, novembro 30, 2009

Uma Tese Possível Sobre A Necessidade

Il y a quelques années qu’en visitant, ou, pour mieux dire, en furetant Notre-Dame, l’auteur de ce livre trouva, dans un recoin obscur de l’une des tours, ce mot gravé à la main sur le mur :
ἈNÁΓKH
Ces majuscules grecques, noires de vétusté et assez profondément entaillées dans la pierre, je ne sais quels signes propres à la calligraphie gothique empreints dans leurs formes et dans leurs attitudes, comme pour révéler que c’était une main du moyen âge qui les avait écrites là, surtout le sens lugubre et fatal qu’elles renferment, frappèrent vivement l’auteur.

Primeiras palavras de Notre-Dame de Paris, de Victor Hugo.

ανάγκη, que os latinos traduziram por necessitas, é, por muitos, assimilada ao fatum ou à μοῖρα, identificação que rejeito, mau grado a confusão real que existe na utilização dos termos e os indícios mitológicos que aproximam as duas realidades, como o facto de a primeira ser dada, em algumas tradições, como mãe das segundas. A ανάγκη interessa-nos aqui sobretudo no contexto da tragédia (clássica, está bom de ver), onde marca presença necessária. No famoso párodo do Agamémnon de Ésquilo, depois do herói tomar a decisão de sacrificar Ifinégia, o coro canta:
o seu espírito se dobrou ao jugo da necessidade
Toda esta passagem é essencial para a nossa tese, a saber, que a ανάγκη se distingue do fatum na medida em que ela é assumida voluntariamente e não por imposição estrangeira, como a μοῖρα. Há, claramente, - denuncia-o a inspirada tradução de entrou por dobrou - uma pressão dos acontecimentos e dos valores pelos quais o personagem se rege e, por isso, a pressão é, muito dialecticamente, simultaneamente exterior e interior, sem que haja qualquer oposição nisto, mas mútua confirmação. Esta pressão, porém, não é uma obrigação - se o fosse, o herói trágico perderia toda a sua espessura, porquanto a sua escolha não o seria. É porque Aquiles não tem, de facto, de morrer em Tróia que a sua decisão de matar Heitor, enquanto decisão de morrer também, é trágica, como o é a escolha de Heitor em combater Aquiles, podendo não o fazer. Orestes, à beira de matar a mãe, hesita (e Pílades fala). Negar a liberdade do herói trágico, a sua capacidade consciente de destruir o seu futuro, é impedir a tragédia: o fatum, como categoria trágica, não existe, excepto talvez em Édipo, que constitui, porém, um caso especial dentro do corpus dramático herdado da Antiguidade, que exigiria uma análise de outra ordem que não podemos desenvolver aqui.
Postular a liberdade última, existencialista quase, na forma como se afirma radicalmente, como ao herói se pede que tome a responsabilidade completa dos seus actos e os segure, pesados que são, como castigo como um Atlas, sem procurar desculpas (Steiner, na apologia que faz do mandamento socrático do conhece-te a ti próprio enfatiza a importância, para o exercício, desta capacidade de não culpar ninguém nem nada que não nós); reconhecer esta liberdade, dizíamos, não implica, de forma alguma, negar a ανάγκη. Se nos faz confusão conciliar as duas coisas é porque, ao fim de dois milénios cristãos, esquecemos o modo trágico e fixámo-nos num modo que lhe é fundamentalmente oposto, mesmo se contíguo: o modo moral. O modo moral, como se sabe, exige, como pressuposto obrigatório, a liberdade de acção do Homem, como bem viu Kant (e outros antes dele, mas temos de citar alguém: calhou Kant, pois). Daqui não resulta que a liberdade humana implique sempre, por sua vez, o modo moral. O modo moral necessita ainda, para se verificar, de uma segunda condição: a distinção entre «bem» e «mal», ou, mais concretamente, a presença, na escolha com que o sujeito se confronta, de uma opção tida claramente por «boa» e outra por «má» ou, pelo menos, uma não igualdade do valor axiológico das opções em causa. O modo trágico, preservando o binómio bem/mal, inerente ao Homem (o Mens-ch, dizia Nietzsche, é um mens-or), não o consegue porém aplicar às possibilidades de acção ao seu alcance, tendo de agir, todavia - e aqui reside a tragédia toda.
Na tragédia, a escolha reveste-se de um carácter quase arbitrário, na medida em que não se pode verdadeiramente dizer que uma linha de acção é mais correcta do que outra (e por isso esta escolha evade toda a possibilidade de moralidade e está, verdadeiramente, para lá do bem e do mal): qualquer uma delas implica necessariamente a destruição do sujeito e não é possível não escolher: não agir é já uma escolha. O modo trágico confronta-nos com o paradoxo do «dever errar», que o modo moral, e especificamente o modo moral cristão, não pode, de forma alguma, entender (o mais perto que chega disso é a felix culpa). Medeia e Fedra confessam explicitamente, nas peças homónimas, saberem agir mal, mas, negassem-se a isso, negavam-se a servir os deuses que as usam como instrumento da sua vingança, respectivamente Zeus, que destrói os perjuros (Jasão), e Afrodite; ora já Pílades dizia: "É melhor ter contra ti todos os homens do que os deuses" (Ch. 902). Esta frase não sanciona, porém, as suas acções: mostra apenas mais claramente o dilema insolúvel com que são confrontadas: qualquer curso de acção é radicalmente mau, mesmo se a nós hoje, numa época secular, honrar os deuses pareça claramente inferior, do ponto de vista moral, a preservar vidas humanas (os filhos ou o enteado).
O trágico está em que matar Heitor não é melhor que não o matar. Não nos deixemos enganar pelo código de honra grego. Aquiles percebe-o quando, vendo Príamo, e atentando na situação do velho, chora pelo pai, que também ele não mais verá o filho: não há ganho nenhum nisto e tudo se perde (há nesta cena algo que lembra, milénios mais tarde, Brando a chorar o filho morto n' O Padrinho, de Coppola [1972]). O modo trágico é a súbita, mas também momentânea, intuição (aqui a traduzir insight) do absurdo da condição humana, da completa ausência de sentido (sentido este fundamental ao modo moral, como bem o mostra Nietzsche). A escolha trágica é, de um certo ponto de vista, arbitrária porque também assim o é a acção humana. Matar ou não Clitemnestra é moralmente igual, mas o herói escolhe a opção que comporta a sua morte e nesta escolha pelo suicídio, directo ou indirecto, reside o último elemento do trágico. Se matar Clitemnestra fosse, de facto, melhor que não a matar, estaríamos em modo moral. Isso o que acontece, por exemplo, com vários santos, e.g. Maximiliano Kolbe, que escolhem fazer o que é justo e bom mesmo sabendo que isso implica a sua própria morte. Esta, também, a situação de Antígona, que só é uma personagem «trágica» no sentido mais lato do termo que este foi adquirindo ao longo dos séculos, a ponto de se converter num sinónimo de «dramático» esquecendo que, no Romantismo, por exemplo, o drama procurou afirmar-se precisamente como alternativa à tragédia. A verdadeira personagem trágica de Antígona, se considerarmos o mito, mais que a sua concretização específica às mãos de Sófocles, que o trabalha de modo outro, é Creonte, cujo dilema não está longe do de Agamémnon, na escolha que é forçado a operar entre a esfera pública e a privada/familiar.
O trágico não pode permitir, insistimos, que uma das opções seja moralmente superior à outra: são ambas iguais e na medida em que a escolha é arbitrária e o sujeito escolhe o que o destrói é que ele se converte num herói trágico, como acima dissémos. O que leva a esta escolha é precisamente a ανάγκη, que não é, não pode ser, moral ou amoral: ela é tão somente a necessidade e não se pode fazer um discurso da bondade da necessidade: bondade e maldade são coisas humanas e a necessidade é de ordem quase cosmológica, num certo sentido. A ανάγκη, na medida em que não é moral/avaliativa, não pode conferir sentido a nada. O modo trágico confronta-nos com a insignificância do homem ao mostrar a insignificância das valorações que ele constrói para se orientar no universo. Toda a grelha de leitura do mundo colapsa, subitamente: o real é abundante e fértil - e não moral. O modo trágico é contíguo ao moral, dissémos, mas não menos o é ao nihilista (nota bem: o ser adjacente a este só mostra como o modo trágico não é nem se deve confundir com ele). É no assumir a ανάγκη livremente que o herói se faz trágico.
Que forma, pois, assume a ανάγκη? A da necessidade de agir. O desenrolar dos acontecimentos gera uma situação com centro no herói, que é forçado a responder-lhe. Esta resposta pode assumir, já o dissémos, duas formas: a acção ou a inacção. Orestes pode escolher não matar a mãe e Heitor pode preferir não se dar a matar a Aquiles. Assumir a ανάγκη implica, porém, o movimento oposto e aquele que o mito necessariamente regista. O herói responde à necessidade de agir agindo, leva a necessidade de acção à sua plenitude, concretiza-a totalmente, oferece-lhe o seu corpo para que ela tenha corpo. O herói que não age - Agamémnon que não mata Ifigénia - nunca se apropria da ανάγκη, da natural compulsão para agir que resulta simplesmente da situação em que se encontra. Porque opta por não agir, acaba então a encarar obrigatoriamente a ανάγκη como fatum, coisa estranha, vinda de fora, algo que se sofre (esta a visão tradicional do que é o «destino»: note-se como fatum lembra factum, «o feito», aquilo que se tem de aceitar, porque acabado, já), da qual o herói não é, nem pode ser, parte activa: aqui se pode operar então a confusão entre os dois conceitos e, a acontecer neste caso, não é enganadora de todo: a necessidade de agir (ανάγκη) revela-se verdadeiramente - mas apenas por opção do sujeito - uma necessidade de sofrer (exactamente o oposto).
A ανάγκη é um convite para, se temos de agir, agirmos. Esta formulação, parecendo tautológica, é tudo menos isso (se fosse tautológica regressávamos ao problema já abordado da libedade do herói). Penteu, cujo dilema em que o modo trágico o visita se aproxima do de Creonte, obrigado, pela vinda do deus que vem (der kommende Gott, Hölderlin), a re-agir, age - e esse agir, quando podia não agir, insistimos, é a sua assunção voluntária da ανάγκη, o seu esforço para a completar, uma vez que ela se iniciou, o seu exercício de a fazer sua (o herói é um egoísta). Este «levar a cabo», que é a característica não tanto do trágico mas do heróico (escolhe uma virtude só e apega-te a ela com todas as tuas forças até ao fim, recomendava Nietzsche), aplica-se também no caso da opção pela não-acção. A não-acção é tão trágica quanto a acção, porque a escolha por uma ou por outra é, para o que aqui nos ocupa, irrelevante, como já tivemos oportunidade de explicar. Contudo, têm graus diferentes de heroísmo. Se a Orestes, por qualquer razão, lhe fosse impossível matar a mãe, a única maneira de assumir a sua ανάγκη seria de agir totalmente também a sua não-acção, impedindo toda a acção: pensamos no suicídio, claro. Este o único caminho de o herói recuperar algo da sua dignidade, se opta pela não-acção. Repetimos: este desfecho mais pessoal (o herói recolhe-se sobre si ao espetar a espada no corpo, numa alegoria), sendo menos heróico (na medida em que o herói é activo em segundo grau apenas, isto é, activo só na assunção da sua não-acção), não é menos trágico.
O herói tende pois a agir na medida precisa em que é herói. Se entre o conteúdo das acções disponíveis quando a ανάγκη chega (matar a mãe ou não matar a mãe, para Orestes), não há qualquer hierarquia moral, esta já existe no que diz respeito à questão de agir ou não: falando em absoluto, na tábua de valores do herói, é melhor agir do que não-agir, pois só a acção se constitui como afirmação radical do «eu», o «eu» é, até, fundamentalmente, um conjunto de acções e, no caso do herói, um conjunto de acções grandes, aquelas, paradoxalmente, que anulam esse próprio «eu». O herói reúne dialecticamente a máxima afirmação do «eu» com o desprezo total pela sua permanência: no caso extremo, ele atinge a imortalidade na sua morte. O herói, que leu muito Heraclito, é fundamentalmente um movimento, um fogo que se consome a si próprio mais que a outra coisa qualquer. O herói aproxima-se dos deuses na medida em que recusa que algo lhe aconteça, para fazer ele acontecer tudo (isto o que designámos até aqui como assunção, palavra que, curiosamente, na teologia, designa também a subida aos céus). Ele concretiza em si o mais das vezes o Conceito, ele esmaga o particular sob o pé pesado do absoluto (por isso o herói trágico encarna tantas vezes a razão de Estado ou a Lei, necessariamente indiferentes aos particularismos que fazem o humano: por isso, em parte, Édipo se cega, quando é inocente). O herói trágico é como quem, no meio de uma tempestade, corresse para baixo de uma árvore para se proteger dos relâmpagos, garantindo com isso ser atingido. A ανάγκη é a tempestade.

ilustração: Orestes Perseguido Pelas Fúrias, de John Singer Sargent.
Biblioteca Pública de Boston, 1890-1919.

Estudos Utópicos Na Rede

Para aqueles que, como eu, crêem parte importante do problema pós-moderno passar pelo fim das utopias e, por isso, se interessam sobremaneira por elas, isto e isto passam a ser leituras de espera. A abordagem ao tema é feita mais do ponto de vista da crítica literária do que da perspectiva política, nisso se perdendo algo, mas não o interesse, certamente.

ilustração: primeira edição de Utopia, de Thomas More,
impressa por Dirk Martens, Lovaina, 1516 (versão a cores).

quarta-feira, novembro 25, 2009

Exegi

Exegi monumentum aere perennius
Horácio, Odes III.30

Erigi monumento mais duradouro do que o bronze
Trad.: Maria Helena Rocha Pereia in Romana, IEC

Nota prévia: encontro-me a ler os capítulos de Antigones em que Steiner explora a tradução de Hölderlin da tragédia homónima de Sófocles. Importa isto para que se entenda a aproximação ao ofício de traduzir que se segue aqui, como o perceberão os familiarizados com a experiência radical do poeta alemão.

Exegi: pretérito perfeito, primeira pessoa singular de ex+ago. «ex» significa para fora de, implica um movimento de exteriorização (no radical do substantivo, a preposição). «ago» é vertido normalmente como conduzir e, por extensão, um mais genérico fazer mover. Não se confunda com «duco», que, se significa, também, como o anterior, conduzir, implica uma posição diferente: o dux vai à frente, lidera; o actor, pelo contrário, guarda-se para o fim. A diferença, ilustra-a bem um trecho da Bucólica I de Virgílio: en ipse capellas/protenus [à minha frente] aeger ago; hanc [ovelha mais frágil, que acabou de dar à luz] etiam vix, Tityre, duco [aqui poder-se-ia traduzir por arrasto]. ex+ago será então algo como conduzir para fora, trazer para o exterior. A paráfrase, porém, correcta que seja, retiraria ao verso a sua força.
Por influência da tradicional tradução portuguesa como erigi, verbo que denota um movimento ascendente, a primeira tentação é de ler este «trazer para fora» como um desenterrar, trazer de baixo para cima (aqui, como dizia, a influência da imagética da versão de Rocha Pereira). O movimento, porém, não é idêntico, pois que erigir induz um movimento ocular do nível normal/plano para o alto, enquanto que desenterrar implica um movimento de baixo para o nível médio/plano. Para transmitir a força toda do latim seria necessário um verbo em português que, de alguma forma, traduzisse o movimento de baixo para cima, densenterrar-erguer.
O «trazer para fora» não tem, porém, de ser necessariamente lido desta forma, sub specie da tradução recebida. Podemos encará-lo mais como um movimento semelhante ao do escultor com a pedra, um arrancar, ir e voltar. revelei podia, de alguma forma, traduzir exigi. Traz-se para fora o que esta já na coisa, dá-se a conhecê-la, manifesta-se-a. expulsar (e o verbo exigi é usado com esse significado em Cícero, por exemplo) tem algo do conceito, mesmo se é demasiado violento e, sobretudo, atribui o movimento à coisa, mais do que nos torna agentes desse movimento, como no original (o poeta está por trás, ago, não o esqueçamos).
Regressemos à metáfora do escultor, como ilustração feliz do movimento de «trazer para fora». «esculpir» vem de sculpere, derivado por sua vez de scalpere, gravar, registar. «escultura» podia porém vir igualmente de «ex-cultura», onde cultura resulta de colo, cultivar. A escultura seria assim, nesta etimologia fabricada, mas não menor por isso, a imagem acabada do movimento de in-out (no nadsat pun intended) contido em ex-ago. Ataca-se a terra, penetra-se nela, e regressa-se com o fruto nas mãos à luz. Recupera-se aqui parte do movimento a que nos referimos antes, o do desenterrar. Continua sem se conseguir veicular a imagem de movimento ascendente que o erigi transmite com tanta simplicidade. A tradução de exigi por esculpi ganha tanta mais força quanto o protótipo de monumentum é, efectivamente, uma escultura (de larga escala, regra geral). Não sei até que ponto esta é necessariamente uma tra-dução/trans-acção - o tradutor vai à frente ou vai atrás? - falsa.

Exegi monumentum aere perennius.
Esculpi um monumento perene além-bronze.

ilustração: Retrato de Virgílio, com Horácio e
Vário em casa de Mecenas. Arquivo da LIFE.

terça-feira, novembro 24, 2009

Ex 17, 14

[E assim Josué desfez a Amalek, e a seu povo a fio da espada.] Então disse o Senhor a Moisés: escreve isto por memória em um livro, e o põe nos ouvidos de Josué, que eu totalmente hei-de borrar a memória de Amalek debaixo do céu.
Trad.: João Ferreira d' Almeida
Fixação do texto: José Tolentino de Mendonça
Edição Assírio & Alvim

[Josué venceu Amalec e o seu povo ao fio da espada.] O Senhor disse a Moisés: «Escreve isto, como memorial, no livro e declara a Josué que Eu hei-de apagar a memória de Amalec de debaixo dos céus».
Trad.: António Rocha Couto
Edição Nova Bíblia dos Capuchinhos (Difusora Bíblica)

Quando, há pouco, ao ler esta passagem, ela me atocou*, pensei de pronto partilhá-la. Ocorreu-me citar, lado a lado com a tradução que sigo (a de Almeida), a dos Capuchinhos, moderna - o subtítulo denuncia-o: para o terceiro milénio da encarnação -, publicada no virar do século e rapidamente adoptada universalmente na igreja católica (aqui a evolução da língua: na mesma frase um advérbio e adjectivo em última análise iguais no significado sem que isso constitua um pleonasmo). Só ao comparar as duas traduções me apercebi que compreendera erroneamente o texto. No versículo catorze, existiam para mim três acções: (1) escrever um livro, (2) contar a história Josué e (3) Deus apagar a memória de Amalek. Entendera o «que» em «que eu hei-de borrar...» como um «[por]que eu», sem o perceber ligado e que (3) não era mais que o complemento de (2), a especificação da mensagem a transmitir a Josué. Faz, claro, todo o sentido, pois que, se o próprio Josué conduzia a batalha, que interesse em lhe contar o facto? Quando, porém, li a passagem, não me apercebi deste paradoxo lógico e entendi tudo de uma maneira muito diferente, mas muito mais interessante, creio: foi aliás essa leitura, por enganada que seja, que me instigou a escrever e aqui partilho.

§1
Primeiro: o livro. Ei-lo pois que finalmente surge na narrativa bíblica. A própria escrita, mesmo noutra forma, como, imaginemos, na forma de tabuinhas, ainda não aparecera, nem mesmo aquando do exílio no Egipto, passo onde teoricamente seria fácil ter encontrado uma referência aos hieróglifos. Como a Maomé, muitos séculos mais tarde, Deus manda Moisés escrever (as tábuas da Lei, porém, curioso!, é o próprio Deus que a escreve). As traduções divergem num ponto importante: diz Almeida «um livro»; os Capuchinhos traduzem «no livro». O artigo definido dá a entender que estamos perante um livro já conhecido, possivelmente usado ou, pelo menos, na pior das hipóteses, pensado para ser escrito num futuro próximo. O judeu traria assim desde o começo o Livro consigo. É que o Êxodo é, de facto, o primeiro livro em que o povo judeu enquanto tal, enquanto povo, e, como povo, personagem, surge. No final do Génesis não temos senão Jaboc-Israel e os seus doze descendentes, patriarcas das doze tribos. Quando o Êxodo começa, quatro séculos depois, estas famílias multiplicaram-se e o povo de Israel é agora na ordem das centenas (ou mesmo milhares). Israel seria a civilização do Livro por excelência, corroborando a ideia de Steiner de que o Livro/o Texto é a pátria dos judeus - daí a sua conhecida oposição ao projecto sionista (tire-se à palavra toda a sua conotação pejorativa).
Escreve, comanda Deus - e escreve para memória futura (esta expressão, para quem, como um inocente, da forma como os Gregos descobriram as primeiras metáforas que o uso entretanto matou; esta expressão, dizia, a quem encontre pela primeira vez, deverá parecer prima facie um paradoxo). A Palavra há-de ser verdadeira, histórica. A escrita não existe para que se brinque com ela às «mentiras várias que se assemelham à realidade» (Hesíodo, Teogonia, 26). A escrita é um exercício de responsabilidade, pois que apontado ao futuro: no texto hão-de as gerações por-vir que confiar necessariamente. Porque não se concebem códigos de ficcionalidade, a Palavra conserva o seu poder primeiro, com que Deus, falando, criou as coisas. Assim o que escreve, capaz de criar a memória. O livro ainda como o espaço preferencial para essa memória: escolha curiosa de Deus, pois que o livro é frágil e arde (mesmo se mal). Deus dá portanto duas missões a Moisés: escrever o livro, mas guardá-lo - e esta é mais perpétua, porque eterna e, como o pecado original, há-de passar de geração em geração, como o Livro Vermelho protegido séculos a fio pelos descendentes de Samwise Gamgee. Heine profetizou o nazismo em 1821: «Dies war ein Vorspiel, nur dort, wo man Bücher verbrennt, verbrennt man auch Menschen»**. Onde os livros são queimados, pois também se queimam os seus guardiães. Os judeus, até hoje, enterram, em sítios próprios, as Toras que o tempo, com o desgaste, tornou inutilizáveis, pois que a Palavra de Deus não deve não pode ser destruída: há que a guardar. Steiner, numa entrevista que lhe foi feita nos anos 90, falava de um rabi que sabia o Pentateuco todo de cor e, no campo de concentração, dizia: se precisarem de consultar alguma passagem, venham ter comigo. Cristo confiava que os seus seguidores imitassem os conterrâneos d'Ele quando afirmava que «os céus e a terra passarão, mas as minhas palavras não passarão». A filologia, o amor à palavra, e o trabalho de a recuperar e conservar, começa aqui, versículo catorze do capítulo dezassete do Êxodo.

§2
«o põe nos ouvidos de Josué». Leiamos mal estas palavras, como disse. Esqueçamos que pedem um complemento, que se dá a seguir, na promessa de Deus de apagar a memória de Amalek. Deus, então, depois de pedir que se escreva o feito da batalha num livro diz: ensina o que escreveres a Josué. «põe nos ouvidos» é uma expressão muito forte, se tomada literalmente. Depois da palavra escrita, Deus, talvez como medida de segurança, apela à oralidade, modo durante milénios mais próprio da relação do Homem com a narrativa. שמע ישראל, Shema Yisrael, Escuta Israel. Israel pode ser o povo do Livro, mas não o é menos da Escuta. A imagem de Cristo a abrir os ouvidos do surdo - εφφαθα!, transcrição grega do aramaico - é válida como metáfora para a relação do Deus judaico-cristão com o seu povo, que escancara os ouvidos dos crentes como uma criança rasga a mãe para nascer. Homero canta os seus poemas ao estenógrafo, Deus diz a Moisés o que há-de registar (não deixa de ser curioso que as Tábuas da Lei sejam quebradas e de novo escritas, mas agora já por mão humana). O escritor é um personagem intermédio: ele primeiro escuta (o que há-de escrever) e depois conta (o que escreveu). O exercício da audição está no princípio como no fim. O texto escrito antigo cumpre com este modelo: o poeta escutava as Musas (canta, ó deusa), registava, mas a palavra era para ser escutada: por isso se lia em voz alta (S. Agostinho, lembra Steiner, maravilhou-se quando, um dia, para não perturbar o irmão, percebeu que podia ler em silêncio). O poema era para ser cantado, o teatro interpretado, a prosa, retórica, pedia público, pois. Porque eram civilizações da escuta, eram civilizações mais sábias.
O pedido de Deus de que Moisés instrua Josué nos eventos da batalha a narrar no livro tem ainda uma outra função: o garantir, de novo, a memória. O Livro, insistimos, pode ser destruído, mas não o que guardamos dentro de nós e isto é um ponto a que Steiner regressa sistematicamente nas suas conversas, como possibilidade última de resistência contra os regimes mais bárbaros:
Outras pessoas tinham consigo o tesouro e ninguém pode prender toda a gente. Os poemas de Mandelstam foram todos confiscados, e Nadezda, a esposa, deu a conhecer um poema por cada dez pessoas, o que significava que para sessenta poemas haveria seiscentas pessoas que os conheciam, e assim se salvaram. Nada pôde impedi-lo. Creio que esta é a mais indelével forma de publicação que se pode imaginar, a publicação da alma humana. (trad.: José Eduardo Reis)
Bradbury exemplificou bem a coisa no famoso Fahrenheit 451, cada homem um livro. (Uma das minhas maiores dores é o poema mais longo que sei de cor ser apenas de dois versos). Ao mesmo tempo que garante, de forma mais eficaz, a durabilidade da narrativa, a oralidade incorre no sério risco de a perverter. Há inclusive uma narrativa que pede para ser sempre per-vertida (se cada acto de comunicação é, de facto, um acto de tradução, como quer Steiner em After Babel): o mito. Que haja conservação na perversão é uma Aufhebung hegeliana de primeiro grau.

§3
Ainda que Cristo, nos Evangelhos, chore, quando lhe é comunicada a notícia da morte de Lázaro, seu amigo, não há nenhuma ocasião em que se ria (os jesuítas têm porém um famoso quadro/fotografia de um crucifixo encontrado no castelo de Francisco Xavier intitulado O Cristo Sorriso). Deus, porém, é certo ser um brincalhão, para lhe poupar o epíteto de mentiroso. Ordena a Moisés que escreva sobre a batalha, pede-lhe mesmo que, por segurança, conte também tudo a Josué, mas, ao mesmo tempo, promete «borrar a memória de Amalek». Se Deus fora Winston Smith e reescrevesse passados, talvez o conseguira, mas seria uma jogada, no mínimo, desleal. Deus dá uma ordem e faz uma promessa que se excluem mutuamente. Se os judeus conhecessem o modo trágico da existência (não se invoque Job: só o facto de trabalhar com um categoria como o Mal revela que o Livro de Job não pode ser trágico, que é um modo todo outro que o moral), poderiam ter escrito sobre este verso a sua primeira tragédia: obedecer a Deus é anular as condições de possibilidade de Ele cumprir com a Sua palavra. Obedecer a Deus é, pois, hybris, mas não menos, por definição, é não o fazer. O Homem vai obedecer a Deus, mas nisso fá-Lo impotente. A escrita nasce como resposta a um apelo da transcendência mas converte-se, no seu fazer, meio de a dominar, de a tornar imanente, terrena. Até a escrita mais religiosa é uma escrita da terra, no sentido em que baixa as coisas de Deus ao Homem, as faz dele, as faz com ele, ele as faz - e por isso as pode compreender. Só o silêncio pode ser verdadeiramente divino, vazio em que a divindade pode entrar e habitar em nós. A palavra, quando nasce, é para criar matéria: a palavra é corpórea. Domesticamos o mundo pelo Verbo, como Adão. E - aqui a ironia - o próprio Deus, na medida em que se torna escrito, torna-se nosso: os judeus não podem ler o Seu nome, mas podem-no escrever. Os árabes, impedidos de representar quer Alá quer o Profeta, desenvolveram uma complexíssima caligrafia no sentido etimológico da palavra: uma bela escrita, rendilhada, enfeitada como uma iluminura medieval. Na escrita pintaram o que não podiam de outro modo. A escrita, de novo, pois, como meio de possuir o que deveria evadir-nos.
A escrita como meio de protecção contra Deus. Ao contrário de outras mitologias, na narrativa judaica, Deus não ensina os homens a escrever: a escrita é uma invenção, supõe-se, toda deles, ao qual o próprio Deus, admitindo a inteligência dela, recorre. É Deus quem aprende a escrever para gravar as Tábuas da Lei. Deus não pode afectar o livro, depois de escrito, como, por exemplo, endurece o coração do Faraó, um pouco como os deuses gregos têm de espicaçar os heróis épicos a fazer tudo (lege Bruno Snell), ou brinca com a Sua criação e faz a rocha no deserto brotar água. O livro é uma coisa em que Ele não pode tocar.
Cristo não escreveu nenhum livro (mas lê na sinagoga: havia de se fazer um quadro bonito disto: Cristo a ler) e o que escreve (Jo 8, 6), escreve na areia: onde a audácia horaciana do aere perennius? Resta a Deus apenas ditar ou inspirar os autores ditos então sagrados. A civilização da Palavra Escrita - o Livro - tem um Deus da Palavra Oral - Escuta, Israel!. No fundo, o mesmo paradoxo em que a obra escrita mais antiga da literatura ocidental seja um poema oral. E agora, silêncio.
________________
* O português usa o verbo suave tocar onde o inglês regista a violência do strike, o atacar. Guardemos o melhor das duas metáforas.
** A frase, nas suas subtilezas, nomeadamente o
nur, ambíguo, não se deixa traduzir com facilidade: Isto foi [tão somente] um prelúdio (no sentido etimológico de pre-ludus correponde ipsis verbis ao alemão), porém/apenas [aí], onde se queimam livros, queimam-se também homens.

ilustração: Poussin (c. 1625),
A Batalha de Josué com os Amalecitas.
Museu Hermitage.

segunda-feira, novembro 23, 2009

«Can We Still Speak of a Human Condition? Some Brief Remarks», de George Steiner

O que se segue é fundamentalmente baseado nos apontamentos que fui tirando ao longo da conferência. Consegui também gravá-la (faixa de aúdio, apenas), em qualidade mínima e, por vezes, recorri a esse registo para corrigir um ou outro ponto das minhas notas, ao escrever este texto. Não a voltei a ouvir exaustivamente, porém, e, como tal, o que abaixo se segue não posso garantir ser uma transcrição ou reprodução exacta de todas as ideias que Steiner partilhou, pois que nem sempre a gravação se deixa compreender e as notas estão, por vezes, incompletas. Entre aspas verticais ("), palavras do próprio Steiner.


A expressão «condição humana» tem uma história bonita. O conceito remonta já a Séneca. Malraux, com a sua obra homónima, coloca-a de novo na ordem do dia, mesmo se lhe confere um sentido muito diferente. Há um certo arrojo ["fierté"] na expressão. O mestre de Dante, por exemplo, diz poder ensinar a ser mais humano. Há uma ideia de progresso aqui, uma esperança que tem a sua formulação máxima no Iluminismo. Mas poderemos ainda hoje falar de uma «condição humana»?
Na batalha de Somme morreram 40.000 homens no primeiro dia apenas. A I Guerra Mundial, com o seu número avassalador de mortes, representa o fim de certos ideais de progresso que nunca mais puderam ser recuperados. É já neste contexto que ocorre a II Guerra Mundial. 70.000.000 pessoas morreram. Não nos esqueçamos nunca que, ainda que estas guerras tenham envolvido nações do mundo inteiro, elas foram sobretudo guerras civis europeias. O horror último nasceu da alta cultura europeia. Ainda não sabemos como isso aconteceu. Gautier, que hoje poucos lêem, talvez nos possa dar uma pista quando diz «plutôt la barbarie que l' ennui». A verdade é que a Europa atravessou um longo período de paz, a.k.a. ennui, entre 1815 (Waterloo) até ao começo da I Guerra Mundial, um século depois (1914). As pessoas estavam à espera que algo acontecesse, mas esperavam ainda uma guerra à moda antiga.
Hoje atravessamos um dos períodos mais selvagens da História, o que torna o uso da expressão «condição humana» muito problemático. Jefferson disse: «no books will ever be burnt in Europe». Voltaire: «nunca mais haverá tortura na Europa». Os grandes pensadores erraram completamente. Hoje temos mais crianças como escravos (cerca de cinco milhões) do que alguma vez na História. Segundo o último relatório da Amnistia Internacional, 180 países usam tortura. A tortura é endémica, de facto: não é preciso invocar Guantánamo, basta ir a uma esquadra francesa. Tornou-se normal. Podíamos, podíamos de facto, acabar com a fome. Ao invés disso, esta é cada vez mais um flagelo e temos de novo grandes fomes, como antigamente. No Ocidente, as duas indústrias que mais dinheiro movem por ano são o narcotráfico e a pornografia.
Porque falharam as utopias? O marxismo era um grande elogio ["compliment"] ao Homem. [citação de Marx, em que este diz que, no futuro, não trocaremos mais dinheiro por dinheiro, mas amor por amor, abraço por abraço]. O marxismo apresentava-se como um convite a que fôssemos melhores do que éramos, a que fôssemos mais altruístas. Foi uma "wonderful mistake", um sonho que se tornou um pesadelo. Marx conduz ao Gulag. Era isto inevitável? A pergunta permanece em aberto. Note-se que até o fascismo tem ideais, convidando-nos a sermos mais do que somos.
Conto-vos um episódio. Falei uma vez aos meus alunos, durante a guerra na Nicarágua, uma guerra terrível, verdadeiramente, dos jovens como eles, os seus pais e avós, que, na altura da Guerra Civil Espanhola, se tinham voluntariamente inscrito para irem combater nas Brigadas Anarquistas. Perguntei-lhes se eles seriam capazes de fazer o mesmo hoje, de ir para a Nicarágua em defesa de um ideal, de uma visão. Eles responderam-me com uma carta: «se formos lutar pela esquerda, teremos depois um regime estalinista; se formos lutar pela direita, teremos um governo-fantoche da CIA» e concluíam com uma frase fortíssima: «on ne nous va pas attraper de nouveau». Antes, estes jovens, os melhores do curso, iam para o Parlamento ou para serviço social, mas hoje, se aos dezoito anos já se sabe isto, que os sonhos são pesadelos, que resta? O dinheiro.
Que tipo de desenvolvimento humanista é possível? As ciências desenvolveram-se imenso, mas, em compensação, assistimos à "mediocrity of humanistic philosophy today". Em Beslan, quando a escola foi tomada, ao segundo dia, os professores rezaram com as crianças a Deus. Ao terceiro dia, porém, algumas crianças recusaram-se a rezar a Deus e resolveram rezar a Harry Potter, na esperança de que o feiticeiro e os amigos os fossem salvar. Há três vezes mais astrólogos registados do que físicos na América. Estamos a assistir ao regresso a um "medieval degree of superstition". [nome que não consegui perceber], perguntado sobre o que pensava da civilizaçao ocidental, respondeu: «it was a wonderful idea». O judaísmo produziu duas grandes heresias: o marxismo e o cristianismo. O marxismo parece estar extinto. O cristianismo, penso, vai morrer, uma morte lenta. E a pergunta verdadeiramente assustadora é: o que vai ocupar o lugar vazio?
Quero sugerir que a nossa condição não é humana, mas pré-humana. Ainda não chegámos ao ser humano. Temos apenas 20.000 anos de idade. Koestler sugeriu que tínhamos dois cérebros: um, grande, selvagem e bárbaro, outro, muito menor, onde residiriam os princípios morais e as humanidades. Infelizmente, nada corrobora esta teoria, mesmo se a podemos usar como metáfora: o cérebro pequeno tem ainda de crescer. A questão é saber se temos tempo suficiente antes da próxima grande catástrofe. Hawkings, que se jubilou agora, diz que a nossa única esperança reside em começar noutro planeta e que essa oportunidade chegará mesmo a tempo. Uma ideia terrível, mas muito importante.
Começar de novo: será possível? Por vezes há epifanias, em que a luz subitamente irrompe. Aconteceu no Maio de 68, aconteceu agora recentemente na noite da eleição de Obama. Acreditava-se que as coisas iam de facto mudar, tudo era possível, mas isso não aconteceu: o Maio de 68 não se concretizou e Obama já mostrou ser muito diferente daquilo que se esperava. Não há quase portas abertas para os jovens. A nossa tarefa principal, hoje, é, contra a lógica da alternativa única da busca de dinheiro, encontrar credos racionais, "make positively great mistakes".

mais ou menos George Steiner

sábado, março 21, 2009

Quoth the Raven §7: O Ciúme, D' Après Barthes


«
2. Werther está preso a esta imagem: Carlota corta as fatias e distribui-as pelos irmãos e irmãs. Carlota é um bolo e esse bolo divide-se: cada um tem a sua fatia: não sou o único - em nada sou o único, tenho irmãos, irmãs, devo dividir, devo submeter-me a essa partilha: as deusas do Destino não são também as deusas da Divisão, as moiras - sendo a última, a Muda, a Morte? Além disso, se não aceito a divisão do ser amado, nego a sua perfeição, pois pertence à perfeição o dividir-se: Mélita divide-se porque é perfeita e Hipérion sofre com isso: «A minha tristeza era verdadeiramente sem limites. Foi preciso afastar-me». Assim, sofro duas vezes: pela própria partilha e pela minha impossibilidade de aceitar a sua nobreza.

[...]

4. Ciumento, sofro quatro vezes: porque sou ciumento, porque me censuro de o ser, porque temo que o meu ciúme fira o outro, porque me deixo submeter a uma banalidade: sofro por ser exclusivista, agressivo, louco e vulgar.
»

Roland Barthes, Fragmentos de um Discurso Amoroso
(Tradução de Isabel Pascoal - Edições 70)


quarta-feira, janeiro 21, 2009

Moleskines §13: 2008, Segundo Semestre - Balanço Literário

SENHORAS E SENHORES, EI-LOS:












1. Em Busca do Tempo Perdido - Do Lado de Swann, Marcel Proust
(trad.: Pedro Tamen)
2. The Idiot, Dostoiévski
(trad.: David McDuff)

3. A Perna Esquerda de Paris seguido de Roland Barthes e Robert Musil,
Gonçalo M. Tavares


Um homem lê muito, e ainda assim lê pouco. «Tem de haver outra forma de um homem se salvar», suspirava com pavor o grande Almada. Talvez porque em vida isso nos seja impossível Borges cuidou que o paraíso fosse uma biblioteca. Cada vez que um homem descobre um livro que lhe muda a vida tem de se interrogar necessariamente sobre as vidas que anda a perder à custa dos livros que não leu. Isto é apenas outra forma do problema do mal e urge uma teodiceia disto. E porém um livro só age no tempo bom no tempo certo. Mil livros nunca me salvarão por eu os ler no dia errado. O que seria eu se eles me salvassem, eles e não outros, eles e não os que me salvaram? Foi tudo tão acaso - e, simultaneamente, foi tudo providência.
De quanto li no seis meses passados, guardei três monumentos três textos bíblicos três palestinas para regressar no fim da diáspora. Três textos em que cada palavra era acutilante, necessária e fértil; cada palavra um livro ou um verso (se há alguma diferença entre os dois, é um tópico controverso). Assim se escolhem as grandes obras: aquelas que são bibliotecas. Dêem-me uma centena, se as há, destas, e em três dias reconstruo-vos alexandria.

Lembro-me que a primeira vez que ouvi falar de Proust (o nome do autor significar a obra: isto deve ser a coisa mais perto da santidade literária) ter sido a uma colega minha das aulas de alemão, há vários anos atrás. Dizia ela que diziam eles aqueles que tinham lido o livro que depois de ler Proust nada mais se lê, os livros murcham morrem. Relê-se Proust eternamente, e isso basta. Poucas vezes o homem esteve tão perto da verdade. Proust sabe a obra total: e eu li um sétimo da totalidade. Como é que se multiplica o absoluto por sete? Não há matemática para sete infinitos. Desde Corto Maltese que eu não tinha um livro que me amasse tanto e cosesse o coração esborratado. Proust é uma forma de mitologia real, uma arca de noé das coisas todas. A vida não se vive: lê-se (em francês, no original, e o Tamen, a traduzir, é genial).

Eu tinha-me obrigado a ler Dostoiévski antes dos vinte. Era uma vergonha literária que tinha e forçoso era corrigi-la. Eu, porém, tenho o gosto estranho de não começar os autores pelas suas obras maiores e, por isso, descartei logo o Crime & Castigo e deixei em Portugal O Jogador. Mireille sugeriu-me O Idiota e eu roubei-o da biblioteca na novíssima tradução do pinguim. Tomava todos os dias um capítulo como um comprimido antes de ir para a cama. A estrutura da obra é magistral, o mais perto que a prosa pode chegar do teatro. A estória começava num comboio, que é a forma russa de escrever era uma vez. E depois havia eu, e andava por ali, com espasmos de epilepsia, um idiota que sou. Dostoiévski escreveu-me uma biografia possível. Olhei para aquilo como um mapa de mim e onde as duas geografias não concordavam, a do Príncipe e a minha, plagiei mandando: Every valley shall be exalted, and every mountain and hill shall be made low: and the crooked shall be made straight, and the rough places plain (Is. 40.4). Quixote, determinei-me a ser Myshkin, porque já o era.

Repito: se houver um Prémio Nobel da Literatura nos próximos anos para Portugal, irá para Lobo Antunes. Se, porém, o prémio vier só daqui a umas décadas, dão-no ao Gonçalo. Também ajudou ele ter vindo a Coimbra (e o foyer do tagv estava cheio como um metro japonês). Nunca ninguém escreveu português daquela maneira: geométrica, concentrada, violentíssima. Quanto mais perto do haiku, mais próximo da perfeição. O que torna A Perna Esquerda... o melhor dele é o estar sempre a balançar no aforismo. Gonçalo é melhor ao pé coxinho. A Perna Esquerda... é para pegar, abrir ao torto, e colher um verso. Isso basta e dói e esmurra. Gonçalo não usa almofadas. Gonçalo não tem tempo para o que não é necessário: cada palavra é essencial e a cada palavra ele dá a essência toda: daí o peso e a verdade da coisa. Uma frase de Gonçalo substitui um romance inteiro. A coisa mais parecida que eu conheço com isto (diverge apenas no ser mais poética e mais maior) é o Livro do Desassossego. Dele diz Gonçalo: "uma coisa inclassificável e forte", "[cada] frase pode ser vista como um verso, ou como a pequena parte de um romance, ou como coisa que vai a caminho do ensaio ou, simplesmente (voltando ao início), como uma frase", "para qualquer assunto, enfim, encontraremos uma citação vinda do livro." Mas não se poderia dizer tudo isto do próprio minoutauro de Gonçalo, A Perna Esquerda de Paris seguido de Roland Barthes e Robert Musil? Livro-catedral, mas uma catedral saída da cabeça de Mondrian.

OUTROS DE BOA MEMÓRIA:

Maus, Art Spiegelman
Spiegelman ganhou o Pulitzer por isto. Mais que o mereceu. Maus é indizível e ao cruzar três narrativas - o Holocausto segundo o pai de Art, a relação dos dois, e a meta-narrativa sobre a composição do próprio Maus - transforma-se num dos mais revolucionários exercícios criativos da nona arte.

A Hero of Our Time, Mikhail Lermontov
(trad.: Vladimir & Dimitri Nabokov)

A obra-prima de Lermontov é um belíssimo naco do romantismo russo que dá um gozo tremendo a ler (para mais na tradução excelentíssima do Nabokov e filho, mas não há desculpa para os preguiçosos: existe também uma novíssima tradução dos Guerra, os nossos vovós russos, que nos contam as estórias dessa terra distante e grande).

Persepolis, Marjane Satrapi
Persepolis é o Underground do Irão, um mini-épico do país, um Bildungsroman alucinante de uma enorme boa-disposição mas sempre com a tragédia em pano de fundo (assim era também no filme do Kusturica). O Irão é esse país desconhecido de que, contudo, estamos sempre a falar: eis uma boa maneira de acabar com a hipocrisia (a seguir a isto, a Morte na Pérsia: a ler algures este ano).

Symposium, Platão
(trad.: Robin Waterfield, Teresa Schiappa, e minha)
Foi a segunda vez que voltei a estudar, a Grego, o Banquete de Platão, louvado por muitos como quiçá o diálogo mais perfeito do ponto de vista literário. A estrutura da peça roça, de facto, a perfeição, mas são necessárias várias leituras e uma atenção cuidada para que nos apercebamos das múltiplas subtilezas que Platão vai semeando. Platão é o Beethoven da filosofia. Compromisso pessoal para este ano: ler a obra completa do génio (o Aristóteles é um rato comparado com o professor).

BANDE À PART:

Ilíada, Homero
(trad.: Frederico Lourenço)

A Íliada não é um livro. É uma coisa. Isso mesmo: uma coisa. Olhar para aquilo como uma estória é dificil e põe a obra a perder. Aquilo é o mito original, a própria linguagem que falamos a escrever. Sabemos-lhe o final e o meio é cheio de cadáveres em batalhas excessivamente longas e sangue e tripas. Face às obras clássicas e ao homem moderno a questão é: que valor tem isto para mim hoje? E a resposta é: aprender a balbuciar. Como um bebé. A Ilíada é a mamã Homero a ensinar o filho humanidade, a dar-lhe as palavras e apontar-lhe as coisas a que se referem. O que resgata a Ilíada é em cada página existir um verso que redime todos os outros. Vou abrir ao acaso: "A morte chega a quem nada faz e a quem muito alcança" (IX.320), "Eles preocupam-me, embora vão morrer" (XX.21; Zeus, o pai dos imortais, sobre os homens); "e as palavras morderam o espírito de Heitor" (V.493). Por vezes, Homero chega mesmo, como neste último poema (o verso sozinho é um poema inteiro, sim senhor), a ser esquiliano (esclarecimento: Ésquilo é o maior génio das letras gregas). E depois há toda a tragédia. A Ilíada é a tragédia dos que morrem e morrem sem razão, ignorados pelos deuses (há um verso absolutamente terrível em que Atena rejeita as oferendas dos troianos, mostrando bem a arbitrariedade da vontade divina). É a Guerra. Há que substituir as coisas e falar da Ilíada do Iraque, da Tróia Palestino-Israelita. E depois há Helena. E Heitor. E Andrómaca. E Príamo. A Ilíada é como um rascunho a pedir aos escritores de todo o mundo que a peguem e reescrevam: a literatura mundial é isso.

The Wake, Neil Gaiman
Só há uma e uma só razão pela qual The Wake não está na companhia dos três primeiros, no seu lugar devido, que é o dos contos imortais: é que The Wake não existe por si, antes funciona como epílogo a The Kindly Ones, da mesma forma que Worlds' End é o prólogo. O oitavo e o décimo volumes de Sandman, apesar de serem mais do que isso, devem, a meu ver, ser entendidos sobretudo como acompanhantes do nono, esse sim o verdadeiro volume final da série. O nono, porém, já tinha sido lido em Fevereiro passado. Para que, porém, não restem dúvidas, declaração: Sandman, a série, e muito especialmente The Kindly Ones (acolitada do livro antes e do livro depois), é uma das maiores obras-primas do século XX e um texto maior da literatura mundial. Declaração específica: The Wake foi o segundo livro a fazer-me chorar em toda a minha vida. Dito isto, considero todos os esclarecimentos dados.

LIVROS DA ESCOLA DE ATENAS:

1. An Enquiry Concerning Human Understanding,
David Hume

2. The Problems of Philosophy, Bertrand Russell
3. Meditations On First Philosophy, René Descartes
4. Nicomachean Ethics, Aristóteles

Postos todos em fila ao monte não se percebe muito bem, mas Hume está muito acima de qualquer um dos outros. Discordo com Hume em muito do que ele diz, mas é inegável que quer o que ele diz é ainda hoje de uma enorme pertinência filosófica (o famoso problema da indução que ele aqui expõe continua sem resposta), quer a maneira como o diz, com grande clareza, quase humor, e estilo trabalhado, o tornam um dos maiores filósofos de sempre. Para que se veja a dimensão da coisa, diga-se que ponderei seriamente tirar a obra de Hume desta secção e juntá-la aos Outros de Boa Memória, tal é a sua superioridade. Faz favor ler o livro na edição da Oxford Philosophical Texts: dificilmente se arranja edição tão perfeita.
Os outros, então (mais abaixo).


Russell faz um introdução interessante à filosofia, mas infelizmente centra-se sobretudo na epistemologia e metafísica: a filosofia, no entanto, é muito mais que isso. É um livro bom para o leigo, mas tem de ser complementado e as suas falhas corrigidas por mais uns quantos. Descartes não é tão estúpido como parece e, de qualquer forma, devemos-lhe o Matrix. Aristóteles esse sim: é tão estúpido como parece. Escreve um livro inteiro a tentar dizer como levar uma vida boa e mina-o de contradições do princípio ao fim (e eu sei do que estou a falar: tive uma cadeira este semestre só sobre este livro). Resoluções para este ano: ler Kant.

*
Outros livros lidos, por ordem aproximada de qualidade: Água, Cão, Cavalo, Cabeça (Gonçalo M. Tavares), Jerusalém (Gonçalo M. Tavares), A Poesia da Presença (antologia), The Children of the Sun (Maxim Gorky, trad.: Moura Budberg), As Troianas (Eurípides), A Liga dos Cavalheiros Extraordinários II (Alan Moore) e The Tales of Beedle The Bard (J. K. Rowling).

Outros livros de filosofia lidos, bastante bons dentro da sua área: Routledge Philosophy Guidebook to Descartes and the Meditations (Gary Hatfield), Hume's Enlightment Tract: The Unity and Purpose of An Enquiry Concerning Human Understanding (Stephen Buckle), Understanding Philosophy Of Science (James Ladyman).

O pior livro lido (desperdício de tempo e de uma boa premissa): Folk Tale, Fiction and Saga in the Homeric Epics (Rhys Carpenter).

Somatório: 24 livros (na íntegra, naturalmente).
Média: pouquito menos que um por semana.